Por Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb | Setembro de 2021
Muito provavelmente não há um brasileiro ou brasileira residente em território nacional que não tenha escutado, repetidas vezes, a expressão “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, conforme professa a campanha de marketing veiculada pelo maior conglomerado de mídia e comunicação deste país, o sistema Rede Globo. Trata-se diretamente da campanha publicitária “Agro – A Indústria – A Riqueza do Brasil”, uma das peças publicitárias com maior número de inserções na TV brasileira, o que, evidentemente, envolve recursos milionários.
O objetivo é claro: conquistar o consenso na sociedade brasileira de que o setor da economia recentemente intitulado Agro é quem assegura a economia nacional, sendo ele a “riqueza do Brasil”. Isso significa que a publicidade, somada ao poder político do Agro nas esferas públicas, sobretudo no Legislativo e Executivo, e sua presença dentro das universidades e institutos de pesquisa, tenta, a qualquer custo, posicionar o grande agronegócio como salvador da economia brasileira, proporcionando superávits comerciais e gerando renda e emprego através dos milhões de toneladas de produção agrícola e pecuária.
Conquistar corações e mentes para assumir esse discurso e construir essa convicção é o foco da campanha publicitária patrocinada pela JBS, maior empresa de carnes do mundo, e pela Ford, indústria automotiva com produtos voltados para a agropecuária. Segundo o diretor de marketing da TV Globo, Roberto Schmidt, o agronegócio precisa investir na construção de sua marca junto à população em geral, a fim de criar empatia e confiança: “a ideia é fazer com que o brasileiro tenha orgulho do agro”. Na publicação “O Agro é Paz. Análises e Propostas para o Brasil Alimentar o Mundo”, organizada pelo ex-professor universitário, ex-Ministro da Agricultura e assessor/investidor do Agro, Roberto Rodrigues, a estratégia de comunicação deve ser ambiciosa para criar a percepção de que o “Agro é Nosso”. Como versa na apresentação dessa publicação, “não seria um plano para a agropecuária e nem mesmo para o agronegócio e, sim, um plano para todos os brasileiros, cujo resultado final daria ao Brasil o título de campeão mundial da segurança alimentar” (RODRIGUES, 2018, p. 11).
Este é o propósito refletido na campanha publicitária que invade as casas dos brasileiros todos os dias. Inaugurada em 2016, entrou em sua terceira temporada em 2020 com a estratégia de envolver cada vez mais tudo e todos, por isso as peças publicitárias não propagandeiam apenas o grande produtor rural, passando a dar espaço à pequena produção, à chamada agricultura familiar (camponesa). Essa campanha foi patrocinada pela JBS (através da marca Seara) e Ford (devido à marca de caminhonete, Ranger) até 2020, sendo que, nesse ano, a JBS se retirou (substituída pelo Bradesco) por um acordo para tornar-se um dos patrocinadores do programa de entretenimento Big Brother Brasil, o que resultou em uma ampliação do alcance do “Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo”. Em um dos dias do programa, por exemplo, os competidores foram surpreendidos ao ver e vivenciarem a casa transformada em parque temático das salsichas Seara. Como é estratégico e recorrente nesse programa, um dos participantes representa, de alguma forma, o Agro. Boiadeiros e fazendeiros revezaram-se nas 21 edições do BBB, sempre encenando o que supostamente tem de moderno na agropecuária: a figura nada nacionalista do cowboy. Camponeses(as) e trabalhadores(as) rurais não pisaram “na casa mais vigiada do país”. Na última edição do programa, Caio Afiune foi o representante do Agro, a personificação da sua imagem midiática. Ele é fazendeiro, plantador de soja, milho e pecuarista no município de Anápolis, em Goiás. A este participante foi dedicada uma festa dentro da casa que não poderia ter outro tema e título: “o Caio é agro, o Caio é tech, o Caio é pop”.
