Pesquisa realizada com dados do Ministério da Saúde também identificou obesidade em adultos das mesmas comunidades, combinação que indica alimentação de má qualidade
Por Edison Veiga na Deutsche Welle Brasil | 18/12/203
Entre as crianças ribeirinhas de até 5 anos, 6,5% têm peso abaixo do ideal no Brasil – percentual 57% maior do que a média nacional, de 4,13%.
Aos 5 anos de idade, um menino ribeirinho tem, em média, 103,5 cm e pesa 16,1 kg, e uma menina ribeirinha tem 107 cm e pesa 16,4 kg. De acordo com o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o ideal é que crianças nessa idade tenham 110 cm e 18,4 kg, se do sexo masculino, e 109,5 cm e 18,2 kg, se do sexo feminino.
Esses são os principais achados de um estudo publicado nesta segunda-feira (18/02) na revista Epidemiologia e Serviços de Saúde.
“Verificamos, por exemplo, que o valor mediano de peso das meninas ribeirinhas é quase dois quilos menor do que a média padrão da OMS”, comenta o nutricionista sanitarista Italo Aguiar, pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Com relação à altura, podemos constatar que o valor mediano dos meninos ribeirinhos da amostra foi 6,5 cm menor do que o padrão global para o mesmo mês de idade”.
Aguiar é um dos sete autores do trabalho, que contou também com a participação de acadêmicos da Universidade Estadual do Ceará (UECE), da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Tulane, em Louisiana, nos Estados Unidos.
A pesquisa foi realizada por meio de análise de dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde, a partir de coleta rotineira de profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS). As informações estão na plataforma Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN). Os dados referem-se ao ano de 2019, os mais recentes disponíveis.
O nutricionista Aguiar destaca “as grandes diferenças entre os indicadores dos povos e comunidades tradicionais registrados no SISVAN”. Segundo ele, o caso das comunidades ribeirinhas saltou aos olhos, porque os pequisadores notaram que os “indicadores de déficit de peso e estatura”, nessas populações, eram “consistentemente mais elevados do que os demais povos e comunidades”. Eles partiram do princípio de que aqueles que integram povos e comunidades tradicionais costumam ser mais vulneráveis à insegurança alimentar do que a população em geral.
Para Aguiar, essas informações indicam uma “alta probabilidade” de desnutrição entre crianças ribeirinhas. Mas, como a pesquisa se limitou à análise dos dados antropométricos, sem avaliação clínica e auxílio de exames laboratoriais não é possível cravar esse diagnóstico.
Entre adultos, obesidade
No total, os pesquisadores analisaram dados de 14 mil indivíduos de 0 a 101 anos de idade que constam do SISVAN como integrantes de povos tradicionais – essas comunidades representam 1% dos registros do sistema. Ribeirinhos são metade desse total, seguidos por geraizeiros (13%) e quilombolas (10%).
Outra informação revelante é que, entre os adultos, se considerados tanto ribeirinhos quanto outras comunidades tradicionais, a obesidade foi constatada em 23% das mulheres e 11% dos homens. Os índices são inferiores à média nacional se levado em conta o mesmo ano de 2019 – 30,2% para mulheres e 22,8% para homens. No entanto, a existência de obesos em uma mesma população em que há déficit de peso e altura entre as crianças é um indicativo de má qualidade alimentar.
Um ponto importante é a localização geográfica dessas populações ribeirinhas – na maior parte, a região amazônica. Este fator, sozinho, já traz um cenário de pobreza. De acordo com dados de levantamento realizado pelo Centro de Políticas Sociais FGV Social, as quatro maiores taxas de pobreza extrema no Brasil estão na Amazônia.
“Entre 146 estratos geográficos, a maior taxa é a do Vale do Rio Purus, no Amazonas, com 39,2% [da população] com renda abaixo de R$ 300 reais [dados de 2022]”, destaca o economista Marcelo Neri, diretor do centro, ao repercutir o estudo.
