Uma reforma agrária eficaz não pode se limitar à redistribuição de terras. Ela também deve se apoiar em estruturas locais capazes de regular o acesso à terra e a gestão fundiária. Para isso, é preciso reforçar a autonomia e a capacidade de ação das comunidades camponesas.
Entrevista com Michel Merlet, agrônomo, especialista reconhecido em governança fundiária e fundador da AGTER1, conduzida por Laurent Delcourt.
Por Laurent Delcourt para a CETRI | 18/06/2025
“A questão fundamental não é o número de hectares distribuídos, mas a capacidade das populações locais de se organizarem e defenderem seus direitos, tanto individuais quanto coletivos.”
Laurent Delcourt: Antigamente no centro das estratégias de desenvolvimento dos países do Sul — especialmente na América Latina —, as reformas agrárias redistributivas foram progressivamente abandonadas a partir da década de 1980, em favor de outras abordagens da questão fundiária.
As publicações sobre esse tema, numerosas desde os anos 1950, também diminuíram drasticamente, como se a redistribuição e a luta contra as desigualdades fundiárias já não fossem mais prioridades.
Na sua opinião, quais são as causas desse recuo?
Michel Merlet: É preciso situar essa evolução dos últimos quarenta anos dentro de uma história muito mais longa para entender por que as reformas agrárias redistributivas, tão importantes no século XX, foram praticamente abandonadas.
Jacques Chonchol nos oferece as chaves para compreender isso em sua obra de síntese: Sistemas Agrários na América Latina. Da Agricultura Pré-Hispânica à Modernização Conservadora (IHEAL, 1995).
A conquista do continente pelos espanhóis e portugueses provocou o colapso das civilizações agrícolas ameríndias, antes prósperas. Em poucas décadas, mais de 90% da população indígena desapareceu — principalmente por causa de doenças e guerras.
Embora a terra permanecesse abundante, a mão de obra tornou-se extremamente escassa.
Como, então, os colonizadores — sobretudo espanhóis e portugueses — conseguiram explorar os vastos recursos naturais desse “novo mundo”?
Eles instituíram um sistema econômico baseado nas haciendas e nas plantações, apropriando-se de uma pequena parte dos territórios antes ocupados pelos povos indígenas. O restante do território foi recoberto pela floresta. Entre os espaços sob controle colonial e as áreas florestais, onde sobreviviam pequenos grupos indígenas ainda não subjugados, formou-se uma “fronteira militar” que, com o tempo, se transformou em uma verdadeira “fronteira agrícola”.
Sem a contribuição dos escravos — inicialmente indígenas e depois negros, importados em massa da África — e sem o trabalho forçado, nenhuma economia colonial teria sido possível. Foram necessários quatro séculos de trabalho imposto em condições desumanas para erguer os complexos agroexportadores latino-americanos, que se consolidaram no final do século XIX e início do século XX.
Após as independências e a abolição da escravidão, a questão da modernização das fazendas tornou-se central, exigindo mudanças substanciais nos regimes fundiários — o que acelerou a concentração de terras. É nesse contexto, marcado por profundas desigualdades fundiárias, que surgem as reformas agrárias, sendo a primeira delas a do México, após as revoltas lideradas por Zapata e Pancho Villa.
Em 1917, o país adota as primeiras leis sobre os ejidos, abrindo caminho para uma redistribuição de terras em benefício das comunidades camponesas e indígenas. No mesmo ano, a Revolução Russa trouxe à tona uma visão “comunista” da questão fundiária, que rapidamente passou a privilegiar a produção coletiva.
Ao longo do século XX, diversos processos de reforma agrária foram implementados em diferentes contextos ao redor do mundo — muitas vezes impulsionados por Estados fortes, fossem ditaduras ou governos revolucionários oriundos de movimentos populares. O Estado desempenhou um papel central, iniciando e conduzindo transformações fundiárias.
Formou-se, então, um amplo consenso em torno da ideia de que era necessário melhorar o acesso à terra para promover o desenvolvimento econômico e social.
Na América Latina, afirma-se frequentemente — e de forma equivocada — que foram realizadas “reformas agrárias” na maioria dos países. Algumas dessas reformas tentaram impor a coletivização, inspirada no modelo soviético. No entanto, nem todas resultaram em verdadeiras redistribuições de terras. Paradoxalmente, em muitos casos, os Estados facilitaram, paralelamente, a concentração fundiária ao vender ou ceder territórios considerados “virgens” ou desabitados — terras que o Estado passou a reivindicar como sua propriedade após a independência —, criando assim novos grandes proprietários.
