O açaí e a crise climática

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Os eventos climáticos extremos, de muito sol ou muita chuva, já afetam a Amazônia. Moradores de comunidades tradicionais estão sendo obrigados a se adaptar e mudar a alimentação por constantes problemas nas safras, e o açaí é um exemplo. Base alimentar de muitos povos da região, o fruto tem apresentado safras variadas, por vezes não amadurece e até chega a ser perdido. Em Abaetetuba, no Pará, o açaizeiro nativo, que alimentou gerações, tem se tornado uma preocupação para comunidades que dependem de boas colheitas – o que não vem ocorrendo nos últimos cinco anos. O símbolo da sobrevivência da floresta está ameaçado.

Por Alicia Lobato e Cícero Pedrosa Neto no Amazônia Real | 21/07/2023

“Faz uns quatro, cinco anos que começamos a perceber que mudou. Em maio, ainda não tem. Às vezes, o açaí começa a chegar em junho, julho”, explica Daniela Araújo, 34 anos, presidenta da Associação dos Agroextrativista, Pescadores e Artesãos de Pirocaba (Asapap). Na comunidade localizada em Abaetetuba, município do nordeste do Pará, havia uma festa para celebrar o início da colheita do fruto amazônico. Há três anos, a festividade teve de ser mudada para datas que variam de ano para ano. A safra do açaí nesta região já não é mais a mesma. 

O pai de Daniela, Diomar Araújo, 53 anos, apanha açaí desde os 12 e sempre viveu no território tradicional de Pirocaba. Para a reportagem da Amazônia Real, ele aponta para os caroços que pintam de verde o chão em torno das palmeiras que circundam a casa da família, cuja renda depende diretamente do açaí.  “Todos esses anos da minha vida e eu nunca tinha visto nada parecido com isso, o açaí cai verde do talo e não presta mais para nada. Fica tudo aí no chão”, queixa-se. “Não tem aquele ‘açaí preto’, como a gente fala”, completa Daniela.

Pirocaba é uma das dezenas de comunidades que já sentem os impactos das mudanças climáticas na Amazônia. Ou mudança “no tempo”, como prefere Diomar. “Agora está tudo desregrado, a gente não tem mais aquela safra certa porque ou é muito sol ou muita chuva. Tem ano que dá bom e tem ano que não dá quase nada”, diz ele, caminhando por entre os açaizeiros de sua propriedade. “E a gente depende do açaí aqui.”

O açaí é o fruto mais consumido na região Norte e é a base alimentar de diversas comunidades e populações. Seu cultivo se estende por quase toda a floresta amazônica, incluindo os países vizinhos Venezuela, Colômbia, Equador, Guianas e Peru. Pará, Amazonas e Maranhão são os maiores Estados produtores nacionais, onde o produto é consumido localmente de forma diferente do restante do País. 

“As pessoas estão acostumadas, o açaí é uma comida, tomam mingau (de açaí), merendam mingau, jantam açaí, é algo que já está faltando na mesa. E para substituir, às vezes por suco, fruta, não é a mesma coisa. As pessoas falam até que é como se não tivessem almoçado porque não teve o açaí”, relata Daniela. O consumo do açaí, vale lembrar, varia mesmo dentro da região Norte. No Amazonas, as pessoas falam em “vinho de açaí” em vez de “’mingau”, e consomem o produto como lanche e não no almoço, por exemplo.

Divididas pelo rio que leva o mesmo nome das comunidades, as famílias de produtores de açaí estão conectadas pelo parentesco e pela interdependência econômica. Em Pirocaba, a comunidade ribeirinha vive em um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), abrigando cerca de 300 famílias. Ao longo de gerações, o cultivo do açaí fortaleceu o típico espírito da Amazônia: um quê de sabedoria popular e outro tanto da natural diversidade biológica.

“Todo açaizeiro que temos aqui é nativo, foi o passarinho que plantou, a cutia, a paca… o que a gente faz é cuidar, limpar e, agora, proteger mais do sol”, diz Diomar. A comunidade já vem percebendo alterações também em outras espécies, como a mandioca [maniva]. Daniela relata que quando chega o tempo da colheita, o tubérculo ainda parece impróprio para o consumo, como se não tivesse se desenvolvido o suficiente.

