Por Lucas Amorim* no OPEU | 18/09/2025
Thiago Lima é professor associado de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e, atualmente, coordenador de Cooperação Internacional no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Sua passagem pela gestão pública inclui a coordenação de projeto na Força-Tarefa para o estabelecimento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, no âmbito da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, consolidando sua experiência em fóruns multilaterais voltados para a segurança alimentar e para a cooperação internacional.
Reconhecido por sua pesquisa em segurança alimentar e política agrícola internacional, Thiago já abordou, em entrevistas anteriores ao OPEU, temas como a ajuda alimentar como instrumento de poder econômico dos EUA e a relação entre fazendeiros, corporações e sistema bancário na política agrícola norte-americana. Nesta nova entrevista, ele reflete sobre o papel do Brasil e da agricultura familiar nos debates internacionais, a conexão entre segurança alimentar e mudanças climáticas, e os caminhos possíveis para revitalizar o multilateralismo em um cenário global em transformação.
Thiago, você construiu uma trajetória sólida na academia e, desde 2024, atua diretamente na cooperação internacional nos Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Agrário. Que lições essa experiência mais recente na Administração Pública trouxe para sua trajetória e visão profissional?
A minha experiência profissional ainda é muito recente, mas algo que já está claro para mim é a importância de estar cercado de colegas com sólido conhecimento acadêmico e também com experiência prática. O ritmo de trabalho é muito intenso, as demandas são elevadas e os prazos para formulação, decisão e reação são bastante curtos. Nesse contexto, tanto a formação acadêmica quanto a experiência prática tornam-se extremamente valiosas. Estar em uma equipe que combina esses dois aspectos é, sem dúvida, o melhor cenário possível.
Nesse breve período, pude constatar que os estudos desenvolvidos na academia – no campo da política externa brasileira, da cooperação internacional, dos regimes e das organizações internacionais – são de grande utilidade e se mostram bastante condizentes com a realidade das negociações cotidianas e da administração desses regimes e da cooperação internacional. Em outras palavras, percebo uma validação prática dos estudos teóricos e dos debates acadêmicos. Além disso, dentro do meu campo de pesquisa, consigo identificar pontos em que o nosso conhecimento precisa, ou poderia, ser atualizado.
Essa vivência na Administração Pública impactou de alguma forma sua percepção sobre o ensino e a pesquisa em Relações Internacionais no Brasil?
A minha experiência profissional tem me levado a refletir sobre a prática do ensino e da pesquisa. No que se refere ao ensino, especificamente, ela reafirma a importância de uma formação teórica e acadêmica sólida. Um profissional bem formado na área de Relações Internacionais, com uma visão generalista, é capaz de se adaptar aos diferentes contextos e situações que surgem. É claro que, posteriormente, é necessário buscar uma especialização, mas esse olhar generalista é extremamente valioso e benéfico para o tipo de cargo que ocupei na Fazenda e que ocupo agora no Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Em relação à minha prática pessoal de ensino, pretendo introduzir trabalhos e avaliações mais práticos, que dialoguem com os tipos de documentos que preciso produzir no dia a dia. Entre eles, notas técnicas, one-pagers, notas conceituais, declarações de líderes e ministeriais e elaboração de discursos. Todos esses são documentos estratégicos de síntese, que precisam ser bem-informados do ponto de vista da conjuntura, com um propósito político claramente definido. Eles devem antecipar, em certa medida, as reações de outros países e organizações, ao mesmo tempo em que exigem concisão, algo essencial no trabalho prático. Introduzir a produção e análise desses tipos de documentos como etapas avaliativas pode, portanto, representar um avanço significativo na forma como conduzo o ensino.
No que se refere à pesquisa, essa minha experiência reforça a importância de conduzir entrevistas em profundidade com os operadores da política externa, pois eles detêm detalhes essenciais para a reconstrução dos processos de tomada de decisão e de formulação de políticas. Ao mesmo tempo, essas entrevistas permitem observar divergências e contradições que, vistas de fora, podem parecer coerentes, mas que, na perspectiva interna, são resultados tanto de embates de ideias quanto de oportunidades aproveitadas pelos servidores que estão de prontidão e debruçados sobre o tema.
