Retomada de políticas marca combate à fome em 2023, baixo orçamento e falta de plano para a reforma agrária são desafios

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Plano Brasil Sem Fome traz inovações em relação à questão climática e agroecologia, mas tem meta insuficiente para a redistribuição fundiária

Por Leandro Melito especial para O Joio e o Trigo | 09/10/2023

Em 2011, Dilma Rousseff elegeu como prioridade de mandato um plano cuja meta estava definida pelo próprio nome: Brasil Sem Miséria. O programa estruturava uma enorme articulação interministerial para acabar com a extrema pobreza. Três anos depois, o país deixou o Mapa da Fome das Nações Unidas, o que significa dizer que menos de 5% das pessoas viviam em insegurança alimentar grave, ou seja, fome. 

Lançado doze anos mais tarde por Luiz Inácio Lula da Silva, o Plano Brasil Sem Fome dá uma medida do retrocesso: se tudo for feito conforme previsto, em 2030 o país voltará ao patamar de 2014. O conjunto de propostas também oferece um retrato das limitações do funcionamento do Estado e do poder da bancada ruralista, já que a reforma agrária, ponto forte de pressões do agronegócio, tem metas insuficientes – e, sem terra, é difícil promover a produção de alimentos e, portanto, o combate à fome

Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em 19 de setembro, o presidente destacou a fome como um dos problemas mundiais a serem enfrentados. “A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã”, disse.

Desse total de pessoas com fome no mundo, pelo menos 4,5% vivem no Brasil, de acordo com dados da Rede Penssan de 2022. São 33 milhões com insegurança alimentar grave e 126 milhões com algum tipo de insegurança alimentar no país.

Marca de seus governos anteriores retomada na campanha eleitoral, a erradicação da fome tem sido uma tônica nos discursos de Lula desde o início de seu terceiro mandato. Poucos dias antes de discursar na ONU, o governo federal apresentou o Plano Brasil Sem Fome, que estabelece a meta de erradicar a insegurança alimentar grave no Brasil até 2030 e detalha programas e diretrizes de como pretende chegar a esse resultado. 

O programa lista as ações implementadas este ano, com destaque para a retomada das políticas criadas em seus governos anteriores, como a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Cisternas, e o fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). 

Foram essas políticas que tiveram papel fundamental para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014  – isso significa que menos de 5% dos habitantes se encontravam em insegurança alimentar grave. 

O Joio e O Trigo ouviu pesquisadores e atores da política de combate à fome no atual governo para entender para onde apontam as propostas do Plano Brasil Sem Fome e quais são as suas limitações. 

Se o tema central da fala de Lula na ONU teve muita semelhança com aquele de 2003 em seu primeiro mandato presidencial, o Brasil passou por uma série de mudanças e o sistema alimentar não é o mesmo daquele período: a soja, por exemplo, ocupava 18 milhões de hectares em 2002, e agora está em 42,8 milhões – podendo alcançar 45,3 milhões de hectares no próximo ciclo, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). O arroz, o feijão e a mandioca têm sido pressionados pelo avanço do cultivo de grãos para exportação. Assim como as commodities ganharam terreno, a influência de seus representantes no Congresso Nacional também aumentou. 

“Não é retomar do ponto que parou: é retomar num país que está muito mais complexo, com uma conjuntura muito mais desafiadora em todos os aspectos, políticos e econômicos, e também na agenda de segurança alimentar e nutricional”, aponta a presidente do Consea, Elisabetta Recine.

Ao olhar para o retrocesso da política de combate à fome nos últimos seis anos, Recine destaca a necessidade de avançar na consolidação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), de forma a garantir que essas políticas se tornem permanentes. Composto pelo Consea e pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), o Sisan é responsável pela implementação e pela gestão participativa da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional de forma transversal entre os ministérios, assim como nos estados e municípios. Criado em 2006 pela Lei nº 11.346, o Sisan tem o objetivo de assegurar o direito à alimentação adequada a toda a população residente no território nacional.

Nathalie Beghin, co-diretora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), considera que a retomada dessas políticas, que envolvem ações articuladas entre os diferentes ministérios, é fundamental para combater as diferentes causas da fome no país. 