A partir da década de 1980, a influência do Estado diminuiu consideravelmente sob o impacto das políticas neoliberais, ao mesmo tempo em que a questão fundiária evoluía: as terras virgens e vagas tornaram-se cada vez mais raras, e a mecanização reduziu a dependência das fazendas da mão de obra camponesa. É a partir da segunda metade do século XX que ocorre o que Jacques Chonchol chamou de “modernização conservadora”, com o agronegócio se impondo progressivamente e demandando cada vez menos trabalhadores rurais.
A crise do mundo agrícola insere-se num contexto marcado por desigualdades fundiárias cada vez mais acentuadas. Foi nesse cenário que o Banco Mundial desenvolveu o conceito de “reforma agrária assistida pelo mercado”, baseado numa análise insuficiente das dificuldades enfrentadas pelas reformas agrárias nas décadas anteriores — ou, talvez, com o intuito de gerar ainda mais confusão em torno desse tema controverso. Essa abordagem partia da ideia de que os camponeses pobres poderiam comprar terras pertencentes a grandes proprietários dispostos a vendê-las. Os direitos de ambas as partes seriam então respeitados. No entanto, a falta de recursos financeiros por parte dos camponeses tornava tais aquisições inviáveis sem um apoio estatal substancial, na forma de empréstimos ou, eventualmente, doações.
Além disso, os grandes proprietários não queriam vender suas boas terras — apenas as mais marginais, das quais se desfaziam com vantagem. Conceder crédito aos pobres para que comprassem terras dos ricos era um contrassenso: não se tratava de nenhuma “reforma agrária” redistributiva e tampouco se baseava, de fato, no “mercado”. Longe de corrigir as desigualdades estruturais do sistema fundiário, essas reformas serviram para consolidar o domínio econômico dos grandes proprietários.
[LD] Que balanço podemos fazer dessas reformas?
Como jovem agrônomo na Nicarágua durante a revolução, você participou da implementação da reforma agrária promovida pelo governo sandinista. Que lições você tirou dessa experiência?
[MM] É difícil resumir em poucas palavras o balanço das reformas agrárias realizadas na América Latina. Os debates sobre a reforma agrária ao longo do século passado deixaram de lado vários aspectos essenciais, que hoje precisam ser reavaliados para que se possam considerar soluções mais justas e eficazes.
O campesinato evoluiu, independentemente da existência ou não de uma reforma agrária. Em toda parte, a fronteira agrícola foi se deslocando progressivamente para terras “baldias” (tierras baldías), áreas florestais e territórios indígenas. Na maioria das vezes, foram camponeses sem terra que se instalaram nessas regiões, praticando agricultura de corte e queima. No entanto, as áreas que conseguiam controlar eram muito pequenas para permitir uma rotação adequada, capaz de manter a fertilidade do solo. Assim, acabavam vendendo suas parcelas — já transformadas em pastagens — para criadores de gado extensivo e migravam cada vez mais para zonas florestais, impulsionando o avanço da fronteira agrícola.
A concentração fundiária, dessa forma, acelerou-se em toda a América Latina, marginalizando uma grande parcela da população camponesa. Imensas propriedades surgiram — especialmente no Brasil, mas também em muitos outros países. Esse também foi o caso da Nicarágua, onde a situação hoje é crítica, com o fim próximo das últimas áreas florestais ainda passíveis de desmatamento.
Na minha opinião, muitas reformas agrárias não alcançaram seus objetivos — e isso se deve a fatores tanto políticos quanto econômicos. As reformas promovidas por governos mais radicalizados muitas vezes fracassaram, como pude constatar diretamente na Nicarágua.
Na realidade, os dirigentes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) não tinham a intenção de redistribuir a terra aos camponeses, apesar do que dizia seu programa político.
Eu havia trabalhado durante um ano e meio sob a ditadura de Somoza, em uma pequena ONG — o Centro de Educação e Promoção Agrária (CEPA) — que apoiava discretamente a organização de camponeses pobres e trabalhadores agrícolas. Sabíamos que muitos camponeses esperavam uma redistribuição das terras. Quando o ditador e seu exército fugiram diante do avanço da guerrilha, o FSLN — que não esperava uma vitória tão rápida — não estava realmente preparado para assumir a liderança do país.
O diretor do CEPA, Salvador Mayorga, foi nomeado vice-ministro, e eu fui enviado — por conta do meu engajamento anterior — aos três departamentos do norte do país para instalar as bases do Instituto Nicaraguense de Reforma Agrária (INRA). Posteriormente, fui nomeado diretor da delegação departamental do INRA em Estelí. Um ano depois, ingressei no Centro de Pesquisas e Estudos da Reforma Agrária (CIERA), vinculado diretamente ao ministro do Desenvolvimento Agrário e da Reforma Agrária. Trabalhei ali por seis anos, em diferentes regiões do país, e pude, assim, ser tanto ator quanto testemunha privilegiada dos primeiros anos da reforma agrária nicaraguense.