Essa dimensão da construção real das decisões de curto prazo, e de como elas se conectam com trajetórias mais longas e com estruturas econômico-políticas, pode ser mais bem compreendida, analisada de forma mais crítica e enriquecida com maior nuance e complexidade por meio das entrevistas em profundidade.
Na Fazenda, você participou de uma força-tarefa sobre Combate à Fome e à Pobreza, uma novidade introduzida pela Presidência brasileira do G20. A Aliança contra a Fome e a Pobreza resultante conta com mais de 180 membros incluindo Estados, Organizações Internacionais, fundações, universidades e outros. Como essa coalizão pode contribuir de forma concreta para a erradicação da fome e da pobreza?
A Aliança Global Contra Fome e a Pobreza pode contribuir diretamente para a superação da insegurança alimentar e da pobreza de forma generalizada, por meio da aceleração ou da implementação de políticas públicas já testadas em outros contextos nacionais. É claro que essas políticas precisam ser adaptadas aos ambientes em que serão implantadas, mas o diferencial da Aliança é justamente o foco na implementação.
Por um lado, ela se abstém de aprofundar o debate sobre as causas estruturais da fome e da pobreza, o que deixa a Aliança exposta a críticas de que não estaria atacando a raiz do problema. Por outro, no atual cenário político internacional, é pouco provável que as grandes potências consigam se alinhar em um compromisso político amplo para enfrentar as causas profundas da fome e da pobreza. Nesse contexto, a Aliança propõe-se a se tornar um ponto de referência para a divulgação de experiências bem-sucedidas, de modo que os países que desejam implementar políticas possam conhecer essas experiências e contar com o apoio da estrutura da Aliança para adaptá-las e aplicá-las localmente.
A coordenação da Aliança busca, para esses países, os parceiros internacionais necessários para viabilizar esses esforços. Nesse sentido, a Aliança funciona como um agregador, ajudando países interessados, muitas vezes com recursos humanos limitados, a encontrar parceiros que permitam acelerar, ampliar ou iniciar do zero a implementação de políticas públicas de combate à fome e à pobreza em escala nacional. O objetivo da Aliança é atuar em nível nacional, e não em pequenos projetos de cooperação, que, mesmo quando bem-sucedidos, têm impacto limitado e efeitos multiplicadores restritos.
Compondo a delegação do MDA, você retornou recentemente da 44ª Conferência da FAO em Roma, que celebrou os 80 anos da organização. Que políticas foram promovidas pelo governo brasileiro nessa ocasião? E como foi participar de um momento histórico para o Brasil, já que a reunião marcou o retorno do Brasil à condição de país fora do Mapa da Fome, o que não ocorria desde 2018?
Participar da Cúpula dos Sistemas Alimentares foi muito importante, inclusive, porque ela é objeto de estudo em um projeto de pesquisa que coordeno junto ao CNPq. Foi, portanto, uma oportunidade única para compreender como a cúpula funciona por dentro. Foi especialmente emocionante participar desta edição, marcada pelo anúncio de que o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome da FAO. Esse anúncio reflete o conhecimento consolidado que o país possui no enfrentamento da fome, fruto de um conjunto bem articulado de políticas públicas.
Na primeira vez em que o Brasil saiu do Mapa da Fome, foram necessários cerca de 11 anos para alcançar esse resultado, considerando que, à época, o limite para um país ser considerado fora do mapa era de 5% da população em situação de fome. Hoje, com um critério mais rígido, 2,5% da população, o país conseguiu atingir esse marco em apenas dois ou três anos. Essa velocidade é impressionante e demonstra ao mundo que a articulação de políticas públicas bem desenhadas pode produzir resultados rápidos e desejáveis.
Na Cúpula dos Sistemas Alimentares, o papel do MDA foi, sobretudo, defender a transversalidade da agricultura familiar para a transição dos sistemas alimentares. Não apenas por ser um dos públicos mais vulneráveis às mudanças climáticas – recebendo menos de 1% de todo o financiamento climático global –, mas também porque, se bem equipada com investimentos e políticas públicas, a agricultura familiar pode atuar como agente de recomposição da biodiversidade, de preservação ambiental e de produção de alimentos diversificados, absolutamente essenciais para garantir dietas saudáveis, acessíveis e fisicamente disponíveis, especialmente para as populações mais pobres.
