Por Renato S. Maluf no Boletim Lua Nova do CEDEC | Setembro de 2023
Sinto-me honrado em poder participar de um especial do Boletim Lua Nova que reverencia a vida e obra de Josué de Castro, uma oportunidade, ademais, muito prazerosa de percorrer e celebrar os vários legados de um personagem multifacetado que aprendemos a admirar e a nos beneficiar de seus ensinamentos. Muitas e merecidas manifestações sobre sua importância têm sido difundidas, ainda que o conhecimento sobre sua vida e obra esteja, entre nós, muito aquém do que lhe é devido. Pernambucano de nascença e brasileiro de coração, de fato um cidadão do mundo, Josué ultrapassou as fronteiras nacionais pela força de suas ideias e também pelas circunstâncias de vida que lhe foram impostas.
Como Celso Furtado e Paulo Freire, entre outros, foi banido do Brasil ao mesmo tempo em que seu pensamento era apropriado mundo afora e ele mesmo desempenhava funções com notoriedade internacional, recebendo mais de uma indicação ao Prêmio Nobel. Ainda mais grave, a sanha do regime militar lhe negou, para seu e nosso infortúnio, a possibilidade de retornar com vida ao país. Josué faleceu em Paris, em 1973. Triste ironia. O homem que se dispôs a desvendar o que considerava um dos tabus da nossa civilização – a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens – tornou-se ele mesmo objeto de interdição.
Minha intenção aqui é destacar componentes de sua vida e obra que, a meu ver, dão conta da sua relevância, alguns deles comumente lembrados. Primeiro, o pioneirismo. Josué realizou, em 1932, a primeira enquete sobre as condições de vida da classe operária brasileira, no caso, a do Recife. Em seu livro mais conhecido, Geografia da Fome (1946), rompeu preceitos estabelecidos ao associar o fenômeno da fome às mazelas do subdesenvolvimento. Josué participou ou foi o principal responsável pela introdução da Nutrição em cursos universitários, órgãos de governo e mesmo como categoria profissional.
O segundo componente é a coragem. Como ele mesmo escreveu, abordar a fome desde a ótica que inaugurou entre nós implicava enfrentar preconceitos morais e interesses econômicos das minorias dominantes. Sua destacada atuação como homem público se guiava por ideias e compromissos com causas de ampla repercussão social e, por isso mesmo, plenas de conflitos. Entre outras funções, Josué foi deputado federal por dois mandatos, criou entidades nacionais e internacionais relacionadas com alimentação e nutrição e dirigiu vários organismos entre os quais o Conselho Executivo da FAO.
Trata-se, como se vê, de um personagem com várias facetas sem que haja qualquer hierarquia relevante entre elas. Sabe-se ter sido ele um homem de ciência, porém, de uma ciência voltada para a ação, como foram vários de seus contemporâneos. Falar sobre o Josué é homenagear um personagem multifacetado na formação intelectual e no exercício de uma transdisciplinaridade humanista, que conviveu com a miséria e se importou com ela. Professou uma ciência com rigor e amplitude de olhar que o levaram a incidir em vários campos disciplinares, aliás, compartimentação do saber que transgrediu nas questões que se propôs enfrentar, na busca de instrumental analítico e em sua própria formação profissional.
A grande repercussão do “Geografia da Fome” dispensaria novos comentários aos inúmeros já feitos, não fosse a pouca valorização de ter sido um estudo pioneiramente ecológico cujo título já expressava ser aquela uma obra adiante do seu tempo pela maneira como apresentou a ocorrência da fome. Antecipou o enfoque ecológico ao colocar o fenômeno da alimentação como a principal referência das correlações entre grupos humanos e os quadros regionais que ocupam. Seu desdobramento no “Geopolítica da Fome” não apenas ampliou o foco da análise para a escala global, em si uma ousadia, mas demonstrou que a espacialidade da fome estava atravessada pela política.
Isto nos leva a outra e destacada faceta de Josué que é a de ter sido um ser político. O episódio mais comumente lembrado a respeito é sua nomeação, em 1952, como Presidente do Conselho Executivo da recém criada Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), posição que sua trajetória anterior mais do que o qualificava para exercer. Poderíamos lembrar também o cientista que denunciou o tabu de falar em fome. Contudo, quero aqui ressaltar o Josué atuante no debate público das grandes questões sociais do seu tempo e em seu país, antes de ser covardemente impedido de permanecer no Brasil pela ditadura militar, já nos primeiros dias do golpe de março de 1964.