“O governo retomou uma experiência bem sucedida e aprofundou, o Brasil Sem Fome é resultado disso. Quais são os ingredientes fundamentais para combater a fome? A intersetorialidade, vários ministérios sociais e econômicos atuando conjuntamente para enfrentar esse problema, junto com a participação social.”

Para Walter Belik, diretor do Instituto Fome Zero, a avaliação é de que a política de combate à fome nesse primeiro ciclo de governo “está caminhando bem”, com destaque para a manutenção do Bolsa Família no valor de R$ 600, com um complemento de R$ 150 por filho. “Isso é um esforço orçamentário gigantesco, considerando a base do Bolsa Família. O governo avançou muito, porque o primeiro ano é realmente de recomposição. Os programas tradicionais estão voltando, muitos deles com novidades que são interessantes.”

Retomado com inovações, PAA disputa orçamento

Entre as iniciativas retomadas pela atual gestão, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi  uma das estratégias que contribuíram para retirar o Brasil do Mapa da Fome em 2014. A retomada, porém, esbarrou na composição orçamentária para este ano. Os R$ 500 milhões destinados para essa política foram insuficientes para a demanda de compras públicas da agricultura familiar, cuja oferta chegou a R$ 1,13 bilhões. 

Segundo a Conab, os projetos apresentados reúnem 77 mil famílias agricultoras, indígenas, assentados da reforma agrária, povos e comunidades tradicionais, com previsão de entrega de 248 mil toneladas de alimentos oriundos da agricultura familiar a serem doados a pessoas em situação de insegurança alimentar.Mais de 3.600 associações e cooperativas apresentaram projetos, distribuídos em 1.572 municípios, sendo 49% do Nordeste, 19% do Norte, 15% do Sudeste, 10% do Sul e 8% do Centro-Oeste.

“A gente está chegando ao final de setembro sem nenhum contrato assinado e boa parte disso se deve às normas, burocracias que vão emperrando tanto a questão do acesso, quanto da contratação de um programa tão necessário e tão eficaz para o combate à fome. Então a gente vive uma contradição bastante grande, de ter uma intencionalidade política que na prática não se resolve”, aponta Ceres Hadish, do MST.

Programa de Aquisição de Alimentos foi relançado no país em março deste ano. Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil

Retomado pelo governo federal no dia 22 de março, o PAA passou por revezes na negociação com o Congresso Nacional. A medida provisória que instituiu o programa venceu no dia 1º de julho e o governo apresentou um projeto de lei emergencial para instituir o programa, que tramitou na Câmara e no Senado e foi aprovado ao final daquele mês, quando a Conab iniciou o processo de regulamentação.  

“Estamos na fase de negociação e ajuste de preços com as organizações e aguardando o envio da documentação por parte delas para fazer a contratação. A expectativa é de que até o dia 13 de outubro tenhamos a possibilidade de assinar os novos contratos e repassar os recursos, dando início efetivamente às compras e doações do programa”, explica Silvio Porto, diretor-executivo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável pela execução da modalidade de compra com doação simultânea do PAA.

Em entrevista ao Joio, Porto afirma que a questão orçamentária é hoje o principal desafio na retomada. “O grande problema nesse momento, de fato, está sendo um volume de recursos muito aquém da demanda que nós recebemos. Isso está gerando um processo de crítica e tensionamento que eu acho bastante natural e justo dos movimentos sociais. A nossa expectativa é conseguir, no mínimo, dobrar os recursos ainda este ano e avançarmos em direção a um atendimento bem mais expressivo do que conseguimos até agora.”

A gestão bolsonarista propôs para o orçamento deste ano um valor de R$ 2,6 milhões para essa política. A equipe que atuou no processo de transição conseguiu assegurar um valor de R$ 500 milhões para o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), que destinou metade dos recursos para a Conab e outra metade para a execução do PAA via estados e municípios. Com duas suplementações feitas ao longo do ano, uma para compra específica de produção indígena e outra para a compra do leite, diante da crise enfrentada pelo setor, os recursos da Conab chegaram a quase R$ 400 milhões este ano.

“Isso ainda é insuficiente porque nós temos uma demanda superior a R$ 1 bilhão. O governo está se mobilizando, discutindo e avaliando essa questão. Possivelmente nós teremos suplementação até novembro, não sabemos ainda em que ordem de grandeza”, afirma o diretor-executivo da Conab.