Um segundo ponto que defendemos foi a necessidade de maior engajamento dos investimentos privados na articulação com o poder público e com as cooperativas, visando estruturar cadeias de valor em torno dos produtos da agricultura familiar. Muitas vezes, o problema não é a falta de capacidade de produção, mas sim o excesso de produção, que gera instabilidade. Quando indústrias alimentícias, farmacêuticas e de cosméticos, que utilizam produtos da sociobiodiversidade, ajudam a estruturar essas cadeias de valor, elas contribuem para garantir estabilidade e previsibilidade, beneficiando todos os envolvidos.
O terceiro ponto defendido, naturalmente, foi o apoio à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. A recente saída do Brasil do Mapa da Fome reforça a relevância dessa iniciativa. A ideia é que outros países interessados em conhecer e adaptar nossas políticas possam contar com a Aliança para identificar parceiros capazes de viabilizar a implementação dessas medidas em escala nacional.
Por fim, o quarto ponto foi a importância da participação social na ciência. Durante a Cúpula, houve um debate sobre qual deveria ser o papel da ciência na transição dos sistemas alimentares. Defendemos que é essencial promover uma ciência centrada nas pessoas, com participação social. Em muitos campos, como a ciência agronômica, a ciência do solo ou a ciência econômica, o conhecimento já avançou significativamente e muitos países dispõem de condições naturais e de financiamento para a transição alimentar. O que falta, muitas vezes, é a capacidade de articular pessoas e instituições em torno de objetivos comuns.
Por isso, é fundamental que as ciências sociais e da gestão avancem para identificar formas de integrar sistemas de governança e de formulação de políticas públicas, de modo que elas funcionem como instrumentos complementares e articulados. Essa foi uma das principais lições aprendidas no Brasil: o combate à fome e à pobreza não pode ser feito por meio de políticas isoladas. Não se trata apenas do Bolsa Família ou da alimentação escolar, mas de como esses programas atuam como núcleos aglutinadores de diversas outras políticas, que em conjunto produzem os resultados esperados. Essa articulação é, ao mesmo tempo, uma questão social e de gestão, e a ciência precisa se voltar também para esses aspectos, muitas vezes considerados secundários em comparação às ciências laboratoriais e econômicas.
O próximo grande momento da atuação internacional do Brasil é a COP 30, em Belém. Quais são as expectativas do governo, especialmente do MDA, para essa Conferência?
Sobre a COP30, vou falar especificamente do papel do MDA, já que não tenho acompanhado de forma sistemática os trabalhos gerais da conferência, que, além de tudo, são bastante extensos. A posição do MDA é, mais uma vez, reforçar a transversalidade da agricultura familiar como solução para os problemas climáticos que enfrentamos. Está cada vez mais evidente a conexão entre a crise climática e a crise alimentar – duas faces de uma mesma moeda –, e, nesse ponto, a agricultura familiar, que engloba povos tradicionais, indígenas e comunidades quilombolas, pode representar uma parte central da solução. Esse é o princípio que orienta a atuação do MDA na COP30.
Entre as ações específicas, vamos defender a criação de uma rede internacional – possivelmente global – de assistência técnica e extensão rural. O objetivo é formar e capacitar agricultores em práticas mais agroecológicas e menos dependentes de insumos químicos, incentivando uma transição agroecológica e, ao mesmo tempo, fortalecendo territórios capazes de produzir alimentos mais biodiversificados.
Outra grande linha de atuação do MDA será a defesa dos bioinsumos, que utilizam os recursos naturais disponíveis no entorno e contribuem para reduzir a dependência da indústria química e de produtos que, em muitos casos, agridem o meio ambiente.
Além disso, vamos chamar atenção para o fato de que agricultores familiares, povos tradicionais, indígenas e comunidades quilombolas são os que menos se beneficiam do financiamento climático. Se, no início do século, havia mais recursos internacionais voltados para o combate à fome e à pobreza, hoje a questão climática é a principal força que mobiliza doações internacionais. No entanto, essa agenda ainda se volta pouco para as pessoas e para os produtores de alimentos, concentrando-se muito mais em estratégias como o sequestro de carbono e a preservação de grandes áreas intocadas. O que defendemos é colocar as pessoas no centro dessa equação e, nesse sentido, os agricultores familiares têm um papel fundamental.