Refiro-me ao parlamentar que, entre outras ações, travou interessante debate com outro grande personagem do seu tempo e também banido pela ditadura, Celso Furtado, sobre a Operação Nordeste e as diretrizes para superar a condição “atrasada” para alguns, “injusta” para outros, daquela região brasileira, um debate no campo intelectual do desenvolvimentismo. Josué integrou o campo daqueles que tinham clara visão da importância do papel do Estado e das reformas então chamadas de estruturantes no enfrentamento das injustiças e desigualdades sociais e na promoção de um desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. Entre as questões abordadas por ambos, Furtado e Josué, estavam uma população classificada como excedente ou ‘sobrante’ para o ideário da modernização, as repercussões da pobreza física sobre as pessoas que lá vivem há séculos, e as opções produtivas mais adequadas ao semiárido.
Entre as repercussões práticas da ciência que praticou e ajudou a desenvolver e também de sua militância, mencionem-se dois exemplos de políticas públicas de grande magnitude em que esteve envolvido no Brasil. O mais ressaltado é a criação, ainda na década de 1950, de um programa nacional de alimentação escolar, tendo participado também na instituição do salário-mínimo, exemplos cuja importância dispensa comentários. Muitas outras menções poderiam ser feitas para fazer jus as suas contribuições relativas à alimentação e nutrição que cobriam o amplo espectro que vai da saúde e nutrição até as dimensões socioeconômica, espacial e cultural subjacentes à condição alimentar e nutricional dos indivíduos, grupos sociais e países. Desnecessário detalhar sua extensa e diversificada produção bibliográfica que inclui ensaios, romance e roteiros de cinema.
Ressalto ainda a faceta do humanista integrante de uma constelação – infelizmente, tornada mais rarefeita com o passar do tempo – de grandes pensadores com formação intelectual humanista e com sensibilidade para abordar as carências, tragédias e desafios com os quais se defrontam indivíduos e grupos sociais vulnerabilizados, e também os países. A disposição de enxergar, compreender e atuar no enfrentamento das manifestações da miséria e iniquidades carregava a marca do convívio com a miséria em sua Recife natal registrado numa obra literária, “Homens e Caranguejos”, mas também resultava de princípios éticos que ditaram escolhas e engajamentos ao longo da sua vida, com um custo pessoal altíssimo como sabemos.
Pode-se classificar Josué como um autor clássico não apenas porque suas formulações ultrapassam os limites do seu tempo. Autores considerados clássicos tê m sua atualidade dada não pelos diagnósticos e soluções, quase sempre datadas, que possam ter formulado, se não pelo fato de que suas abordagens iluminam nossa maneira de pensar a condição presente, suas raízes históricas e perspectivas futuras. Há que evitar incorrer em costumeiros anacronismos de fazer atualizações apressadas do que disse anteriormente o autor, do tipo “vamos ver se o que Josué falou segue sendo válido ou não”.
Feita a ressalva, gostaria de revisitar um documento de 1953 no qual Josué, ainda no exercício da Presidência do Conselho da FAO, apresentou um programa de dez pontos para vencer a fome. Trata-se de um breve exercício de cotejar os fatores que Josué considerava nucleares numa estratégia de enfrentamento da fome com a realidade não apenas brasileira, mas de um bom número de países. A primeira constatação relevante é a de que a maioria dos pontos elencados por Josué permanece como focos de conflitos socioambientais ou como objetivos de busca permanente, mesmo que com contornos distintos. Nessa condição se enquadram o combate ao latifúndio e ao monocultivo em grandes extensões, a intensificação do que chamou de “agricultura de sustentação” com base na policultura de alimentos em pequenos estabelecimentos e no aproveitamento de terras cultiváveis nas áreas circunvizinhas dos grandes centros urbanos, o apoio ao cooperativismo, a existência de políticas de crédito e garantia de preços mínimos, e a difusão de bons hábitos alimentares.
Cito dois pontos não isentos de alguma controvérsia. Um deles é a proposta de progressiva redução até a completa isenção de impostos sobre as terras destinadas integralmente ao cultivo de “produtos de sustentação” que, nos dias de hoje, demandaria critérios adicionais em face do grau de concentração atingido pelo monocultivo em grande escala de produtos agroalimentares. O outro ponto diz respeito à proposta de mecanização intensiva da lavoura que, certamente, expressava o contexto da década de 1950 no qual emergiu o que alguns consideram como a “boa revolução verde”, enquanto que os rumos posteriormente tomados pela inovação e progresso técnico implicam muitas cautelas e não poucas resistências.
Acrescente-se no elenco de pontos de Josué de Castro a questão da formulação e implementação de políticas públicas que, mais contemporaneamente, adquiriu a condição de fator determinante envolvendo muito mais do que a adequação de instrumentos e técnicas. Refiro-me à evolução na direção de valorizar a participação social, ao lado da perspectiva de integração de programas públicos ou da intersetorialidade das ações em face de fenômenos multidimensionais, como são os casos da fome e da má nutrição.