Durante os meses que antecederam a insurreição, um grande número de camponeses ocupou terras na região norte. Alguns meses após a saída de Somoza, o ministro responsável pelo INRA, Jaime Wheelock, solicitou aos delegados regionais que explicassem aos camponeses que haviam ocupado espontaneamente terras durante a insurreição que deveriam desocupá-las, e que seria melhor para eles se tornarem trabalhadores agrícolas em fazendas estatais. Eu era responsável por supervisionar a implantação dessas fazendas estatais e não concordava com essa posição. Falei com o ministro e obtive sua concordância para que os camponeses pudessem manter a posse das terras ocupadas e continuassem a explorá-las sob a forma de “cooperativas”, mesmo quando se tratava de propriedades confiscadas na primeira etapa da reforma agrária. Para diferenciá-las de outras cooperativas, chamávamos esses coletivos na região de “Grupos de Autoconsumo Sindicais”.
Lembro-me de que o comandante Wheelock me perguntou se havia solicitações individuais de terras. Na região onde eu trabalhava, praticamente não havia nenhuma. Após quarenta anos de ditadura, os camponeses duvidavam, com razão, de sua capacidade de manter terras em posse individual. Diante dessa incerteza, preferiam administrá-las coletivamente — o que não significava que não desejassem, futuramente, uma redistribuição fundiária, indispensável para o desenvolvimento da produção camponesa.
Mas o projeto da direção da Frente Sandinista visava estabelecer fazendas estatais modernizadas, com o objetivo de superar o “subdesenvolvimento”, que era associado à produção camponesa.
Minha proposta de redistribuir a terra aos camponeses era vista por alguns quadros do INRA como um retrocesso de cinquenta anos no desenvolvimento da Nicarágua.
[LD] Então, tratava-se de um modelo mais próximo do soviético?
[MM] Sim, de certa forma. Perguntei-me por quê e busquei uma resposta na história agrária da Nicarágua. Concluí que, desde a chegada dos espanhóis, essa história foi marcada não pelo desaparecimento, mas pela submissão dos camponeses — que foram capazes de garantir não apenas sua própria reprodução, mas também a produção da maior parte dos alimentos do país. Transformá-los em trabalhadores agrícolas em tempo integral nunca foi uma solução aceitável para as classes dominantes.
Inicialmente, eles foram forçados a trabalhar nas fazendas, ao mesmo tempo em que produziam parte importante de sua alimentação em pequenas parcelas, dentro ou nos arredores dessas propriedades. Mais tarde, foi na fronteira agrícola que o campesinato conseguiu se expandir e continuar produzindo a maior parte dos alimentos básicos do país — milho, arroz, sorgo, feijão etc. —, praticando a agricultura de corte e queima (ou de corte e apodrecimento, em regiões de alta pluviometria), com ferramentas rudimentares, mas atingindo alta produtividade do trabalho nos primeiros anos, graças à fertilidade acumulada nas áreas florestais.
O avanço lento, porém contínuo, dessa frente pioneira camponesa rumo ao leste da Nicarágua permitiu, simultaneamente, a acumulação de terras transformadas em pastagens pelas classes dominantes e a manutenção de uma população camponesa pouco visível, mas essencial.
O controle da expansão da fronteira agrícola era, portanto, estratégico. Os governos ditatoriais dos Somoza compreenderam isso muito bem: organizaram e aceleraram esse processo por meio de seus projetos de “colônias” camponesas em Nueva Guinea, no sudeste, ao mesmo tempo em que desenvolviam a produção capitalista de algodão nas planícies do Pacífico.
A burguesia não somozista tinha papel importante dentro da Frente Sandinista, e as organizações camponesas e operárias eram frágeis. A expropriação das fazendas pertencentes a Somoza e seus familiares não tinha como objetivo instaurar um regime favorável aos camponeses: transformá-las em fazendas estatais permitia à burguesia manter certo controle sobre essas terras. As relações anteriores entre a burguesia agrária e o campesinato não foram realmente modificadas pela revolução.
A organização de camponeses pobres e trabalhadores agrícolas que apoiávamos, a ATC (Associação dos Trabalhadores Rurais), teve uma rápida expansão após a vitória da revolução sandinista. Mas logo foi percebida como uma ameaça pelas classes dominantes, que decidiram limitar seu papel à organização dos trabalhadores agrícolas do setor privado e das fazendas estatais.
