Segurança Alimentar em um Clima em Transformação: a Proteção Social Precisa Responder às Crises em Curso

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Blog do IFZ | 05/11/2025

Baixe aqui o documento temático “Food Security in Changing Climates: Social Protection Must Respond to Unfolding Crises

As mudanças climáticas estão comprometendo de forma grave a segurança alimentar mundial, afetando os quatro pilares que a sustentam — disponibilidade, acessibilidade, utilização e estabilidade dos alimentos. O impacto é especialmente severo nos países menos desenvolvidos (LDCs) e nos pequenos Estados insulares (SIDS), que enfrentam altos índices de pobreza, infraestrutura precária e grande dependência de setores sensíveis ao clima, como agricultura, pesca e turismo.

O relatório do International Institute for Environment and Development (IIED), elaborado por Ritu Bharadwaj, N. Karthikeyan e Tom Mitchell, defende que os programas de proteção social precisam evoluir de uma abordagem reativa para uma abordagem antecipatória, capaz de agir antes que os desastres climáticos ocorram. Essa mudança, além de mais eficaz, é comprovadamente mais econômica do que as respostas humanitárias pós-crise: cada dólar investido em resiliência pode gerar até 15 dólares em economia na recuperação de desastres.

1. Crise climática e segurança alimentar

A intensificação dos eventos climáticos extremos — secas, enchentes, tempestades e aumento da temperatura média — está reduzindo a produtividade agrícola, ameaçando rebanhos e estoques pesqueiros e desestabilizando sistemas alimentares. O Relatório de Síntese do IPCC de 2023 já alertava que os impactos do aquecimento global estão mais disseminados e são mais graves do que se previa.

Até 2030, as mudanças climáticas podem empurrar 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema, eliminar 72 milhões de empregos e deixar 3,2 bilhões de pessoas sob risco de escassez hídrica. Com um aumento de 2 °C até 2050, outras 80 milhões de pessoas poderão enfrentar a fome.

Essas consequências são interligadas: a queda na produção reduz a disponibilidade de alimentos; o aumento dos preços e a desigualdade agravam a acessibilidade; as doenças e a insegurança alimentar comprometem a utilização; e as oscilações de renda e oferta tornam o sistema mais instável. Diante disso, o IIED argumenta que a segurança alimentar só será alcançada com respostas coordenadas que integrem políticas climáticas e sociais, especialmente nos países mais vulneráveis.

2. A importância da proteção social

Programas de proteção social — como transferências de renda, obras públicas, subsídios e seguros agrícolas — são instrumentos fundamentais para reduzir a vulnerabilidade. Experiências internacionais demonstram resultados concretos:

  • Etiópia: o Productive Safety Net Programme (PSNP) permitiu que 62% das famílias evitassem vender seus bens e 36% conseguissem poupar durante longos períodos de seca.
  • Quênia: o Hunger Safety Net Programme garantiu a manutenção do consumo das famílias beneficiadas durante a seca de 2008–2011.
  • Bangladesh: o programa Challenging the Frontiers of Poverty Reduction aumentou a renda per capita em 42% e dobrou os ativos domésticos em apenas três anos.

Esses exemplos demonstram que a proteção social antecipatória, acionada antes dos choques climáticos, é mais eficaz e menos custosa do que as respostas emergenciais tradicionais.

3. O Índice ASPIRE

Para avaliar o nível de prontidão dos países, o IIED desenvolveu o Anticipatory Social Protection Index for Resilience (ASPIRE), aplicado em oito países com diferentes perfis climáticos: Bangladesh, Etiópia, Gana, Índia, Malawi, Paquistão, Senegal e Uganda. O índice mede como as políticas e programas nacionais contribuem para os quatro pilares da segurança alimentar.

Os resultados apontam diferenças significativas:

  • Etiópia obteve o melhor desempenho, com destaque para utilização (78) e disponibilidade (67), resultado de políticas integradas e sistemas robustos de alerta precoce.
  • Senegal teve nota elevada em utilização (78), impulsionada por programas de nutrição e saúde eficientes.
  • Índia apresentou bom desempenho em disponibilidade (55) e estabilidade (64), graças ao programa MGNREGS, que combina geração de empregos com conservação ambiental.
  • Malawi, Bangladesh e Paquistão obtiveram notas baixas, refletindo limitações de recursos e de coordenação.
  • Gana e Uganda registraram resultados intermediários, mas ainda enfrentam lacunas na coordenação interministerial e na cobertura dos programas.

O estudo confirma que cada país precisa de estratégias personalizadas, adaptadas aos seus riscos climáticos, capacidades institucionais e contextos socioeconômicos.