Mais do que um clássico incontornável, entendo que Josué pode legitimamente ser incluído entre os chamados intérpretes do Brasil, um dos grandes pensadores que ajudam a compreender o país, inclusive nas suas mazelas. Ele interpretou o Brasil por meio da pesquisa e do debate público. E, como sabemos, foi um combatente em âmbito internacional também. Politizou um tema tabu e tinha uma clara visão do papel do Estado em promover reformas estruturantes para enfrentar as várias desigualdades que caracterizam a formação social brasileira.
Nesses termos, Josué inaugurou o que chamo de ‘politização da fome’ no Brasil. Por politização da fome entendo as abordagens que secundarizam e, mesmo, superam tecnicismos, sejam eles oriundos do produtivismo ou do nutricionismo. Superam sobretudo preconceitos culturais que querem atribuir a seres inferiores sua condição de faminto, colocando destaque nos determinantes socioeconômicos e políticos da fome que, assim entendida, se torna resultado da ação humana. Josué inaugurou a perspectiva de politizar a fome no Brasil desde suas primeiras pesquisas até sua ascensão como personagem público, perspectiva que se desdobrou na emergência do campo político da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação no Brasil (campo político da SSAN/DHA) a partir da segunda metade da década de 1980, com o fim da ditadura militar, conforme desenvolvi em outro lugar[2].
Esse campo político, na medida em que foi sendo construído reunindo um conjunto muito amplo de atores sociais, representou o aparecimento de antagonismos com relação às estruturas dominantes na produção, processamento e comércio de alimentos no Brasil e respectivas incidências sobre os padrões de consumo. Foi, sim, a emergência de um campo contra-hegemônico produto da redemocratização do país e do que caracterizo como ‘tempos democráticos de construção’, em contraposição aos “tempos obscuros de desconstrução” pós-golpe de 2016. Esta construção social da SSAN/DHA, que tem um requisito democrático forte, contribuiu para dar corpo à decisão política de colocar a fome na prioridade da agenda pública brasileira – mérito do então Presidente Lula – desaguando em uma experiência de governo que, a despeito dos seus limites, desenhou e implementou um conjunto de políticas integradas e participativas que permitiram ao país progredir de forma firme e sustentada no alcance da segurança alimentar nutricional.
Dentre o conjunto grande de iniciativas, chamo a atenção para as que foram fundamentais: geração de emprego formal, valorização do salário-mínimo com todos os seus desdobramentos em outras rendas, o instrumento da transferência de renda que foi o Bolsa Família, os vários apoios à agricultura familiar, a reformulação da alimentação escolar, construção de cisternas rurais no semiárido e eletrificação rural. Em suma, o que se conseguiu, que se logrou, foi o resultado de um pacote de ações e não de uma “bala de prata”, perspectiva comum entre economistas, tecnocratas e políticos assemelhados. Foi um conjunto de ações que, além de integradas, contaram com ampla participação da sociedade, em especial, por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e seus congêneres nas esferas estadual e municipal.
Não obstante, ganha relevância em âmbito nacional e internacional o tema das várias desigualdades, obrigando tratar das suas várias manifestações em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, mas o espaço dessa nota não permite ir além do registro necessário. Além das várias manifestações que conhecemos, chamo a atenção para as desigualdades sistêmicas de que são portadores os sistemas alimentares no Brasil. A começar pelo paradoxo de este país ser um dos maiores produtores mundiais de alimentos onde persiste a fome de amplos segmentos sociais. Além disso, o presente momento de reconstrução de políticas, instituições e espaços públicos se vê afetado por uma importantíssima disputa de narrativas sobre sustentabilidade, alimentação adequada e saudável e mudanças climáticas, temas entrelaçados nas formas de organização dos sistemas alimentares e suas repercussões em termos desigualdades, equidade social e justiça.
Por tudo o que disse – e pelo muito que não pude dizer nessa breve apresentação – fica fácil entender por que o CONSEA, assim que recriado em 2003, escolheu Josué de Castro para seu patrono e procurou honrar essa escolha em sua atuação. Josué foi um dos grandes pensadores do Brasil e do mundo que, sem pintar quadros róseos, ousava apontar caminhos de construção de uma sociedade mais justa e respeitosa de direitos, como o direito humano à alimentação adequada e saudável, ou à ‘comida de verdade’ como vem sendo propagado pelo campo político da SSAN/DHA.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Professor Titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde coordena o Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESAN).
[2] Maluf, R. S. (2021). Participação social e política dos alimentos no Brasil: elementos para uma reflexão a partir do CONSEA. In: Schubert, M. N.; Schneider, S.; Tonin, J. (orgs.), Desafios e tendências da alimentação contemporânea: consumo, mercados e ação pública. P. Alegre: Ed. UFRGS.
Publicado no Boletim Lua Nova
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