Mudanças climáticas

A família Araújo, queixa-se que o açaí se desprende da palmeira antes de amadurecer e atribuem o problema à crise climática (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real),

As alterações percebidas por Diomar e Daniela no ciclo das safras do açaí em Pirocaba encontram eco no segundo volume do Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de agosto de 2021. O relatório aponta que a alimentação será uma das áreas mais afetadas. A produtividade de setores como a agricultura e a pesca sofrerão mais, aumentando a insegurança alimentar. Na Amazônia, trata-se de condenar populações inteiras à pobreza.

O açaí que abastece as famílias de Pirocaba está concentrado, principalmente, na área alagada e insular do território, como é comum nesta região do Pará, conhecida justamente pela quantidade do fruto nativo e de várzea que produz. Quando a equipe da Amazônia Real esteve na comunidade, Daniela se preparava para encontrar o pai no açaizal da família. Diomar costuma coletar três rasas (paneiros) de açaí por dia para a venda de Daniela, localizada do outro lado do rio, na parte “seca” do território. Ela vende o litro do açaí, “do grosso”, por 5 reais, valor abaixo do preço de mercado na capital paraense, que varia entre 15 e 25 reais. O “grosso” se refere à consistência do açaí despolpado e, quanto mais grosso, mais caro o produto. 

Questionada sobre o valor do açaí vendido por ela, Daniela responde com o lema compartilhado pela família Araújo: “Todo mundo tem o direito de tomar açaí todo dia e do bom”. A decisão de manter o preço baixo e acessível, explica Daniela, também se deu pela escassez do fruto na região – o que contraria a lógica mercantil da oferta e da procura, mas que faz todo o sentido quando se trata de uma comunidade tradicional amazônica. “A gente entende que o açaí faz parte da vida do paraense e chega a dar um desespero pensar que a gente pode ficar sem ele, sem poder contar com ele para a nossa alimentação.”

É uma ironia que esse fruto esteja começando a faltar nas mesas dos amazônidas. A lenda do açaí, segundo relato de Mestre Miguel, conta que a palmeira (de nome científico Euterpe oleracea) surgiu justamente para garantir a sobrevivência. Diante da falta de alimentos, o cacique Itaki decidira que toda criança que nascesse seria sacrificada para que a numerosa população pudesse ter o que comer. O sacrifício foi aceito, incluindo a neta de Itaki. A filha do cacique, Iaçá, ia ao túmulo da filha sacrificada e chorava todos os dias. Naquele pequeno canto de luto e dor, nasceu uma pequena árvore. Uma noite, o cacique encontrou a filha morta e abraçada à palmeira. Seus olhos estavam escuros, mas voltados para os primeiros frutos da planta. Desde então, os frutos foram retirados, amassados e salvaram toda a aldeia, acabando com o sacrifício dos recém-nascidos. O novo alimento foi batizado de açaí, que é Iaçá ao contrário.

Insegurança alimentar

O risco de insegurança alimentar, quando se tem o mínimo para comer ou existe comida, porém de pouco valor nutricional ou diversidade de escolhas, é real. Este é um problema que, segundo aponta o  relatório do IPCC, é agravado pela crise climática e tende a crescer nas cidades e nas comunidades tradicionais, onde fontes de alimentos como os rios e a floresta têm sofrido com a degradação ambiental.

Na entressafra do açaí nesta área, que começa em dezembro e se estende até junho, as famílias de Pirocaba concentravam sua subsistência na pesca. Mas isso também foi ameaçado e impactado por dois eventos quase concomitantes: a construção da hidrelétrica de Tucuruí, na década de 1970, e a construção do Parque Industrial de Vila do Conde, entre 1970 e 1990, em Barcarena, cidade vizinha. 

Daniela Araújo vende o açaí produzido no terreno da família a 5 reais o litro (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

“Aí foi o começo dos nossos problemas. O peixe sumiu e a poluição de Vila do Conde começou a chegar aqui nas comunidades. Isso também afetou a nossa produção”, conta Diomar. Ele agora teme a construção de um porto graneleiro da empresa norte-americana Cargill, que pretende escoar toneladas de commodities agrícolas, como a soja e o milho, pelos rios de Abaetetuba.  O empreendimento irá afetar diversas comunidades ribeirinhas e quilombolas na região, entre elas a comunidade Pirocaba, que está no raio de ação considerado de “impacto direto”.

