Reforma agrária de mercado, promessa de terra e herança de dívida

  • Tempo de leitura:5 minutos de leitura

Rosilene Roos e Mauro Delgrossi na Revista Sociedade e Estado | 2024

Baixe aqui o artigo “Reforma agrária assistida de mercado: revisão de literatura e agenda de pesquisas

O acesso à terra atravessa a história do Brasil como uma cicatriz aberta. Desde as sesmarias coloniais, quando grandes extensões eram concedidas a poucos favorecidos, até os dias atuais, a concentração fundiária persiste sob novas formas, mantendo os trabalhadores rurais à margem da inclusão.

Foi nesse solo de desigualdade histórica que, nos anos 1990, surgiu uma promessa com o selo do Banco Mundial: a Reforma Agrária Assistida de Mercado (RAAM). A proposta parecia engenhosa. Em vez da desapropriação litigiosa, agricultores sem terra poderiam adquirir lotes por meio de financiamentos subsidiados, pagando em prestações aquilo que antes dependia da intervenção direta do Estado.

Elegante na teoria, o arranjo se apresentava como uma solução moderna para um problema secular — transformar a terra em mercadoria negociada a prazo, na crença de que o mercado poderia redimir a história.

O artigo “Reforma agrária assistida de mercado: revisão de literatura e agenda de pesquisas”, de Rosilene Roos e Mauro Delgrossi, publicado na Revista Sociedade e Estado, retorna a esse capítulo para revisitar o que a academia produziu sobre o tema em diversos países. A pesquisa, conduzida por meio de revisão sistemática da literatura, não se limita a acumular referências: organiza, compara e interroga as diferentes experiências.

O Brasil ocupa lugar central nessa história. Desde o Cédula da Terra, lançado em 1996, até o atual Programa Nacional de Crédito Fundiário, a promessa foi ampliar o acesso à terra com rapidez e menor custo para o Estado. Os números, porém, revelam descompasso: entre 2003 e 2013, pouco menos de 94 mil famílias foram beneficiadas pelo crédito fundiário, contra quase 690 mil assentadas pela reforma conduzida pelo INCRA. O mercado não substituiu o Estado; apenas o acompanhou em escala menor.

As armadilhas da reforma agrária de mercado

A promessa da Reforma Agrária Assistida de Mercado parecia simples: permitir que trabalhadores rurais adquirissem lotes com financiamentos subsidiados, evitando o caminho lento e conflitivo da desapropriação. No entanto, ao analisar as experiências documentadas em diferentes países, a promessa rapidamente se revela cheia de armadilhas.

Em alguns contextos, sobretudo onde havia assistência técnica e apoio inicial do Estado, registraram-se aumentos na produção agrícola, pequenas melhoras de renda e, em certos casos, uma nova perspectiva para jovens agricultores, herdeiros de minifúndios ou filhos de arrendatários. Mas esses resultados positivos mostraram-se frágeis, quase sempre dependentes de políticas complementares.

Na outra ponta, mais frequente, acumulam-se sinais de fracasso. A compra de terras de baixa qualidade, o tamanho reduzido dos lotes e a localização em áreas isoladas levaram muitos assentados ao endividamento e à inadimplência. Solo improdutivo, ausência de infraestrutura básica — energia, água potável, estradas, escolas e postos de saúde — e falta de apoio técnico transformaram a vida em uma corrida desigual. Não raras vezes, os agricultores acabaram abandonando as propriedades e voltando a buscar renda como assalariados temporários.

A armadilha estava inscrita no próprio desenho da política. Ao tratar a terra como simples mercadoria, a RAAM preservava a estrutura de poder que historicamente favoreceu os grandes proprietários. De um lado, vendedores que negociavam com pleno domínio das informações e sem disposição real de abrir mão das terras mais férteis; do outro, compradores frágeis, muitas vezes sem clareza sobre contratos, juros e consequências do não pagamento. Para alguns beneficiários, sequer ficava explícito que poderiam perder a posse do imóvel em caso de inadimplência.

Nesse cenário, a assimetria não apenas se manteve, mas se aprofundou. Os agricultores mais pobres, ao entrar no mercado de terras, carregavam uma vulnerabilidade estrutural: falta de capital, de informação e de apoio contínuo. O que se anunciava como reforma agrária, em muitos casos, converteu-se em uma operação de crédito com alto risco de fracasso.

É por isso que grande parte da literatura internacional rejeita chamar a RAAM de reforma agrária. Não houve redistribuição de riqueza ou quebra de privilégios, mas apenas transações mediadas pelo Estado, que acabaram reforçando, e não superando, a correlação histórica de forças no campo.

O contraste se repete em diferentes países. Na África do Sul, na Guatemala ou no Brasil, os resultados mostram que as promessas iniciais raramente se sustentaram no tempo. Em vez de reduzir desigualdades, a terra comprada a crédito tornou-se, para muitos, uma dívida impagável. E assim, a solução que pretendia aplacar os conflitos e modernizar a política agrária frequentemente deixou os trabalhadores rurais ainda mais fragilizados — com um título nas mãos, mas sem condições reais de transformá-lo em vida digna.

Uma agenda reaberta

Ao reunir três décadas de debates e experiências, Roos e Delgrossi não oferecem respostas definitivas, mas reabrem questões fundamentais. O crédito fundiário garante apenas o título de propriedade ou também cria condições reais de autonomia produtiva? A dívida contraída transforma o acesso à terra em trampolim para o futuro ou em novo peso a carregar? E, sobretudo, pode uma política fundada na lógica do mercado corrigir injustiças que nasceram fora dele?

As perguntas permanecem como marcas no solo. O artigo mostra que a RAAM, embora ainda vigente, segue sendo objeto de disputa intelectual e política. Entre avanços pontuais e limites estruturais, ela expõe o contraste entre promessa e realidade: democratizar a terra não se resolve apenas com escrituras e financiamentos, mas exige enfrentar a longa herança que sustenta a desigualdade rural.


Rosilene Roos é mestra do Programa de Pós-Graduação em Agronegócios (PROPAGA) da Universidade de Brasília (UnB), DF, Brasil.

Mauro Delgrossi é pós-doutor em Medidas de Segurança Alimentar pela Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) e professor do Programa de Pós-Graduação em Agronegócios (PROPAGA) e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública (PPGP) da Universidade de Brasília (UnB), DF, Brasil.


Baixe aqui o artigo “Reforma agrária assistida de mercado: revisão de literatura e agenda de pesquisas

O artigo “Reforma agrária assistida de mercado: revisão de literatura e agenda de pesquisas” foi publicado originalmente na Revista Sociedade e Estado – Volume 39, Número 1, 2024, e47504.