Os camponeses pobres foram convidados a ingressar em uma nova organização: a UNAG (União Nicaraguense de Agricultores e Pecuaristas), que reunia grandes e médias propriedades, além de pequenos produtores. Seu presidente, Daniel Nuñez — um grande produtor do centro do país —, foi encarregado de organizar o INRA nos departamentos estratégicos da produção de café e pecuária, Matagalpa e Jinotega. Essa escolha visava impedir que os camponeses se organizassem para reivindicar o aprofundamento da reforma agrária. A Frente Sandinista não queria promover uma participação significativa dos camponeses na gestão dos territórios e no desenvolvimento econômico.
Vemos situações muito semelhantes em diversos países da América Latina, com algumas exceções — como o México, onde o processo ocorreu de maneira muito diferente e houve uma redistribuição de terras em grande escala.
[LD] E, afinal, o que restou dessas reformas conduzidas pelos sandinistas?
[MM] Na Nicarágua, assistiu-se a uma migração massiva de camponeses pobres para a contrarrevolução, a chamada “contra”. Esse movimento armado foi, sem dúvida, financiado pelos Estados Unidos, mas também expressava um profundo descontentamento com a política agrária sandinista. Muitas cooperativas sandinistas foram atacadas pela “contra”.
Foi apenas após esse doloroso episódio de guerra civil que as terras das cooperativas de produção começaram a ser divididas, muitas vezes por solicitação dos próprios camponeses. Algumas fazendas estatais também foram devolvidas a eles. Somente com a queda do governo sandinista ocorreu, enfim, uma ampla redistribuição de terras, que não pôde ser realizada durante a revolução. Esse é um elemento essencial — e é possível que fenômenos semelhantes tenham ocorrido em outros países.
Afirmar que a Frente Sandinista contribuiu significativamente para o fortalecimento das organizações camponesas é incorreto. Na verdade, ela não permitiu que os camponeses se organizassem de forma autônoma para defender seus próprios interesses. Isso é um fato — ainda que tal constatação incomode alguns ex-líderes sandinistas. E a Frente pagou um preço por isso ao perder o poder em eleições cuja legitimidade não foi contestada.
[LD] O que você acha da reforma agrária atualmente implementada pelo governo Petro na Colômbia, uma de suas principais promessas de campanha? Você acredita que ela poderá enfrentar as persistentes desigualdades fundiárias no país? Quais são, na sua visão, as principais limitações dessa reforma?
[MM] Não conheço bem a Colômbia, pois só tive a oportunidade de trabalhar lá uma vez, durante uma missão curta em 2014, na Unidade de Planejamento Rural Agropecuário (UPRA), com o objetivo de contribuir para a criação de um Observatório Nacional do Mercado Fundiário. Acompanhei algumas das medidas adotadas pelo governo Petro, mas sem poder verificar, no campo, como foram implementadas. Portanto, só posso formular algumas hipóteses e levantar algumas questões, com toda humildade.
A chegada ao poder do governo Petro, por meio das urnas, ocorreu em condições difíceis. A coalizão que possibilitou, pela primeira vez, uma vitória da esquerda, não lhe oferece grande margem de manobra. Os conflitos armados persistentes no país e o peso do narcotráfico tornam o trabalho do governo extremamente complexo.
Petro comprometeu-se a não confiscar terras e, por isso, retomou as disposições legais da reforma agrária anterior, de 1994 (Lei 160), que previa a intervenção do Estado por meio da compra de terras de vendedores voluntários. Essa lei também estabelecia o estatuto das “Zonas de Reservas Camponesas”. Nenhuma dessas medidas se enquadra num modelo de “reforma agrária redistributiva”. Mas isso não significa que tais intervenções não possam contribuir para alterar as correlações de forças.
A criação de várias novas Zonas de Reservas Camponesas deveria incentivar e estabilizar a economia camponesa, conforme previsto na lei, em zonas de colonização de terras “baldias”, e evitar a concentração fundiária em áreas agrícolas de fronteira. No entanto, o decreto 1777 de 1996, que regulamenta seu funcionamento, permanece bastante vago quanto às formas que poderia assumir a “concertação social, política, ambiental e cultural” entre o Estado e as comunidades rurais: nada é dito sobre os critérios de reconhecimento de direitos individuais e/ou coletivos sobre as terras, tampouco sobre como as comunidades poderiam regular os mercados de direitos fundiários.
Ao examinar as iniciativas em andamento sob o rótulo de “reforma agrária”, salta aos olhos um aspecto: tudo está centralizado em organismos governamentais, especialmente na UPRA, que procuram planejar tudo, sem promover explicitamente a auto-organização das comunidades camponesas e o fortalecimento de suas estruturas locais. Isso não significa que tais processos não estejam ocorrendo de forma discreta na Colômbia sob o atual governo. No entanto, considerando a história política do país, acredito que isso deveria ser uma prioridade.
