Bancos de alimentos sobrecarregados, famílias obrigadas a escolher entre pagar o aluguel ou comprar comida, crianças chegando à escola sem café da manhã. Esse é o cenário que se agrava nos Estados Unidos, enquanto o governo Trump extingue o relatório federal que, por mais de vinte anos, mediu a dimensão da fome no país. Apresentada como racionalização administrativa, a decisão retira de cena a principal ferramenta pública de monitoramento da insegurança alimentar justamente quando os sinais de crise se multiplicam em escolas, cozinhas comunitárias e hospitais pediátricos
Blog do IFZ | 21/09/2025
Quando o governo Trump anunciou, em setembro, o fim do Household Food Security Report, estudo conduzido há mais de duas décadas pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), o gesto foi apresentado como um ato de racionalização administrativa. “Politizado, redundante, desnecessário”, disseram porta-vozes do governo. Mas, sob a superfície da justificativa burocrática, repousa um fato incontornável: a decisão ocorre justamente no momento em que os sinais de agravamento da fome se multiplicam em escolas, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos e hospitais pediátricos. Ao eliminar o relatório, a administração não apenas fecha um capítulo de pesquisa, mas retira da cena pública o espelho que refletia o tamanho do problema.
O que já se anunciava que viria…
Em maio de 2025, já era possível constatar os efeitos de cortes orçamentários no USDA que haviam suprimido mais de US$ 1 bilhão em programas de alimentação escolar e apoio a bancos comunitários. Naquele mês, a Catholic Charities da Diocese de Albany relatou uma mudança dramática: em 2024, havia pago pouco mais de cinco mil dólares por cinquenta mil libras de comida. Em março de 2025, desembolsou doze mil dólares por menos de trinta mil libras. A matemática era simples e brutal: mais do dobro do custo por menos da metade da comida! Ou seja, mais famílias batendo à porta, com menos comida disponível e custos mais que duplicados.
O Banco de Alimentos Regional do Nordeste de Nova York projetava, já naquela altura, perder o equivalente a 6,5 milhões de refeições ao longo do ano. E organizações de alcance nacional, como a Bread for the World, alertavam que 47 milhões de pessoas — incluindo 14 milhões de crianças — viviam em lares inseguros em relação à próxima refeição. “Estamos diante de uma tempestade que atinge os mais vulneráveis, com inflação, doações em queda e agora cortes federais”, registrou a entidade.
Esses números não são frios. Representam o cotidiano de famílias que, mês a mês, precisaram escolher entre pagar aluguel ou garantir a comida. Representam também uma maior pressão sobre as redes de solidariedade que, embora resilientes, não conseguem substituir a escala dos programas federais.
O agravamento silencioso
Nos meses seguintes, o cenário se aprofundou. Reportagem do Washington Post de 19 de maio revelou que, apenas em Washington e na Virgínia rural, bancos de alimentos deixaram de distribuir mais de 1,4 milhão de refeições após a suspensão de entregas emergenciais do USDA. Enquanto isso, dados disponíveis do relatório de 2023 — o último publicado antes do cancelamento — já apontavam 18 milhões de lares em situação de insegurança alimentar, um milhão a mais do que no ano anterior. Dentro desse universo, 6,8 milhões enfrentavam uma condição severa, marcada por privações regulares e fome aberta.
Entre crianças, o retrato era igualmente perturbador: 13,8 milhões viviam em lares com dificuldades para se alimentar, o número mais alto em quase uma década. Não se tratava apenas de estatísticas em colunas de Excel: eram sinais de atraso no crescimento, maior vulnerabilidade a infecções, dificuldades de concentração em sala de aula. Médicos pediatras já relatavam o aumento de quadros de anemia e subnutrição em áreas urbanas pobres e também em zonas rurais, onde o fechamento de mercados e o aumento no preço de combustíveis tornaram a alimentação básica mais cara.