Qual a importância da diversificação das parcerias do Brasil, como as relações com o BRICS e a União Europeia, para a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável do país?
A diversificação das parcerias do Brasil – com o BRICS, com a União Europeia e também com outros arranjos – é fundamental para a segurança alimentar e para o desenvolvimento sustentável do país. Em primeiro lugar, porque a diversificação de parcerias pode vir acompanhada do aumento do fluxo de comércio e de investimentos, o que contribui para fortalecer a atividade econômica nacional. E a forma mais imediata de garantir a segurança alimentar de uma população é assegurar uma economia robusta, já que a principal maneira, pela qual as pessoas obtêm alimentos, é por meio do mercado, pagando por eles. Assim, ampliar as relações internacionais para garantir mercados para o Brasil é essencial. Investimentos também são cruciais, assim como a cooperação para o desenvolvimento de tecnologias adaptadas à realidade brasileira e aos diferentes estilos de agricultura que abastecem o país.
Os países do BRICS, por exemplo, têm características que favorecem a cooperação Sul-Sul, com possibilidade de compartilhamento de soluções de baixo custo e alto impacto. Ao mesmo tempo, o bloco também reúne experiências de alta tecnologia que podem ser mais facilmente adaptadas à realidade brasileira. A China é uma referência incontornável em termos de avanço tecnológico, mas a Índia também tem muito a compartilhar, sobretudo, no campo da infraestrutura digital. No Brasil, por exemplo, o cadastro da agricultura familiar é uma ferramenta digital que garante acesso a diversas políticas públicas; incluir agricultores nesse sistema é fundamental. A Índia, com seu sistema de cadastro único, avançou significativamente nessa área, o que abre espaço para aprendizados e cooperação.
Com a União Europeia, por sua vez, há a possibilidade de ampliar a cooperação científica, especialmente no desenvolvimento de tecnologias voltadas para a agricultura de pequena escala. No entanto, há uma diferença marcante: o poder econômico dos pequenos agricultores europeus é muito distinto daquele dos pequenos produtores no Brasil e na América do Sul, região com a qual o Brasil também deveria diversificar suas parcerias. Além disso, o aprofundamento dessas parcerias é importante para que o país construa posições mais sólidas na governança internacional.
Por fim, uma provocação: diante de crescentes tensões geopolíticas e rupturas institucionais, ainda há esperança para o multilateralismo?
Eu acredito que há esperança para o multilateralismo, e essa esperança decorre de uma necessidade. Para resgatar uma ideia fundamental de Robert Keohane, em After Hegemony [Princeton University Press, 1984], os regimes internacionais podem se manter pela própria demanda dos países que aprenderam a depender deles. No caso do multilateralismo, penso que teremos uma lógica semelhante, mas considerando as distintas realidades de poder.
Estamos em um período de remodelamento que dependerá muito da configuração futura das hierarquias internacionais, especialmente diante da ascensão de China, Rússia e Índia e do declínio do poder dos Estados Unidos – aparentemente acelerado pelo atual governo norte-americano. Que tipo de multilateralismo resultará desse processo ainda é incerto, mas acredito que os países encontrarão caminhos para manter algum nível de diálogo, regras compartilhadas e princípios mínimos de convivência internacional.
No entanto, quando se trata de resolver as questões realmente fundamentais da geopolítica, tudo depende das relações de poder. O multilateralismo, por si só, não será capaz de enfrentar os grandes interesses das potências nem de atender plenamente às prioridades dos países em desenvolvimento, como alcançar o desenvolvimento, superar a pobreza, reduzir a desigualdade e enfrentar mazelas sociais persistentes.
Assim, o multilateralismo pode se revitalizar, mas provavelmente com o mesmo alcance limitado que teve desde o pós-Guerra Fria: insuficiente para enfrentar os problemas estruturais da ordem internacional, mas ainda essencial para manter o convívio e o diálogo entre os países.
* Lucas Silva Amorim é doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), pesquisador associado no Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU/INCT-Ineu) e pesquisador visitante Fulbright (2024-2025) na Georgetown University em Washington, D.C. Contato: [email protected].
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Publicado originalmente no OPEU
https://www.opeu.org.br/2025/09/18/thiago-lima-ao-opeu-multilateralismo-e-essencial/