Esse é um ponto fundamental. Para promover transformações duradouras, o número de hectares redistribuídos importa menos do que a capacidade dos beneficiários de consolidar e desenvolver seus ganhos no longo prazo. Confiar apenas nos Estados — geralmente controlados por oligarquias ou burguesias agrárias locais — para realizar esse tipo de reforma só pode levar ao fracasso. Para que uma reforma agrária funcione de fato, é imperativo apoiar e acompanhar a estruturação de organizações locais capazes de garantir uma governança autônoma e eficaz das terras redistribuídas.
É evidente que o atual governo colombiano deseja melhorar a produção de alimentos e reconhece o papel essencial dos camponeses nesse processo. No entanto, não encontrei, nos documentos oficiais que pude consultar — especialmente os da UPRA —, nenhuma análise econômica aprofundada que acompanhe essa reflexão. As análises se concentram em uma abordagem política, sem discutir o que seria mais vantajoso para o país como um todo.
Entretanto, estudos de caso realizados em diversas partes do mundo mostram sistematicamente que os pequenos produtores, frequentemente considerados “arcaicos”, geram mais valor agregado líquido por hectare do que as grandes propriedades mecanizadas. Os grandes agroexportadores, evidentemente, não têm nenhum interesse em divulgar essa constatação — mas o atual governo da Colômbia teria todo interesse em fazê-lo, a fim de construir alianças sólidas que viabilizem a execução de seu projeto.
[LD] Voltemos à questão dos direitos fundiários.
Nas últimas duas ou três décadas, as políticas de redistribuição de terras, voltadas a garantir um acesso mais equitativo aos recursos fundiários pelas populações rurais, foram gradualmente substituídas por iniciativas centradas na garantia de direitos — individuais ou coletivos — por meio da emissão de títulos ou certificados. Essas abordagens, hoje dominantes, são frequentemente apresentadas como soluções universais para reduzir a pobreza rural, incentivar investimentos agrícolas, facilitar o acesso ao crédito, dinamizar os mercados fundiários e enfrentar os desafios climáticos (tanto em termos de mitigação quanto de adaptação).No entanto, alguns críticos apontam que essas estratégias tendem a reforçar as desigualdades existentes, beneficiando sobretudo os grandes proprietários, as empresas e os investidores externos, que estão geralmente em posição mais favorável para tirar proveito da formalização dos direitos fundiários.
Qual é a sua opinião sobre essa evolução? Você concorda com essa crítica?
[MM] Tentarei responder retomando, antes de tudo, a diferença entre “propriedade da terra” e “propriedade dos direitos sobre a terra” e, em seguida, abordarei a questão dos “mercados fundiários”.
Quando se trata de legalizar terras, é imperativo identificar seus verdadeiros “proprietários”. No entanto, a noção de “propriedade da terra” é uma armadilha.
O Estado se considera, por padrão, “proprietário” de todo o território nacional enquanto não existirem títulos de propriedade formalmente registrados. Assim, ele pode conceder gratuitamente ou vender títulos de propriedade a indivíduos ou empresas que reivindicam imensas extensões de terra — muitas vezes sem jamais tê-las explorado. Na América Latina, por exemplo, há décadas — ou até mais de cem anos — algumas pessoas obtiveram “títulos de propriedade” sobre dezenas de milhares de hectares, embora nunca tenham sequer pisado neles. Esses títulos lhes conferem o direito legal de expulsar indígenas ou camponeses que viviam ali há muito tempo, mesmo que esses moradores não possuam qualquer documento oficial reconhecendo seus direitos coletivos ou pessoais. Ainda que tenham se instalado muito antes dos novos “proprietários”, são considerados invasores.
Esse modelo rígido — amplamente difundido no mundo, especialmente sob a influência do direito francês — permite, na prática, privar comunidades de direitos adquiridos pelo uso pacífico e continuado dos recursos naturais. Trata-se do oposto do que deveria ser feito: garantir direitos de uso reconhecidos localmente.
Nas zonas de fronteira agrícola, essa questão é particularmente crucial. Em vez de perpetuar um modelo de propriedade individual absoluta, é essencial reconhecer e proteger os direitos de uso coletivo. Conceder uma forma de propriedade comunitária a uma comunidade local — ou a um conjunto de comunidades — permitiria instituir mecanismos de gestão mais resilientes e sustentáveis. Esses mecanismos poderiam assegurar a transmissão, a troca e a adaptação dos direitos fundiários às transformações sociais e econômicas, como a dissolução de uma cooperativa ou uma mudança na organização local.
