Como a pandemia revelou a face oculta da fome e das desigualdades no Brasil

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O estudo Insegurança alimentar e desigualdades alimentares no Brasil no contexto da pandemia, publicado na revista Opinião Pública do CESOP/Unicamp, é mais que uma análise estatística: constitui uma leitura sensível e rigorosa do drama coletivo vivido pelo Brasil em passado muito recente — a pandemia de Covid-19. Assinado por Eryka Galindo, Marco Antonio Teixeira, Melissa de Araújo, Lúcio Rennó, Larissa Loures, Milene Pessoa e Renata Motta, o trabalho convida o leitor a uma pausa atenta. Diante de seus dados e interpretações, a fome deixa de ser abstração numérica e se revela como um espelho que reflete, com precisão dolorosa, o retrato de um país profundamente desigual.

Entre novembro e dezembro de 2020 — o primeiro e mais incerto ano da pandemia —, 59,4% dos brasileiros viviam algum grau de insegurança alimentar. Em um em cada seis lares, a fome já se fazia sentir em sua forma mais extrema. O levantamento, conduzido pelo grupo de pesquisa Food for Justice, reuniu universidades do Brasil e da Alemanha e adotou a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), instrumento validado pelo IBGE. Foram 2.004 entrevistas telefônicas, distribuídas por todas as regiões, cuidadosamente ponderadas para representar a diversidade demográfica e territorial do país.

Os resultados, em si mesmos, já bastariam para alarmar. Mas o estudo vai além: busca compreender por que a fome, após ter recuado por uma década, voltou a crescer de modo tão rápido e desigual. Essa investigação revela algo mais profundo — um retrato moral e político do Brasil contemporâneo.

Da construção à desconstrução de uma política de Estado

Nos primeiros anos deste século, o país chegou a ser exemplo mundial. Programas como o Fome Zero, o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e os incentivos à agricultura familiar sustentaram a queda constante dos índices de insegurança alimentar. Entre 2004 e 2013, a proporção de lares em situação de privação alimentar caiu de 34,9% para 22,6%. Em 2014, o Brasil deixava oficialmente o Mapa da Fome da ONU.

O cenário, porém, se inverteu com rapidez. A crise econômica iniciada em 2014, a instabilidade política e, depois, o desmonte sistemático das instituições voltadas à segurança alimentar reverteram conquistas que pareciam sólidas. O Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto em 2016, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), dissolvido em 2019, e o PAA, que integrava produtores e consumidores em circuitos de abastecimento locais, perdeu quase todo seu orçamento.

A pandemia encontrou, assim, uma estrutura social já fragilizada. O vírus atingiu corpos, mas o que o precedeu — desemprego, precarização, desmonte de políticas públicas — preparou o terreno. O estudo mostra que a fome não irrompeu como um fenômeno novo, e sim como o desfecho previsível de uma sequência de decisões políticas.

A pandemia e o mapa da carência

O Brasil da pandemia foi um país de geladeiras vazias. Segundo o levantamento do Food for Justice, apenas 40,6% dos lares mantinham acesso regular a alimentos adequados. Entre os demais, 31,7% viviam incertezas quanto ao futuro das refeições; 12,7% já reduziam porções entre adultos; e 15% haviam ultrapassado a linha da fome.

Esses resultados coincidem com os do inquérito nacional conduzido pela Rede Penssan, que identificou 55,2% da população em insegurança alimentar. A concordância entre dois estudos, realizados por métodos distintos, reforça a consistência de um diagnóstico perturbador.

A fome, porém, não é neutra. Ela tem endereço, cor, gênero e classe — e é aqui que o artigo oferece sua contribuição mais sofisticada.

Desigualdades alimentares: compreender a fome como estrutura

Inspirando-se nos trabalhos da socióloga Renata Motta, os autores adotam o conceito de “desigualdades alimentares”, um campo analítico que recusa leituras simplificadoras. A fome, argumentam, deve ser vista como fenômeno multidimensional — resultado da interação entre forças econômicas, políticas, culturais e ambientais — e interseccional, pois se distribui de forma desigual conforme os marcadores de gênero, raça, renda e território.

Essa perspectiva devolve à pesquisa social o que ela tem de mais humano: a capacidade de distinguir rostos dentro das estatísticas.

Nos lares chefiados por mulheres, a insegurança alimentar atingiu 70,7%; entre os chefiados por homens, 58,2%. Quando a responsável era mulher, a fome grave foi quase o dobro da observada nos domicílios masculinos.

