Assim como as iniciativas de ativismo alimentar dos movimentos sociais, as políticas alimentares devem considerar as especificidades dos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e ecológicos
Por Paulo Niederle no Nexo | 13/04/2023
Em pouco menos de três meses, o novo governo já promoveu inovações institucionais que podem produzir importantes efeitos nas políticas alimentares. As mudanças abarcam, por exemplo, a criação e reformulação de ministérios, secretarias e departamentos; a transferência de competências entre as pastas; a realocação de secretarias, autarquias e programas; a reinserção do país em fóruns e agendas internacionais e; o restabelecimento dos espaços de diálogo com os movimentos sociais, notadamente o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional).
A implementação de várias dessas mudanças ainda está em fase inicial, e algumas delas, como é o caso da reestruturação da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), têm sido retardadas pela forte resistência de setores do “agro”. Mesmo assim, ao menos na sua concepção, essas medidas apontam para a retomada de programas que outrora permitiram ao país sair do mapa da fome. Programas que, apesar – ou mais precisamente em virtude – do sucesso, tornaram-se alvos prioritários do processo de destruição do aparato estatal levado à cabo pelo governo Bolsonaro.
Ao longo dos últimos quatro anos, o desmantelamento das políticas alimentares reafirmou a centralidade das iniciativas da sociedade civil para assegurar um dos direitos mais fundamentais, a alimentação. Os dados alarmantes sobre o número de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil somente não são piores porque, em muitos territórios, os movimentos sociais, com ou sem apoio de atores estatais das escalas subnacionais, assumiram para si a responsabilidade de garantir comida para as populações mais pobres, notadamente aquelas residindo nas periferias das cidades.
Se o governo compreender o potencial das várias formas de ativismo alimentar desses movimentos, poderá não apenas reconstruir o que deu certo no passado, mas inovar na criação de uma nova geração de políticas alimentares.
Ao longo dos últimos quatro anos, o desmantelamento das políticas alimentares reafirmou a centralidade das iniciativas da sociedade civil para assegurar um dos direitos mais fundamentais, a alimentação
No meio acadêmico, o ativismo desses movimentos tem despertado interesse renovado pelo papel das cidades na transformação dos sistemas alimentares e, a partir disso, pelo desenho de políticas alimentares urbanas. Isso não implica desconsiderar a importância dos movimentos rurais, notadamente daqueles que historicamente se articulam em torno da agricultura familiar. Ao contrário, trata-se de perceber que eles mesmos já incorporaram às suas estratégias políticas a aproximação com movimentos urbanos – e que agora isso pode ser potencializado pela ação das políticas públicas.
Alguns movimentos do campo já entenderam que seus objetivos podem ser alcançados por meio de políticas que não se orientam primeiramente a eles mesmos. A própria experiência do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) já havia demonstrado que as compras públicas para atender pessoas em situação de vulnerabilidade é uma ótima estratégia para fortalecer a agricultura familiar.
Esse tipo de programa foi atacado pelo bloco mais conservador do agro não exatamente em virtude do ínfimo recurso que mobiliza, mas porque ele legitima a ação do Estado nos mercados alimentares e, para além disso, permite abrir algumas caixas-pretas da gestão pública, à exemplo do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador). Criado em 1976, e sempre voltado aos interesses das empresas de vale-alimentação, tal programa pode ser reorientado para a compra de alimentos saudáveis e sustentáveis, ampliando consideravelmente o mercado para os agricultores familiares.
Ideias não faltam: adequação dos planos diretores para criar áreas destinadas à agricultura urbana; licitações para concessão de espaços públicos (rodoviárias, aeroportos, parques) com regulação de preços e exigência de oferta de alimentos saudáveis; criação de zonas de exclusão do comércio de ultraprocessados e/ou bebidas açucaradas (incluindo a venda automatizada) no entorno de escolas e parques públicos; adequação da infraestrutura de parques, escolas e universidades para as pessoas consumirem refeições adequadas (acesso à água potável, mesas, segurança); e assim por diante. (Outros exemplos podem ser encontrados no documento “Políticas alimentares integradas e a construção de sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis e justos”, recentemente publicado por nosso grupo de pesquisa com apoio do Instituto Ibirapitanga).
O que falta, contudo, é colocar essas ideias à prova. Algumas delas têm sido testadas por municípios que subscreveram o Pacto de Milão sobre Política de Alimentação Urbana. No entanto, as iniciativas já existentes nos ensinam que as soluções não serão as mesmas em toda parte. Assim como as iniciativas de ativismo alimentar dos movimentos sociais, as políticas alimentares devem considerar as especificidades dos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e ecológicos. Para que isso aconteça é necessário restabelecer a noção de território no planejamento e implementação das políticas alimentares.
Mas não um território fictício, meramente administrativo, com demarcações rígidas, definidas de cima para baixo. As políticas alimentares demandam territórios dinâmicos e flexíveis, que se ajustam ao tipo de prática social que é foco da ação pública. Alterar as rotas de distribuição, apoiar sistemas cooperativos de comercialização ou implantar grupos de certificação participativa, por exemplo, são ações que podem requerer recortes territoriais muito diferentes.
Um território não é uma junção de municípios. Isso é apenas uma nova regionalização. Territórios se constituem a partir de emaranhados de relações sociais de diversas naturezas. Em um mesmo bairro urbano ou comunidade rural, diferentes territórios podem ser identificados em razão da natureza dos laços que unem as pessoas entre elas e com o ambiente.
Portanto, essa visão implica abandonar a lógica que outrora pautou as políticas de desenvolvimento territorial para inovar na construção de Projetos Alimentares Territoriais. O embrião desses projetos são as próprias iniciativas sociais que floresceram nos últimos anos e que, com o suporte do Estado, podem agora constituir uma nova geração de políticas alimentares que catalisem a construção de sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos.
Paulo Niederle é professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), coordenador do Sopas (Grupo de Pesquisa em Sociologias das Práticas Alimentares).
Publicado originalmente no Nexo Jornal
https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2023/Uma-nova-gera%C3%A7%C3%A3o-de-pol%C3%ADticas-alimentares