Na realidade, ninguém é plenamente “proprietário” da terra — e esta não pode ser tratada como uma simples mercadoria. Um “proprietário” de cinco hectares no México não pode transferir sua terra para a África Ocidental, nem fazê-la desaparecer. O que se vende ou se transfere não é a terra em si, mas os direitos de uso (para coleta, produção…), os direitos de gestão (sobre o que é ou não permitido fazer na área), os direitos de cessão/transferência (temporária ou permanente: venda, aluguel, parceria agrícola, herança…). Esses direitos são sempre compartilhados com outros atores: o Estado, comunidades locais, cooperativas, famílias, vizinhos…
Um modelo fundiário eficaz deve, portanto, funcionar em diversos níveis:
– o Estado, como regulador principal;
– as comunidades locais, como gestoras do território coletivo;
– e as cooperativas e famílias, como unidades intermediárias de uso e transmissão de direitos.
Os direitos sobre a terra precisam ser adaptáveis às mudanças demográficas e familiares. Quando uma família não pode expandir sua base fundiária, a inevitável fragmentação da terra compromete a viabilidade das unidades de produção camponesa. A negociação de direitos fundiários pode ser uma ferramenta útil para lidar com essas transformações.
O problema não está na existência de mercados de direitos fundiários, mas sim na visão rígida e absolutista da “propriedade”, que pretende reunir todos os direitos sob uma única figura. Se a crítica à “reforma agrária assistida pelo mercado” é plenamente justificada, a crítica indiscriminada aos mercados fundiários, por sua vez, pode produzir efeitos contrários aos desejados.
Voltemos por um momento à Colômbia. Em 2014, durante minha missão, constatei que era possível registrar direitos fundiários em um cartório localizado do outro lado do país, enquanto o registro de propriedade e o cadastro funcionavam por meio de escritórios locais. Isso tornava impossível o acompanhamento local dos mercados fundiários com base nas informações coletadas pelos notários. Teria sido fácil corrigir essa situação por meio de uma regulamentação mais adequada do funcionamento do notariado. Isso, por si só, não seria suficiente para regular os mercados de direitos sobre a terra, mas constituiria um primeiro passo indispensável.
Na França, foi criado um sistema de controle e regulamentação das transferências de direitos fundiários que envolve o Estado, as organizações camponesas, os notários e uma estrutura específica: a SAFER (Société d’Aménagement Foncier et d’Établissement Rural – Sociedade de Ordenamento Fundiário e Estabelecimento Rural), com o objetivo de monitorar não apenas os mercados fundiários rurais, mas também as operações de compra e venda, orientadas por metas ligadas à modernização das propriedades agrícolas dentro de um sistema baseado na agricultura familiar.
- Qualquer intenção de venda ou compra de um terreno deve ser, obrigatoriamente, previamente declarada a um notário; caso contrário, a transação não poderá ser realizada. O notário tem a obrigação de informar a SAFER da região. Esse mecanismo é essencial para garantir a transparência e evitar transações não supervisionadas.
- A SAFER pode substituir o comprador no momento da venda, respeitando os motivos legalmente previstos, se a transação inicialmente planejada não estiver de acordo com as diretrizes estabelecidas para o desenvolvimento regional. Em seguida, deve revender o terreno a um comprador considerado “aceitável”, dentro de um prazo geralmente inferior a cinco anos.
Embora não seja perfeito, esse dispositivo permitiu estabelecer um controle bastante eficaz dos mercados fundiários rurais, que não devem ser vistos como simples mercados de terras, mas sim como mercados de direitos. Ele contribuiu para que, na França, fosse possível modernizar as unidades de produção ao longo de várias décadas sem que a agricultura familiar desaparecesse, respeitando as necessidades e dinâmicas locais. Isso teria sido muito mais difícil se as aquisições de terras estivessem submetidas apenas às leis do mercado.
Outras regulamentações, em especial aquelas relativas ao mercado de arrendamento de terras agrícolas, em vigor desde a década de 1940, também desempenharam um papel fundamental. Vale lembrar que, na França, o percentual da superfície agrícola útil arrendada, que permaneceu relativamente estável entre 1945 e 1975 (entre 45% e 50%), aumentou rapidamente, superando 75% em 2010. As leis sobre o estatuto do arrendamento garantem ao agricultor uma estabilidade quase equivalente à de um proprietário que explora suas próprias terras (prazo mínimo de nove anos, renovável por mais nove, salvo se o proprietário desejar retomar o bem para uso próprio; direito de preferência do arrendatário em caso de venda). Os valores dos aluguéis também são regulamentados pelo Estado, e foi criado um mecanismo específico de resolução de conflitos. Menciono isso porque essa legislação veio, de certa forma, corrigir o Código Civil de 1804, que reconhecia direitos de propriedade absolutos, resgatando uma concepção anterior, do Antigo Regime, que previa a sobreposição de múltiplos direitos sobre o mesmo bem, permitindo a várias pessoas exercer poderes limitados e complementares.