Os recursos financeiros do Agro são estratosféricos quando o assunto é criar sua imagem, basta estar ciente de que contrataram os dois Reis brasileiros como garotos-propaganda. O vegetariano Roberto Carlos passou a comer carne nos comerciais da JBS (marca Friboi) e Pelé, o rei do campo, passou a coroa ao Agro, “campeão em outro campo, o campo da agricultura”, na campanha “Time Agro Brasil” patrocinada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Outros queridinhos do Brasil também assumiram esse papel em contratos milionários. Com Fátima Bernardes e Tony Ramos, a ideia era a imagem da qualidade dos produtos; com os jornalistas Zeca Camargo e William Waack, a seriedade do setor. Além das milionárias propagandas na grande mídia, o Agro possui canais de TV, programas e editoras próprias e chegou até a patrocinar o 1º Encontro Internacional de Jornalistas do Agro, em 2019, realizado no auditório da Syngenta em São Paulo – uma das maiores empresas de sementes transgênicas e agrotóxicos do mundo.
Toda essa estratégia midiática tem se revelado bem-sucedida, uma vez que está sedimentada a ideia de que o grande agronegócio, agora reconhecido pelo prefixo Agro, seria o “carro-chefe da economia brasileira”. Estratégia que já vinha sendo difundida há tempos pelos meios de comunicação, parte dos acadêmicos e representações políticas e que ganhou mais força com o slogan que marca a atual campanha publicitária. Essa campanha é a expressão direta do poder econômico desse setor da economia, porém, o ímpeto de consolidar a imagem de que o Agro é tudo não passa apenas pela quantidade de dinheiro investida em publicidade, mas por uma presença e captura de dimensões sociais, políticas e culturais do cotidiano. O Agro, que começa a ser utilizado como prefixo da linguagem hodierna de muitos brasileiros, faz subsumir suas adjetivações intrínsecas: o Agro(negócio) – que já foi Agribusiness – esconde sua única razão de ser, que é o negócio/lucro; acoberta a Agri(cultura) apagando sua essência, que é a produção de alimentos, a cultura alimentar; e desvia o olhar sobre o Agro(tóxico) ocultando as milhões de toneladas de venenos e seus impactos devastadores. O “Agro” apaga muitas coisas, restando a narrativa de sucesso, de recordes de produtividade… “a riqueza do Brasil”.
O latifúndio, assim denominado até a década de 1970, passou a ser chamado de agribusiness na década de 1980, ganhando novas roupagens como agronegócio entre a década de 1990 e 2016. Agora, transmuta-se, estrategicamente, em Agro e se reproduz com um imenso poder em suas mãos. A mais marcante força do agronegócio é o seu poder político, espraiado, principalmente, nos poderes Legislativo e Executivo de municípios, estados e da federação. A velha Bancada Ruralista, repaginada na Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), constitui a mais duradoura e efetiva força política no parlamento. Apenas como exemplo conjuntural dessa força, devemos lembrar, eternamente, se possível, que a Bancada Ruralista foi determinante tanto na queda da Presidenta Dilma Rousseff como no apoio à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República e na formação de sua base de apoio na Câmara e Senado. Na atual 56ª Legislatura (2019-2023), essa frente formou uma super-bancada, composta por 282 parlamentares (243 deputados e 39 senadores), o que dá sentido ao termo “supremacia ruralista” ou “plenitude do agronegócio”. Não se pode esquecer que 50% dos votos que derrubaram a Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, vieram dessa bancada, o que fez do golpe um agrogolpe. A força do Agro é, portanto, uma força determinante.
Todo esse poder distribui-se pelos poros do cotidiano nacional, o que faz de sua estratégia de marketing, na qual o “Agro é tudo”, apenas a face mais visível da afirmação de seu poder. Outros exemplos, dentre muitos, são importantes.