“O nosso medo aqui é que isso contribua ainda mais para a crise que a gente já está vivendo. Se a gente perde a nossa fonte de alimento, se o território começa a ser impactado, o que vai ser da comunidade nos próximos anos?”, pontua Daniela.

Futuro ameaçado

Elisa Wandelli, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2018).

Com o desmatamento, os gases de efeito estufa aumentam, a temperatura aumenta, os animais são afetados, e só o desmatamento já causa expulsão de espécies da floresta, além de inviabilizar aquele solo para plantações. Sem ter onde plantar, as produções se tornam cada vez mais dependentes de agrotóxicos. Quanto maior a dificuldade no plantio, mais veneno, e mais caro o alimento chega na mesa dos brasileiros. No caso do açaí, quando a safra é pouca, os produtores escolhem guardar para o próprio consumo, priorizando a sua alimentação em vez de comercializar o produto. 

Em 2021, a mudança no uso de terra foi a maior responsável pelos gases de efeito estufa do País, em segundo lugar veio a agropecuária. Ainda segundo o relatório do IPCC, “os eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes expuseram milhões de pessoas à insegurança alimentar e hídrica, com os maiores impactos observados na África, na América Latina, na Ásia, nos pequenos países insulares e no Ártico”. 

“A própria produção de alimento convencional e predatória é contribuidora da mudança climática. A agropecuária é quem vai ser mais atingida, mas as atividades agrícolas são as principais causadoras no Brasil, originado pela mudança de uso da terra, ou seja, a substituição da floresta nativa, dos sistemas vegetais nativos por outras atividades geralmente a agropecuária sendo a principal impactada, a pecuária, o plantio de grãos e soja”, explica Elisa Wandelli, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Muitas comunidades agrícolas já têm notado a diferença no plantio e na busca por alimentos, como prevê o relatório do IPCC. Os produtores orgânicos que já sofrem para conseguir plantar alimentos sem venenos, vão ser ainda mais prejudicados; quem vive da pesca vai começar a ter dificuldades para encontrar peixes nos rios – atividade fortemente impactada pela contaminação do mercúrio trazida pelo garimpo ilegal. Toda essa realidade já está acontecendo, apesar de não ser tão visível, mas quem está na base da produção desses alimentos já sente os efeitos da crise climática

A insegurança alimentar e a fome conseguiram se intensificar ainda mais com a pandemia da Covid-19, onde ficou escancarada a desigualdade no chamado Brasil potência agrícola. Além da alimentação ser afetada pela crise climática, o tema já é um agravante por outros motivos, seja pelo desperdício ou pela maneira como é produzido.

Elisa Wandelli afirma ser “uma vergonha estarmos passando fome no Brasil”, por problemas que não são diretamente relacionados à produção. “As pessoas passam fome por carência de políticas públicas que vão alimentar as pessoas, que vão fazer que haja acesso a igualdade nas distribuição dos recursos”, explica. A pesquisadora lembra que são as políticas públicas que podem diminuir o desperdício e permitir que a humanidade tenha acesso aos alimentos. “Então se alimentar é um ato político e cultural.”

Cultivos prejudicados

“Farmácia Natural” na sede da Associação dos Agroextrativista, Pescadores e Artesãos de Pirocaba (ASAPAP) (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

Todos esses fatores tendem a se agravar mais com a crise climática, como no caso da comunidade de Abaetetuba que precisou repensar o seu consumo de açaí por entender que as safras não estavam mais como antes, percebendo em como as palmeiras de açaí se comportavam. Pela prática, os produtores locais já descobriram que onde tem mais cobertura vegetal e menos exposição ao sol, os frutos são melhores.

“Antes tínhamos noção de quando começaria e quando terminaria a safra e hoje as pessoas ficam na dúvida de quando vai começar e quando vai terminar, são pegos de surpresa. Como eles falam, ‘coisas que não eram de costume acontecer, não era assim, não era desse jeito’. Quando chega no final (da safra), as pessoas começam a reservar, tirar a polpa, eles batem, guardam, descongelam e vão usando para o consumo”, conta Daniela.