Retomando a reflexão sobre a reforma agrária: o fundamental não é a simples atribuição de títulos de propriedade ou a redistribuição de terras, mas sim a implementação de sistemas de gestão coletiva e comunitária dos territórios. Trata-se de garantir tanto os direitos comunitários quanto os individuais, dentro de um quadro de governança compartilhada.
No entanto, esse tipo de organização é raramente implementado. Um dos raros casos bem-sucedidos é o sistema de ejidos no México que, apesar de suas limitações e evoluções às vezes questionáveis, resistiu muito melhor do que muitas cooperativas surgidas de reformas agrárias em outros países.
Reconhecer essa diversidade de escalas e de direitos — coletivos e individuais — permite uma flexibilidade essencial, favorecendo ajustes progressivos diante das mudanças no contexto nacional e global. Atribuir um papel central aos representantes dos produtores e habitantes dos territórios, e garantir-lhes os meios para exercer esse papel, é indispensável para evitar a captura rápida das políticas de apoio à agricultura familiar por parte de atores econômicos dominantes e seus aliados políticos. Isso é fundamental para a continuidade dos ganhos redistributivos obtidos por reformas agrárias.
O exemplo da reforma agrária sandinista na Nicarágua ilustra bem os problemas gerados quando o Estado centraliza todas as decisões e impede o desenvolvimento de uma autonomia camponesa. Situações semelhantes foram observadas em muitos outros países.
Atualmente, é possível acumular e explorar vastas extensões de terra sem ser formalmente proprietário delas. Um exemplo marcante é o do arrendamento reverso: grandes empresas agroindustriais arrendam centenas ou milhares de pequenas parcelas pertencentes a proprietários modestos, a fim de explorá-las de forma mecanizada e intensiva, com elevados investimentos em equipamentos. Esse fenômeno não existiria se as comunidades dispusessem de estruturas reais para defender seus interesses fundiários.
No fim das contas, a questão essencial não é a quantidade de hectares distribuídos, mas sim a capacidade das populações locais de se organizarem e defenderem coletivamente seus direitos de uso e produção. Fortalecendo essas estruturas de governança e promovendo modelos de gestão fundiária adequados às necessidades das comunidades rurais, é possível garantir a sustentabilidade da agricultura camponesa e seu papel central no desenvolvimento.
[LD] Em um artigo publicado na revista Pour em 2013, você afirma que as reformas agrárias continuam sendo relevantes, mas devem ser repensadas sob novas formas para responder aos desafios atuais — e evitar os fracassos do passado. Quais princípios e objetivos devem orientar essas reformas modernas? E quais condições sociais, políticas e econômicas são necessárias para sua implementação?
[MM] Tudo o que discutimos até aqui converge para constatações fundamentais. É essencial não confundir a riqueza líquida gerada por hectare com a taxa de lucro empresarial. A sociedade como um todo tem interesse em garantir a produção de alimentos, mas também em manter a fertilidade do solo, conservar a biodiversidade… Esses objetivos muitas vezes não são compatíveis com a lógica de maximização de lucros do agronegócio. Para construir alianças em defesa da economia camponesa, é necessário utilizar os indicadores certos.
Mais do que políticas de ordenamento territorial, o verdadeiro desafio é fortalecer a capacidade de organização e influência dos camponeses. Não se trata de apoiá-los por caridade ou por tradição, mas porque seu modelo de produção atende melhor aos interesses coletivos dos cidadãos do que o das grandes corporações agroindustriais. Sem essa força organizacional, qualquer política de reforma agrária corre o risco de ser apropriada pelas elites econômicas e políticas, que não têm interesse em questionar a ordem vigente.
A questão dos direitos fundiários é central. Não se trata de negar o direito de propriedade, mas de reconhecer que, no que se refere à terra, esse direito nunca é absoluto. Ele está sempre compartilhado entre esferas individuais e coletivas, operando em diferentes níveis de governança. Essa consciência é essencial para superar uma visão rígida e inadequada dos mercados fundiários.
Um erro frequente entre certos movimentos camponeses foi confundir a chamada “reforma agrária assistida pelo mercado”, promovida pelo Banco Mundial, com a necessária regulação dos mercados de direitos fundiários. Essa confusão é prejudicial, pois impede o aproveitamento de soluções viáveis para garantir e adaptar os direitos fundiários de acordo com as necessidades das comunidades e da sociedade em geral.