O volume de produção ofertado de R$ 1,13 bilhão para as compras públicas foi apontado por Silvio Porto como “uma resposta fenomenal” das organizações em relação à retomada do PAA. Cerca de 50% dessa demanda veio do Nordeste, região que historicamente mais demandou e acessou o PAA, “mas não nessa magnitude”, destaca. Vale lembrar que, historicamente, camponeses com dificuldade de acesso à água estão na escala mais vulnerável em termos de insegurança alimentar e nutricional. 

A principal mudança nessa retomada inicial do programa, explica Porto, aconteceu em relação à região amazônica, responsável por 19% dos projetos apresentados.

Somados, povos originários e comunidades tradicionais representam 18% do total de recursos em propostas apresentadas para o programa. No Maranhão quase 30% da demanda veio de quilombolas, em Roraima 17% foi de produção indígena, no Amazonas a pesca artesanal representou 34% e no Amapá a produção extrativista representou 60% dos recursos apresentados pelo estado.

Porto atribui esse avanço a mudanças feitas na forma de executar o PAA, que passou a considerar o Cadastro Único do governo federal como um elemento de reconhecimento de identidade para que essas populações consigam acessar o programa. Em relação ao público da reforma agrária, o programa passou a considerar o cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Reforma agrária e recuperação de áreas plantadas são principais desafios

Embora o Plano Brasil Sem Fome preveja a retomada do Programa Nacional de Reforma Agrária,  instituído por meio do Decreto nº 91.766 de 1985 que pretende a desapropriação dos imóveis rurais para assentamento de famílias do campo, a meta de regularizar 40 mil famílias em assentamentos em 2023 é considerada insuficiente pelo MST, que tem hoje uma população aproximada de 70 mil famílias acampadas em todo o país, segundo o movimento. A proposta do MST é a construção de um plano estrutural de reforma agrária para 200 mil famílias nos próximos quatro anos. 

Ceres Hadish, da coordenação nacional do MST, defende a necessidade de um plano de redistribuição fundiária que combata desigualdades, promova o desenvolvimento do campo e potencialize a produção de alimentos. 

“A gente está falando de algo mais profundo: não só olhar a fome, que é um sintoma, mas olhar a causa dessa fome, que é um problema estrutural do nosso país. Nesse sentido, não tem como pensar o combate à fome no Brasil sem pensar em uma política de reforma agrária.”

Brasília – Sem-terra fazem manifestação pela reforma agrária. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Além de potencializar a produção de alimentos, a reforma agrária também é fundamental, aponta Hadish, para combater a insegurança alimentar no campo brasileiro. “A gente sempre olha para a fome como uma questão das grandes cidades e das periferias. Mas a fome também assola fortemente as famílias pobres do campo. É preciso pensar a reforma agrária nessa ótica, como uma saída estrutural para esse problema.”

Durante os mandatos anteriores de Lula e Dilma Rousseff, foram distribuídos 50,7 milhões de hectares de terra no país a pequenos agricultores – o que representa 69% de toda a distribuição realizada desde 1994. Cerca de 740 mil famílias foram beneficiadas, segundo o Incra, órgão responsável por executar essa política pública, em documento apresentado ao Supremo Tribunal Federal. 

O Plano Brasil Sem Fome não traz uma meta para o tamanho da área destinada à reforma agrária.

Em entrevista no início do mandato de Lula, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, chegou a especular sobre caminhos para realizar a reforma agrária em um contexto no qual as terras estão altamente valorizadas e, portanto, a desapropriação se torna economicamente difícil. Uma das alternativas seria destinar a assentamentos áreas públicas que não estejam sendo utilizadas. Um documento com o balanço dos oito meses de governo publicado pelo Incra ao final de setembro, aponta que a meta do governo federal para 2024 é o assentamento de 5.711 novas famílias. Até o momento, somente 726 foram assentadas. Em relação à regularização de famílias nos Planos de Assentamentos (PAs), foram 3.684 do total de 40 mil previstas para este ano.

Arroz e feijão vs soja

Segundo o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola (LSPA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006, que marca o início da série histórica, até 2022, a área de plantio de arroz caiu 44% no Brasil, a do feijão 32%. Nesse mesmo período, a área cultivada de soja teve um aumento de 86%, enquanto a área do milho avançou 66%.