4. Fortalecendo a segurança alimentar por meio da proteção social antecipatória

O relatório organiza suas recomendações de acordo com os quatro pilares da segurança alimentar:

a) Disponibilidade

Para garantir o fornecimento de alimentos, os países devem:

  • Mapear riscos e criar sistemas de alerta precoce, como em Bangladesh e Uganda;
  • Integrar gatilhos climáticos que acionem automaticamente benefícios antes dos desastres, a exemplo do Quênia;
  • Desenvolver esquemas de seguro paramétrico, que liberam pagamentos com base em indicadores climáticos, como ocorre na Etiópia;
  • Promover conservação ambiental e gestão hídrica, inspirando-se nos programas MGNREGS (Índia) e PSNP (Etiópia).

b) Acessibilidade

Para tornar os alimentos mais acessíveis, é necessário:

  • Aperfeiçoar o mapeamento da população vulnerável e ampliar o alcance dos benefícios;
  • Combater exclusões e desigualdades, garantindo acesso a mulheres, idosos e pessoas com deficiência;
  • Oferecer benefícios portáteis a migrantes climáticos — como o One Nation One Ration Card da Índia;
  • Utilizar tecnologia e dados (contas digitais, sistemas biométricos, pagamentos móveis) para aumentar a eficiência;
  • Criar mecanismos rápidos de desembolso e parcerias financeiras;
  • Subsidiar bens essenciais e insumos agrícolas;
  • Investir em infraestrutura resiliente, como estradas e pontes que assegurem o transporte de alimentos durante crises.

c) Utilização

Para garantir o uso adequado e seguro dos alimentos, o relatório recomenda:

  • Promover políticas integradas de saúde e nutrição, com exemplos como o Bolsa Família (Brasil) e o Ghana School Feeding Programme;
  • Desenvolver ações de educação alimentar e de preparo seguro dos alimentos, fortalecendo o papel dos agentes comunitários;
  • Melhorar a infraestrutura de saúde para lidar com doenças associadas ao clima;
  • Criar mecanismos de coordenação intersetorial entre agricultura, saúde e proteção social;
  • Fortalecer redes comunitárias e organizações locais, essenciais para a implementação das políticas no território.

d) Estabilidade

Para reduzir a volatilidade e reforçar a resiliência:

  • Diversificar meios de subsistência e investir em infraestrutura produtiva;
  • Priorizar programas de maior custo-benefício, como obras públicas e alimentação escolar;
  • Assegurar financiamento sustentável, com múltiplas fontes e mecanismos inovadores;
  • Criar fundos nacionais de contingência para resposta imediata, como o National Emergency Fund de Uganda;
  • Desenvolver mecanismos financeiros inovadores, como seguros soberanos baseados em parâmetros climáticos e títulos de resiliência (resilience bonds).

O relatório também propõe que o IIED vincule alívio da dívida soberana a seguros climáticos, além de criar fundos globais para subsidiar prêmios de seguro destinados a países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares. Outra inovação seria aproveitar o potencial de sequestro de carbono de programas de obras públicas — como o MGNREGS, que pode capturar até 249 Mt de CO₂ até 2030 — para emitir títulos de carbono e resiliência, atraindo investimentos privados.

5. Perspectivas e o papel dos atores globais

Na seção Looking Forward, o relatório conclui que enfrentar a fome em um cenário de crise climática exige cooperação global e governança integrada.

  • Governos nacionais devem liderar o processo, incorporando a proteção social antecipatória às políticas públicas e assegurando fundos de contingência, sistemas de dados e benefícios portáteis.
  • Organizações internacionais — como a ONU, o Banco Mundial e bancos regionais — precisam harmonizar padrões, apoiar a disseminação de ferramentas como o ASPIRE e incluir a proteção social antecipatória nos acordos climáticos e de desenvolvimento.
  • Agências de financiamento e filantropia devem garantir recursos sustentáveis e investir na capacitação de instituições locais.
  • O setor privado tem papel fundamental na criação de instrumentos financeiros inovadores e em investimentos em infraestrutura resiliente.
  • A sociedade civil e as comunidades locais são essenciais para a implementação, o monitoramento e a legitimidade das ações no território.

O documento encerra destacando que a presidência brasileira do G20 representa uma oportunidade estratégica para impulsionar a segurança alimentar global e mobilizar recursos voltados a programas de proteção social adaptativos e resilientes.

Síntese final

O relatório do IIED sustenta que, sem uma transformação estrutural na proteção social, as crises alimentares provocadas pelas mudanças climáticas tendem a se agravar. A segurança alimentar no século XXI depende de sistemas capazes de antecipar riscos, acionar respostas antes das catástrofes e integrar políticas de bem-estar, clima e desenvolvimento.

O custo da inação será muito maior do que o investimento necessário hoje para construir resiliência.

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