O debate internacional sobre reforma agrária foi reaberto com o Fórum Mundial sobre Reforma Agrária, organizado pelo CERAI em Valência (Espanha), em 2004, o que levou a FAO a convocar, em 2006, em Porto Alegre (Brasil), uma nova Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural — vinte e sete anos após a anterior. Dez anos depois, o CERAI, a AGTER e outras entidades organizaram, novamente em Valência, o Fórum Mundial sobre Acesso à Terra.
Foi difícil, para a AGTER, fazer valer sua posição sobre a importância da regulação dos mercados fundiários rurais e da necessidade de participação das organizações camponesas nesse processo. Tivemos divergências com algumas propostas da Via Campesina quanto à abordagem mais adequada.
Nossa posição se baseava em uma constatação clara: a coletivização forçada frequentemente teve efeitos desastrosos sobre a agricultura camponesa. Sabemos que sistemas de regulação fundiária não serão, por si sós, suficientes para frear o avanço do agronegócio e da concentração de terras. Outros fatores entram em jogo: cadeias de comercialização, tratados de livre comércio, desregulamentação dos mercados… tudo isso reduz fortemente o poder econômico dos camponeses. No entanto, tais sistemas podem contribuir significativamente — e, ao mesmo tempo, fortalecer as organizações locais.
Em vez de se apoiarem em esquemas ideológicos superados, as novas políticas fundiárias devem se concentrar no fortalecimento da capacidade de gestão e intervenção dos pequenos produtores. Isso implica a criação de estruturas locais autônomas, capazes de regular os mercados, proteger os direitos de uso e garantir uma governança verdadeiramente adaptada às comunidades e à sociedade.
Duas novas exigências cruciais surgiram nos últimos anos:
- A preservação dos ecossistemas e o combate às mudanças climáticas
- A defesa da democracia
A agricultura camponesa não apenas produz mais alimentos e mais valor por hectare, mas também contribui para a preservação ambiental e freia a degradação acelerada dos recursos naturais. Esses argumentos são fundamentais, em tempos de crise climática, para sustentar a defesa da agricultura familiar e promover um modelo mais sustentável e justo.
A história recente mostra os riscos de um Estado excessivamente centralizador. Os desvios dos regimes “socialistas” na Rússia e na Nicarágua ilustram bem esses perigos. Na Nicarágua, Daniel Ortega — ex-presidente sandinista — aliou-se à grande burguesia agroexportadora para expropriar territórios indígenas e explorar de forma intensiva os recursos naturais, como mostra Melissa Solórzano em sua tese de doutorado defendida no Brasil. Ortega chegou a conceder uma autorização a uma empresa chinesa para construir um canal interoceânico que rivalizasse com o do Panamá. Um amplo movimento camponês se opôs ao projeto. Com a falência da empresa chinesa, o canal foi abandonado. Hoje, os territórios da fronteira agrícola estão ocupados por aliados de Ortega, que receberam títulos de propriedade. Milhares de paramilitares foram armados como “policiais voluntários” e mobilizados para reprimir a oposição.
Essa situação era previsível: quando se impede uma população de se organizar durante décadas, destrói-se qualquer possibilidade de democracia real. Ortega jamais teria retornado ao poder se existisse, de fato, um poder popular consolidado no campo.
Esse exemplo ilustra com clareza que a democracia se baseia, antes de tudo, na capacidade dos cidadãos de se organizar, defender seus direitos e criar mecanismos de governança local. Quando o Estado monopoliza todas as decisões, o resultado inevitável é o colapso da democracia. As reformas agrárias e políticas fundiárias atuais não devem se limitar à distribuição de terras ou à entrega de títulos. O verdadeiro desafio é construir estruturas locais capazes de defender, a longo prazo, os interesses das comunidades rurais. Somente com o fortalecimento da capacidade de organização e de ação coletiva dessas comunidades será possível instaurar uma reforma agrária redistributiva sustentável — e consolidar a democracia.
[1] AGTER — Associação para a Melhoria da Governança da Terra, da Água e dos Recursos Naturais — é uma rede internacional criada para promover a gestão sustentável e equitativa da terra e dos recursos naturais por meio da pesquisa, do intercâmbio de experiências e da conscientização. Seu objetivo é promover políticas e práticas alternativas para combater a apropriação indevida de terras e melhorar a governança fundiária. Ver: https://www.agter.org
Publicado originalmente pela CETRI
https://www.cetri.be/Quelle-perspective-pour-la-reforme
Traduzido pelo Blog do IFZ