Na segunda quinzena de setembro, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), divulgou uma perspectiva que aponta para a recuperação de área de arroz e feijão na safra 23/24 em 10% e 1,9% respectivamente. Em 2023, a produção desses grãos foi de 1.479,6 ha para o arroz e 2.693,6 ha para o feijão. 

A 11ª edição das Perspectivas para a Agropecuária – Safra 2023/24, publicada pela Conab na segunda quinzena de setembro, prevê uma recuperação das áreas plantadas dessas duas culturas. Essa perspectiva, porém, resulta principalmente do efeito do El Niño sobre a safra da soja, que mesmo assim tem expectativa de crescimento de sua área plantada para podendo alcançar 45,3 milhões de hectares no próximo período.

Menos arroz e feijão, mais soja

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)

A retomada das áreas de produção de arroz, feijão e mandioca é uma preocupação do governo, explica o diretor-executivo da Conab, Silvio Porto. “Houve uma iniciativa em relação ao crédito, com uma taxa diferenciada de juros em relação a esses alimentos. E colocamos também um valor diferenciado para o preço mínimo.”

Ele reconhece que esse tema precisa ser ajustado, com instrumentos de política agrícola mais atrativos em relação a esses alimentos básicos comparados à soja. “Há um grande problema em relação à soja. O custo de produção, a facilidade de manejo, a liquidez do produto e o próprio preço de mercado, tudo isso conta em favor da soja”, diz Porto. 

Nas estimativas da Conab, a soja terá avançado três milhões de hectares apenas ao longo da safra atual, ou seja, o avanço desse cultivo em um único ano é maior do que toda a área voltada à produção de arroz. O atrelamento ao mercado financeiro e a garantia de comercialização tornam a competição bastante desigual – e, nesse ponto, o Brasil sem Fome não oferece respostas claras. 

Porto conta que esse tema está sendo objeto de estudo interno no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), para que o Plano Safra do próximo ano possa garantir uma recuperação de área dessas culturas, principalmente em relação ao caso do arroz no Nordeste – hoje, o cultivo é extremamente concentrado no Rio Grande do Sul.

Combate à fome será integrado à saúde e assistência social

Uma novidade que o Plano Brasil Sem Fome apresenta em suas diretrizes é a integração em nível local entre as unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Sisan para identificação, atendimento e encaminhamento das situações de insegurança alimentar e nutricional. O SUS já dispõe da Política Nacional de Alimentação e Nutrição que responde à agenda de segurança alimentar e nutricional e a integração com o SUAS com o Sisan começou a ser discutida em 2017. A integração entre os três sistemas é um dos tópicos de discussão da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, marcada para dezembro. 

Ao identificar uma pessoa nessa situação, os profissionais do SUS poderão fazer o encaminhamento para algum sistema local, como restaurantes populares, por exemplo. Agricultura urbana e periurbana, cozinhas solidárias e o PAA são outros exemplos de estruturas do Sisan que devem ser integradas nesse sistema, que será implantado em 50 grandes centros urbanos.

Agroecologia

Se o contexto mudou para pior em relação ao uso da terra, os últimos anos garantiram um avanço importante na discussão sobre agroecologia. Isso se reflete nas propostas do Brasil Sem Fome, que dá uma ênfase maior ao tema, por meio do fortalecimento da agricultura familiar de base agroecológica e do estímulo à “transição produtiva agroecológica dos produtores familiares, com foco na produção de alimentos”. 

O primeiro passo nessa direção foi a retomada da Política Nacional de Agroecologia, por meio da restituição da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e da Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO), com o objetivo de atender o desafio, expresso no plano, de assegurar a produção de alimentos básicos, com diversificação da produção e valorização das culturas alimentares, “tendo, por perspectiva, a redução do uso de agrotóxicos e o fortalecimento de um sistema produtivo de base agroecológica”.

Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificações (Sinan), do Ministério da Saúde, de 2007 a 2022 houve uma média anual de 4 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no país, com 2,6 mil mortes nesse período em decorrência da contaminação por esses produtos. Entre 2006 e 2022, foram liberados no Brasil 4.161 tipos de agrotóxicos e substâncias químicas, segundo dados do Ministério da Agricultura

Entre 2007 e 2022, houve uma média anual de 4 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil. Foto: AkaratWImages

Além da redução no consumo de produtos químicos, a agroecologia também possibilita que os pequenos agricultores retomem a produção de alimentos essenciais na dieta básica da população, abandonados pela agricultura de exportação, que prioriza a produção de commodities. 

