O G20 há muito tempo se compromete a enfrentar a crise mundial da fome, mas tem encontrado dificuldades em transformar promessas em resultados concretos. A presidência da África do Sul representa uma oportunidade para mobilizar apoio internacional em torno de soluções comprovadas que fortaleçam os sistemas alimentares locais e promovam meios de vida sustentáveis.
Por Raj Patel e Refiloe Joala no Project Syndicate | 14/10/2025
AUSTIN/JOANESBURGO – Ao assumir a presidência do G20 em dezembro, a África do Sul escolheu como tema “solidariedade, igualdade e sustentabilidade”. Longe de ser um simples slogan, essa escolha reflete os princípios fundamentais sobre os quais deve se apoiar qualquer resposta internacional séria à atual crise da fome.
Impulsionada pelas mudanças climáticas, pelos conflitos e pela desigualdade, a insegurança alimentar está crescendo em todo o mundo. As ferramentas para enfrentá-la já existem; o desafio é mobilizar vontade política para agir. A presidência sul-africana do G20 oferece uma oportunidade única para fazer exatamente isso.
O Brasil é um exemplo valioso. Nos últimos dois anos, conseguiu retirar 40 milhões de pessoas da insegurança alimentar, saindo do Mapa da Fome das Nações Unidas. Para alcançar esse resultado, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva restabeleceu políticas abandonadas por seu antecessor, Jair Bolsonaro, reforçou os programas de merenda escolar por meio da compra de produtos de pequenos agricultores e produtores indígenas, aumentou o salário mínimo e reconheceu legalmente o direito à alimentação.
Nenhuma dessas medidas é experimental. São soluções testadas e comprovadas, e seu sucesso demonstra que acabar com a fome não depende de inovações tecnológicas, mas de coragem política.
Quando o Brasil assumiu a presidência do G20 no ano passado, buscou compartilhar suas conquistas internas, especialmente com o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. No entanto, resultados concretos ainda são difíceis de alcançar, pois muitos dos membros da Aliança – especialmente os bancos multilaterais de desenvolvimento (BMDs) – continuam promovendo soluções técnicas e orientadas para o mercado que priorizam os direitos de propriedade corporativos em detrimento das necessidades humanas básicas.
Em vez de criar novas iniciativas e plataformas, a principal prioridade do G20 deveria ser consolidar e ampliar programas que já demonstraram eficácia. O Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas do Comitê das Nações Unidas para a Segurança Alimentar Mundial oferece um espaço robusto e inclusivo para o debate global. O que se precisa agora é de uma agenda política concreta que permita a líderes progressistas e gestores públicos implementar políticas nacionais eficazes de combate à fome.
É verdade que a África do Sul dispõe de pouco tempo antes de passar a presidência do G20 aos Estados Unidos – o único país-membro que se recusa sistematicamente a reconhecer o direito humano à alimentação. Mas, enquanto ainda lidera o grupo, pode defender instrumentos políticos essenciais para erradicar a fome.
Quatro desses instrumentos se destacam.
Primeiro, as compras públicas de alimentos de pequenas propriedades rurais para programas de merenda escolar e alimentação pública fortalecem tanto a nutrição quanto os meios de vida rurais.
Segundo, os estoques reguladores e os mecanismos de estabilização de preços podem proteger os consumidores de choques de preços, ao mesmo tempo em que asseguram renda estável aos agricultores.
Terceiro, as políticas de proteção social – que incluem salários dignos, transferências de renda e benefícios universais – garantem que todas as famílias tenham acesso a uma alimentação saudável.
Por fim, leis que consagram o direito à alimentação podem tornar os governos responsáveis caso deixem de agir.
Igualmente importante é que os líderes do G20 reconheçam que não precisam se submeter às prioridades políticas dos bancos multilaterais de desenvolvimento. Como membros dos conselhos dessas instituições, eles têm o poder de redirecionar o apoio internacional do agronegócio voltado à exportação para os sistemas alimentares locais e para a agricultura familiar resiliente ao clima.
Se o governo sul-africano realmente pretende promover um sistema alimentar global mais justo e sustentável, deve seguir o exemplo de sua própria sociedade civil, que há décadas está na linha de frente da luta contra a fome. Em vez de convocar mais uma rodada de discussões de alto nível com poucos resultados práticos, é hora de buscar compromissos públicos duradouros, que resistam inclusive à próxima presidência norte-americana do G20.
Os formuladores de políticas na África do Sul parecem compreender o que está em jogo. Na recente Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares (UNFSS+4), realizada em Adis Abeba, o ministro da Agricultura, John Steenhuisen, reafirmou o compromisso do país com a soberania alimentar. Pela primeira vez, o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional proposto reconhece a agroecologia como caminho para uma agricultura sustentável, promotora da biodiversidade e da resiliência climática. O Conselho de Pesquisa Agrícola também recebeu a missão de desenvolver uma estrutura nacional de agroecologia centrada em culturas indígenas.
Embora as engrenagens da governança girem lentamente, as comunidades locais não podem esperar. Durante a pandemia de COVID-19, pesquisadores identificaram uma rede ativa de 78 pequenos produtores – em sua maioria mulheres – cultivando uma grande variedade de frutas e hortaliças na província de KwaZulu-Natal. Ao venderem seus excedentes localmente, esses agricultores sustentaram a economia de todo o distrito de uMgungundlovu, envolvendo comerciantes de caminhonetes, feirantes, lojas de bairro, escolas e mercados municipais.
Essa experiência demonstra como os sistemas alimentares locais fortalecem tanto os meios de subsistência quanto o tecido social. A fome não é vencida em salas de conferência; a luta acontece nas cozinhas, nas escolas e nos campos. Para vencer, os produtores de base precisam de apoio político e recursos que lhes permitam prosperar.
O G20 deve enfrentar a crise da fome de forma direta – ou arriscar-se a perder o que resta de sua credibilidade. A África do Sul pode liderar esse processo ao colocar a justiça alimentar no centro de sua agenda, demonstrando que “solidariedade, igualdade e sustentabilidade” não são ideais abstratos, mas condições essenciais para a sobrevivência da humanidade.
Raj Patel é professor pesquisador na Universidade do Texas, em Austin, e membro do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis.
Refiloe Joala coordena o programa de soberania alimentar no Escritório Regional da África Austral da Fundação Rosa Luxemburgo.
Publicado originalmente no Project Syndicate
https://www.project-syndicate.org/commentary/south-africa-must-use-g20-presidency-to-promote-fight-against-hunger-by-raj-patel-and-refiloe-joala-2025-10