Ainda de acordo com o relatório do IPCC, produções como a do arroz, trigo e milho seriam as mais afetadas, caso as emissões dos gases de efeito estufa continuem aumentando. Além disso, a produção da soja também será atingida. E o que vai acontecer com o acesso aos alimentos? Produtos que eram comuns podem começar a desaparecer, como o arroz, além do valor aumentar ainda mais. 

Segundo um estudo publicado na revista científica Nature Climate Change, em novembro de 2021, citado pela  bióloga e doutora em ecologia Ludmila Rattis, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Woodwell Climate Research Center, que foi uma das autoras do estudo, em dez anos, metade da área do Centro-Oeste vai estar fora do ideal climático para a agricultura. Essa região produz metade da soja e do milho e do algodão brasileiros.

“O Mato Grosso é o maior produtor de algodão do Brasil, seguido do oeste da Bahia que é o segundo, segunda região com maior produção, e por causa principalmente do aumento da temperatura vemos que aumenta a aridez do ar e prejudica o crescimento dessas commodities e o Brasil é fortemente dependente”, afirma a pesquisadora. “Se continuarmos emitindo gases de efeito estufa, o que vai acontecer é que a ‘agricultura de sequeiro’ – técnica que faz aproveitamento da água da chuva em locais com baixa pluviosidade, vai ficar inviabilizada.”

Populações atingidas

Comunidade Pirocaba, em Abaetetuba, nordeste do Pará (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

Outro ponto discutido no relatório é como esse impacto nas populações será desigual, ou seja, a injustiça climática, que já tem afetado populações de comunidades tradicionais. A fome que se agravou durante a pandemia, tende a continuar sendo pauta por conta da crise climática. 

Lourenço Bezerra, engenheiro agrônomo e educador popular na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), de 53 anos, morador do município de Abaetetuba, conta que a discussão sobre o clima tem se tornado frequente nas comunidades, surgindo sempre junto da pauta de alimentação. Ao debater sobre segurança alimentar, muitos observam como as mudanças têm afetado a maneira de consumir alimentos. 

“Elas afetam as mudanças do período chuvoso, a falta de chuva em certos períodos, mudanças que quebram todo o planejamento, uma cultura que os produtores têm em relação a fazer seu planejamento de produção, colheita, baseado no período chuvoso, da estiagem”, explica.  O educador também enfatiza como para os amazônidas o produto que vem do extrativismo vegetal é tão importante para a alimentação, e que isso tem sido afetado pela crise climática e, assim como Daniela, mostra preocupação sobre o açaí: 

“O açaí responde a base alimentar dessas famílias e com essa questão das mudanças climáticas, houve mudanças no período de produção, perda de safras, os frutos caíram antes da época, antes de amadurecer pela falta de chuva isso foi um fato bastante relativo à questão climática”, atesta Bezerra. Para ele, fica o receio de como será a alimentação das comunidades. “A questão dessa dificuldade surge para as famílias próximas dos centro urbanos, a oferta dessas facilidades dos produtos processados, essa substituição não é uma alimentação adequada e tem acontecido.”

Os extremos de chuva  prolongada e calor intenso têm alterado os ciclos em que produtores já estavam acostumados. Com as temperaturas elevadas, também aumenta o número de pragas nas plantações, exigindo uma quantidade bem maior de veneno e adubos químicos. 

Elisa Wandelli, da Embrapa da Amazônia Ocidental, afirma que consumir produtos contaminados com agrotóxicos é um dos sinais de insegurança alimentar, e complementa, “Os agricultores têm reclamado muito desse período de chuva na Amazônia muito mais intenso do que o normal, e de uma diminuição muito grande da produção de alimentos, mas também do extrativismo, da produção silvestre de alimentos. As mudanças climáticas aumentam a incidência de fogo na plantação e nas florestas, deixando o ar mais seco, e tudo isso afeta também a produção de alimentos”, alerta. 

E não apenas os pequenos produtores estão sofrendo com essas alterações no clima, mas também as grandes empresas. Só que para quem tem recursos as soluções podem ser ainda mais prejudiciais ao ambiente. “Na agricultura, eles têm dinheiro. Se faltou água, faz o desvio no rio e aquele rio vai regar as plantações. Se o solo foi empobrecido, coloca adubo químico. Se as mudanças climáticas estão potencializando as pragas, ele vai usar o agrotóxico”, completa a pesquisadora Elisa.


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Publicado originalmente no Amazônia Real
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