Outras três regiões da Amazônia Legal aparecem na sequência do ranking: Litoral e Baixada Maranhense, com 39,4%; Vale do Rio Madeira, com 35,1%; e Vale do Rio Juruá, com 30,7%.
Consequências na saúde
Para Adriana Adell, pesquisadora em promoção da saúde e segurança alimentar e nutricional na Universidade de São Paulo (USP), os dados são preocupantes. “Quando os indicadores apontam para baixo peso associado à baixa estatura, isso indica desnutrição crônica, persistente ao longo do tempo”, ressalta.
“Os impactos da desnutrição crônica são vastos, primeiramente porque a criança vivenciou a dura experiência da fome, que causará danos psíquicos e psicológicos para o restante da sua vida”, explica. “Além disso, há consequências físicas, como deficiência imunológica, dificuldades no desenvolvimento psicomotor e menor desempenho escolar”, detalha. “Infelizmente, esses impactos perduram ao longo da vida, aumentando o risco de doenças crônicas como diabetes, pressão alta e obesidade.”
De acordo com a nutricionista Ana Carolina Feldenheimer da Silva, professora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), isso ocorre porque, durante o processo de crescimento, é preciso “ter um peso adequado para garantir que o corpo tenha energia suficiente para alcançar a altura adequada”.
Na idade adulta, “pessoas que não conseguiram atingir o potencial de altura” acabam tendo facilidade para ganho de peso, ou seja, maiores chances de se tornarem obesas.
Adell lembra que esses grupos ribeirinhos estão principalmente na região amazônica, onde a sazonalidade das águas, com períodos de cheias e vazantes, dificulta a segurança alimentar. “Contudo, outros fatores externos têm agravado alarmantemente a situação alimentar dos povos ribeirinhos”, lembra ela, citando a contaminação de rios com mercúrio pela prática do garimpo ilegal, o que afeta peixes, água e a população.
“É urgente que governanças locais e nacionais priorizem esses dados e, em colaboração com a sociedade civil e universidades, desenvolvam políticas públicas para garantir a soberania e saúde dos povos originários […]. A proteção dos povos ribeirinhos, por si só, é apontada como uma solução para mitigar as mudanças climáticas, pois seu modo de vida contribui para a preservação do meio ambiente”, destaca Adell.
Para Silva, é preciso observar a qualidade da alimentação disponível para essas populações. “Há a questão quantitativa, mas também qualitativa das calorias. E isso é um debate importante. Muitas vezes o alimento que chega tem calorias suficientes, mas baixa qualidade, daí a gente tem essa questão da obesidade, do excesso de peso em adultos”, contextualiza a nutricionista. “Isso denota que são famílias provavelmente em insegurança alimentar, com alimentos de baixa qualidade, ultraprocessados”, explica.
Negligência histórica
“Infelizmente, não constitui uma novidade a condição dos povos e comunidades tradicionais, cujos indicadores de saúde e qualidade e expectativa de vida dos indivíduos é inferior ao do restante da sociedade”, lamenta o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para ele, esta é uma “herança da formação brasileira”. “Até hoje o Brasil não foi capaz de resolver os problemas sociais herdados e, a despeito dos avanços obtidos com a redemocratização […] e a Constituição de 1988, a dificuldade para implementá-los é gigante”, analisa ele, que classifica os dados trazidos pela pesquisa como “um verdadeiro desastre”, mas “que não surpreende”.
“Em que pese o arcabouço institucional e legal existente, as afirmações em defesa da populações vulneráveis e dos marginalizados não tem passado de arroubos retóricos e cartas de boas intenções, cuja implementação dificilmente impede resultados práticos pífios”, critica Mendes. “A pobreza, a fome e a desnutrição com todas as suas consequências estão aí para demonstrar o quão atrasado é o Brasil.”
Publicado na Deutsche Welle Brasil
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