Para viabilizar a transição agroecológica proposta no Plano Brasil Sem Fome, Elisabetta Recine destaca a necessidade de  um grande investimento, com reforço da assistência técnica para as comunidades produtoras e a garantia do acesso à terra. “A gente precisa financiar adequadamente com o orçamento público essa transição. É preciso ter um reforço profundo para retomar a assistência técnica para essas famílias e uma ação efetiva na questão da reforma agrária. É preciso garantir o acesso à terra para quem quer produzir.”

A volta da participação social no combate à fome

Colegiado ligado à Presidência da República, o Consea simbolizou o desmonte da estrutura de combate à fome no governo de Jair Bolsonaro (PL), sendo extinto no primeiro dia de seu governo. 

Como instância de participação social, aconselhamento e fiscalização das políticas de segurança alimentar e nutricional, o Consea apresentou contribuições para a elaboração do Plano Brasil Sem Fome, cuja estruturação ficou a cargo da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan). O processo foi coordenado pela Secretaria Extraordinária de Combate à Fome e à Pobreza do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). A exemplo do Consea, o MDS foi extinto e a Caisan ficou inoperante durante o governo Bolsonaro.

Nathalie Begin participou do Consea no momento de sua criação, em 1992, e foi relatora da primeira Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, principal instância de participação social, convocada pelo conselho. Ela destaca que, apesar do desmonte das estruturas, a mobilização popular em torno dessa agenda manteve viva a discussão sobre as políticas de combate à fome nos últimos quatro anos. 

“A reinstalação do Consea, ver que essa prioridade está voltando à cena pública, na Presidência, foi um momento muito emocionante. O desafio de construir o Brasil Sem Fome, de retomar todos os programas, tudo isso o Consea está discutindo de forma permanente, e são discussões muito ricas.”

Além do papel de articulador entre a sociedade e as diversas instâncias de governo, o Consea garante a participação da população negra, de comunidades tradicionais e populações indígenas na elaboração dessas políticas.

MST comemorou retomada do Consea com um ‘banquetaço’. Foto: Andreas Gam/MST

Retomado em fevereiro deste ano, o Consea iniciou a discussão do que viria a ser o Plano Brasil Sem Fome já em sua primeira Plenária, a partir das diretrizes apresentadas pelo governo federal. Um grupo de trabalho foi montado no âmbito do colegiado para acompanhar e contribuir com o desenvolvimento do plano. 

Na avaliação de Elisabetta Recine, a principal contribuição do Consea na elaboração foi priorizar as populações mais vulneráveis à fome, com o olhar para as questões de renda, raça e gênero, aliadas às discussões sobre território e mudanças climáticas.

Na discussão do programa, os conselheiros se concentraram nos aspectos de participação e mobilização em torno da agenda da fome, no sentido de garantir uma participação efetiva da sociedade na sua implementação “Estratégias de controle e participação social precisam ser envolvidas no desenvolvimento do Brasil Sem Fome, na implementação e no monitoramento. O Consea se colocou legitimamente como o protagonista desse processo, porque institucionalmente e legalmente ele é esse espaço de articulação”, aponta Recine.

Além das mudanças diretamente relacionadas ao sistema de produção de alimentos no país, ela aponta que há um desafio a ser enfrentado em relação ao posicionamento dos diferentes atores sociais na atual conjuntura, com destaque para o aumento do poder político do agronegócio, com forte incidência no Legislativo. 

“É importante refletir como uma agenda de combate à fome se coloca dentro do momento que a gente está vivendo. A elaboração do Brasil Sem Fome precisa ser fortalecida politicamente, com um compromisso político e uma articulação efetiva na implementação das ações e dos programas dessas estratégias, realmente articulada e com um compromisso coletivo.” 

A contribuição popular acontece ao longo do ano por meio de conferências estaduais que confluem para a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, convocada pelo Consea para dezembro deste ano. Nesse espaço, destaca Recine, serão articuladas as políticas para o 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Política Nacional de Abastecimento

Em fase de elaboração pela Conab, uma inovação política para o combate à fome que deve ser apresentada na Conferência em dezembro é a Política Nacional de Abastecimento.