Recentemente, uma outra campanha veio a público, a de que o Agro brasileiro luta por uma indicação ao Prêmio Nobel da Paz. O nome indicado é o de Alysson Paulinelli, apresentado como o desbravador do Cerrado e fundador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); o argumento é de que seu trabalho ajudou a produzir alimentos para a população mundial. Paulinelli é engenheiro agrônomo, fazendeiro e ex-Ministro da Agricultura do governo Geisel. Por mais que pese as contradições em indicar um nome ao Nobel da Paz que fez parte da Ditadura Militar, um dos períodos mais violentos da história nacional e de sucessivos atentados aos direitos humanos, a força de comunicação do Agro parece não ter limites. O mesmo pode se concluir da campanha “De olho no material escolar: Plantando verdades e colhendo conhecimento”, formada pelas “mães do Agro”, que visa censurar livros didáticos que associem a imagem do setor à devastação ambiental e exploração degradante do trabalho. Diante do aumento estarrecedor do desmatamento e dos incêndios, diretamente ligados ao Agro, os organizadores dessa campanha reuniram-se com o atual Ministro da Educação, Milton Ribeiro, na intenção de banir das salas de aula material didático que fizesse essa relação. O Agro agora quer representantes, ao estilo de censores, no Programa Nacional do Livro e do Material Didático e na revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em 2021, intensificou suas ações, lançando mais uma campanha, “Todos a uma só voz”, incluindo o tema dos materiais didáticos escolares.
Os slogans falam por si só: “o Agro para estudantes”; “mostraremos que o Agro pode tornar nossa vida melhor”; “ensinaremos o quão valoroso é o trabalho dos produtores”; “juntos tornando o Agro mais forte” … etc.
Outra campanha, muito mais orquestrada, é a de criar o consenso de que o agronegócio brasileiro é o salvador da nossa economia e a atividade econômica que vai eliminar a fome no mundo. Argumentos e dados não faltam. Dos recordes de produção aos recordes de exportações, essa narrativa do Agro desmerece os demais setores da economia, como fez o reconhecido economista José Roberto Mendonça de Barros: “Aqui, chamamos a atenção para o fato fundamental de que o agronegócio é o único segmento relevante da economia brasileira, e que tem, no progresso técnico, o centro de seu modelo de negócios. E sua importância é tanto maior quanto mais comparada com a baixa produtividade da economia brasileira, em geral, que vem crescendo timidamente nos últimos anos”. Dessa forma, o consenso que se quer criar é que sem o Agro o Brasil não é nada! Mais audacioso é o discurso que coloca o país como a “grande fazenda do mundo”, ou seja, de que o Brasil estaria assumindo o nobre papel de alimentar a população mundial. O Brasil teria essa “vocação”, com o aproveitamento de suas “vantagens comparativas” e “riquezas naturais”.
O objetivo deste texto é, justamente, confrontar esse consenso que vem sendo criado na sociedade brasileira expresso no mantra midiático “o Agro é tech, o Agro é pop, o Agro é tudo”, que culmina na certeza de que o agronegócio é a maior força econômica do Brasil. Para tanto, precisamos estabelecer a distinção entre aparência e essência, tão fundamental nos trabalhos científicos. A aparência do fenômeno, sua representação, pode não corresponder à essência do fenômeno. A forma da realidade aparecer pode ser o oposto do real, ou como afirmou Porto-Gonçalves, no título do seu texto, “O Agro é tudo, mas só conta a metade”. Ou, ainda, se a história contada é a história dos vencedores, quem são os derrotados? É essa a nossa intenção, tentar pensar a totalidade do Agro para, assim, chegar próximo de sua realidade. Em outras palavras, desvendar o real papel desse setor da economia na vida brasileira. Por isso, trabalharemos com pares contraditórios ao discurso do Agro: sucesso x dependência, recordes x subalternidade, vantagens x regressão, exportações x pilhagem, economia x reprimarização, riquezas naturais x saques, alimentação x fome. Na adoção desse viés analítico, averiguamos o papel do agronegócio: 1) na balança comercial brasileira; 2) na formação do Produto Interno Bruto; 3) na distribuição e recebimento de créditos/financiamento; 4) no ordenamento tributário 5) na produção de dívidas; 6) na geração de postos de trabalho e renda; 7) na relação com os impactos ambientais e 8) no suprimento da demanda de alimentos. Nesse último tópico, vale antecipar uma pergunta: o Agro nacional, segmento da economia que se coloca como possível responsável pelo fim da fome no mundo, assiste nos últimos anos ao crescimento exponencial da fome em território brasileiro.
O Agro mata a fome do mundo, mas cria fome no Brasil?
Como explicar essa realidade dramática à nossa população?
Publicação da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária) com apoio da Friedrich Ebert Stiftung