O valor do relatório extinto
O Household Food Security Report não era apenas mais um documento federal. Ao longo de mais de vinte anos, tornou-se referência para pesquisadores, formuladores de políticas e instituições de caridade. Foi com base nele que estados calibraram suas próprias iniciativas, que cidades projetaram cozinhas comunitárias, que universidades elaboraram estudos sobre os impactos de longo prazo da fome infantil.
Dados recentes do Censo mostram que a taxa de pobreza nos Estados Unidos caiu de 11% em 2023 para 10,6% no ano passado, período anterior à posse de Trump. Críticos afirmam que a suspensão do relatório prejudica a transparência e dificulta avaliar os impactos concretos das mudanças feitas pelo governo nos programas de assistência alimentar.
A professora Barbara Laraia, da Universidade da Califórnia em Berkeley, sintetizou a importância do relatório, chamando-o de “padrão de referência para medir a fome nos Estados Unidos”. Ao desaparecer, não apenas deixa de oferecer um retrato anual, mas rompe a série histórica que permitia analisar tendências, avanços e retrocessos. Em outras palavras, retira-se não só a fotografia do presente, mas também o filme que mostrava a evolução da insegurança alimentar ao longo do tempo.
O gesto político entre cortes e custos sociais
Bobby Kogan, diretor-sênior de política orçamentária federal do Centro para o Progresso Americano, acusou o governo de agir deliberadamente para esconder informações incômodas. “Trump está cancelando uma pesquisa anual do governo, em vez de permitir que ela mostre o aumento da fome durante seu mandato”, afirmou em publicação nas redes sociais. Segundo ele, a medida segue “o manual de muitas não-democracias, que cancelam ou manipulam relatórios que, de outra forma, mostrariam notícias imperfeitas”.
O cancelamento do relatório não pode ser dissociado dos cortes sucessivos em programas de assistência. Em julho, a administração aprovou legislação que reduziu o financiamento do SNAP — o programa de vale-alimentação que atende milhões de famílias. Paralelamente, os requisitos de trabalho foram endurecidos, afastando beneficiários em situação de maior vulnerabilidade.
Essas medidas trazem custos ocultos, mas devastadores. Crianças que crescem sem acesso regular a alimentos nutritivos apresentam maior risco de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, ainda na vida adulta. O impacto recai sobre o sistema de saúde, sobre a produtividade futura e sobre a coesão social. O que hoje se poupa em cortes orçamentários se traduzirá amanhã em gastos multiplicados e numa sociedade mais desigual.
Mais do que uma escolha administrativa, a extinção do relatório revela uma estratégia política. Ao eliminar a ferramenta de monitoramento, o governo impede que se documente o agravamento da crise. Sem dados oficiais, torna-se mais difícil para opositores, pesquisadores e mesmo legisladores contestarem a narrativa de que a fome estaria sob controle. O problema não some, apenas deixa de ser medido.
Há algo de paradoxal e, ao mesmo tempo, revelador nesse gesto: quando os sinais vitais da sociedade indicam febre, o governo opta por quebrar o termômetro. Não há cura nesse ato, apenas silêncio estatístico.
O que se apaga e o que persiste
A fome, porém, não se cala com decretos. Persiste nos lares invisíveis aos relatórios, nas crianças que vão para a escola sem café da manhã, nos idosos que diluem o leite para durar mais dias. Persiste no cansaço dos voluntários que veem filas crescerem diante de prateleiras vazias. Persiste, sobretudo, na contradição entre a abundância de um país que lidera a produção mundial de alimentos e a privação de milhões de seus cidadãos.
Encerrar o relatório equivale a negar-se a olhar. Em maio, os sinais já eram claros. Nos meses que se seguiram, tornaram-se mais graves. O relatório que poderia registrá-los foi suprimido. O termômetro foi quebrado; a febre, no entanto, permanece — e aparenta até estar subindo…
Fontes: U.S. Department of Agriculture (USDA), Food Research & Action Center (FRAC), The New York Times, The Guardian, Politico e Washington Post