Ao final de setembro, o Consea aprovou uma recomendação a Lula reforçando a necessidade de criação dessa política. A elaboração dessa agenda resgata tentativas anteriores apresentadas ao governo a partir de 2005 e toma como base um projeto de lei elaborado pelo Consea em 2012. 

“Estamos partindo desse projeto de lei, fazendo uma atualização para o contexto atual para estruturar essa proposta de uma política nacional. Uma vez lançada essa política, nós queremos apresentar, para o próximo ano, o plano nacional, dando concretude em termos de ações e articulação com estados, municípios e sociedade civil, por meio dos conselhos e também na articulação com as Caisans estaduais e municipais”, explica Silvio Porto.

Para elaboração dessa política, a Conab propõe a criação de um grupo de trabalho na Caisan que envolva MDS, Agricultura, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia e o Ministério da Pesca. 

Retomada dos estoques reguladores

Outra política que está sendo retomada no Plano Brasil Sem Fome no âmbito são os estoques reguladores de alimentos por meio de compras públicas executadas pela Conab, abandonados pelos governos Temer e Bolsonaro. Para este ano, o Programa de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) prevê a formação de um estoque público de 500 mil toneladas de milho (R$ 400 milhões) e 3,7 mil toneladas de leite (R$ 100 milhões). 

Com limitações em sua rede própria de armazenamento, a Conab opera com base em uma rede de terceiros, em um processo de prestação de serviços. Como as compras públicas para estoque deixaram de acontecer, a partir de 2015, muitos prestadores de serviço que formam essa rede não renovaram seu credenciamento, devido aos custos envolvidos nesse processo, que exige, entre outras coisas, a adequação técnica desses prestadores.

“É um processo bem difícil essa retomada. Para vários armazenadores privados, que não tinham nenhuma perspectiva de seguir prestando serviço para a Conab, não fazia sentido manter o cadastro ativo. Tivemos que fazer uma recomposição da tarifa para a prestação desse serviço, em torno de 34%, e começar um processo de busca ativa com os armazenadores para que voltem a ser credenciados”, explica Silvio Porto.

O Plano Brasil Sem Fome também prevê um Programa de Garantia de Preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade (PGPMBio), que estima para este ano acesso à subvenção para preço comercializado inferior ao mínimo estabelecido pela Conab para 5 mil extrativistas.

“Estamos trabalhando na revisão da própria metodologia para que tenhamos um referencial de preços ainda melhor para o próximo ano, para que possamos fazer todo um levantamento de campo e avançarmos ainda mais em direção ao público do extrativismo em 2024, não só na Amazônia, mas também no Cerrado, na Caatinga e no Sul do Brasil”, diz Porto. 

Plano de governo

Ainda no horizonte, a política nacional de abastecimento, com a retomada dos estoques reguladores e ampliação de políticas de financiamento e apoio à produção de  alimentos, aos pequenos agricultores e à agricultura urbana, estão entre as metas previstas no plano de governo apresentado por Lula em 2022.

No documento, Lula se compromete com a soberania alimentar da população brasileira, por meio de um “novo modelo de ocupação e uso da terra urbana e rural, com reforma agrária e agroecológica, com a construção de sistemas alimentares sustentáveis, incluindo a produção e o consumo de alimentos saudáveis”.

O plano de governo aponta que as políticas de compras públicas “podem servir de incentivo à produção de alimentos saudáveis e de qualidade que têm tido sua área plantada nos últimos anos por falta de apoio do Estado”. 

Para repensar o padrão de produção e consumo e a matriz produtiva nacional, “com vistas a oferecer alimentação saudável para a população”, o plano aponta estratégico o fortalecimento da produção agrícola nas frentes da agricultura familiar, agricultura tradicional e do agronegócio sustentável.

“A experiência brasileira já demonstrou que esse é o caminho para superar a crise alimentar e ampliar a produção de alimentação adequada e saudável, por meio de medidas que reduzam os custos de produção e o preço de comercialização de alimentos frescos e de boa qualidade, fomentem a produção orgânica e agroecológica e incentivem sistemas alimentares com parâmetros de sustentabilidade, de respeito aos territórios e de democratização na posse e uso da terra”, aponta o documento.

Publicado originalmente no O Joio e o Trigo
https://ojoioeotrigo.com.br/2023/10/combate-a-fome/