O marcador racial é igualmente contundente: 72,6% dos lares chefiados por pessoas pretas e 72,1% por pardas enfrentavam insegurança alimentar, contra 53% entre os lares brancos. A fome grave alcançou 25,2% das famílias negras.

As desigualdades também se desenham nas idades: domicílios com crianças de até quatro anos apresentaram 70,7% de insegurança alimentar; entre os com idosos, o índice foi menor, 57,4%, possivelmente amortecido pela renda de aposentadorias.

E quando o olhar se volta à renda, o abismo se amplia: entre famílias com renda per capita até R$ 500, 71,4% estavam em insegurança alimentar; acima de R$ 1.000, o índice cai para 26,4%.

A fome também se distribui pelo território. As regiões Norte e Nordeste registraram os piores índices, e, no meio rural, 75,2% dos lares viviam privação alimentar.

Cada número, tomado isoladamente, é frio. Juntos, formam uma cartografia precisa de um país que, em meio à pandemia, viu a desigualdade atravessar o prato.

Auxílio emergencial e Bolsa Família: amortecer o impacto, não revertê-lo

A pesquisa dedicou atenção especial às políticas públicas que tentaram conter a crise. 52% dos entrevistados receberam o Auxílio Emergencial (AE), criado em 2020. Paradoxalmente, a maioria desses lares também estava entre os mais atingidos pela fome — 74,1% em insegurança alimentar. Isso não significa ineficácia da política, mas sim que ela chegou a quem mais precisava.

Mais de 63% dos beneficiários declararam ter usado o auxílio principalmente para comprar alimentos. O estudo conclui que, sem essa medida, o cenário teria sido ainda mais devastador. O Bolsa Família, por sua vez, revelou-se um pilar essencial de identificação e amparo aos mais pobres, embora seu valor e cobertura se mostrassem insuficientes para enfrentar uma crise dessa magnitude.

Os pesquisadores sublinham que o Brasil carece de políticas permanentes e estruturadas, não apenas de respostas emergenciais.

O peso do prato: economia e sistema alimentar

A fome é também consequência de escolhas econômicas. Em 2020, a inflação geral foi de 4,52%, mas os alimentos subiram 14,09%. O óleo de soja teve aumento de 103%, o arroz, de 76%. A razão não está apenas na pandemia, mas em um modelo agroalimentar voltado à exportação de commodities, que prioriza o lucro externo e compromete o abastecimento interno.

Feiras livres fecharam, circuitos locais de produção foram interrompidos, e pequenos agricultores perderam sua principal fonte de renda. O estudo argumenta que, ao privilegiar grandes exportadores e reduzir políticas de estoques públicos, o país expôs a população à volatilidade dos preços e à dependência de cadeias globais.

O que o estudo nos ensina

Ao final de suas 36 páginas, o artigo deixa claro que a fome no Brasil não é um fenômeno natural nem um efeito colateral isolado da pandemia. É o resultado de um arranjo social que enfraqueceu deliberadamente as redes de proteção e desmantelou as instituições de segurança alimentar e nutricional.

Os autores defendem uma reconstrução ampla, que envolva:
– o fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia;
– a recriação do CONSEA e a retomada das conferências nacionais de segurança alimentar;
– políticas de transferência de renda estáveis e dignas;
– e medidas de regulação de preços e estoques públicos, capazes de amortecer as oscilações do mercado e garantir o abastecimento.

Mais do que números, o estudo oferece uma ética: a de que o direito à alimentação adequada é indissociável da democracia.

Um chamado à responsabilidade

“O Brasil voltou ao mapa da fome porque abandonou a política de Estado que garantia o direito à alimentação”, afirma Eryka Galindo. “A pandemia apenas revelou as consequências desse abandono.”

Essa afirmação resume o tom sereno e grave do estudo. A fome não se mede apenas em calorias, mas também em ausências — de políticas, de empatia, de visão de futuro.

Ao trazer luz a essas ausências, o trabalho dos pesquisadores de Food for Justice cumpre um papel civilizatório: recorda que alimentar-se é um direito, não uma sorte, e que um país só se sustenta plenamente quando todos os seus habitantes podem, ao menos, partilhar o pão cotidiano.

Ler este estudo é revisitar o Brasil por meio do que ele tem de mais elementar e de mais negado: a comida no prato. Ao final, o leitor se vê convidado a uma reflexão que ultrapassa as fronteiras da pesquisa — uma reflexão sobre o que significa, afinal, viver em sociedade.

Sobre o estudo

Baixe aqui o artigo “Insegurança alimentar e desigualdades alimentares no Brasil no contexto da pandemia