Versão para leitura na Plenária Final da 6a CNSAN
1. A comida de verdade é a essência da vida. Ela é produzida em harmonia com a natureza, defendendo e valorizando nossas culturas alimentares que são expressão dos territórios urbanos, rurais, de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana/povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, comunidades tradicionais, agricultoras(es) familiares e camponesa(es) e trabalhadoras(es) urbanos e rurais.
1. A comida de verdade é a essência da vida. Ela é produzida em harmonia com a natureza, defendendo e valorizando nossas culturas alimentares que são expressão dos territórios urbanos, rurais, de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana/povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, comunidades tradicionais, agricultoras(es) familiares e camponesa(es) e trabalhadoras(es) urbanos e rurais.
2. A crise econômica e política, a adoção de medidas de cunho neoliberal e a ocorrência da pandemia da Covid-19 agravada pela gestão criminosa das políticas públicas, no período de 2016 e 2022, resultaram no aumento do desemprego, da pobreza, da fome e da má nutrição. Esses flagelos sociais atingem dramaticamente as populações empobrecidas e historicamente excluídas, especialmente as mulheres negras e periféricas.
3. Nós, 2400 participantes da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, somos pessoas oriundas das mais diversas partes do país. Diante de tantos desafios e de tanta fome, nos fortalecemos quando nos juntamos, debatemos e nos organizamos com o objetivo de propor formas de Erradicar a Fome e Garantir Direitos com Comida de Verdade, Democracia e Equidade com políticas públicas que nos reconheçam em nossas diversidades, a nós e a quem representamos.
Um sistema alimentar adoecido e adoecedor
4. As formas de produção hegemônicas e coloniais desconsideram as cosmovisões e modos de vida de povos originários, de matriz africana e de povos e comunidades tradicionais, que consideram o alimento, a água, a terra, os animais, as ervas e as folhas, como sagrados. Expropriam a vida, privatizam os bens comuns e os tratam como mercadoria. Adoecem, geram fome, escassez, ameaças, conflitos nos territórios e nas cidades, colapsam o clima. Atingem a saúde física, mental e espiritual das pessoas.
5. Estes sistemas alimentares aprofundam as desigualdades, o racismo estrutural e o patriarcado. Violam os corpos-territórios, exploram e precarizam o trabalho, principalmente o das mulheres. Contaminam o leite materno, envenenam a comida, a terra, a água e o ar. Provocam violências e a destruição da natureza. Expulsam o povo de seus espaços ancestrais e das instâncias de decisão e poder, que estão dominadas pelos interesses corporativos.
6. Os alimentos saudáveis ficam cada vez mais caros e inacessíveis, os ultraprocessados ganham cada vez mais espaço nas mesas da população, especialmente a empobrecida, prejudicando a saúde, aniquilando culturas, apagando memórias de sabores e saberes. A fome e a pobreza associam-se às múltiplas exclusões em razão de classe, gênero, identidade de gênero, identidades afetivo-sexuais, raça e etnia.
Comida de Verdade, Democracia e Equidade
7. O Brasil foi capaz de reduzir a fome no passado. Contudo, forças privatizantes, liberalizantes e anti-democráticas assim como políticas equivocadas desmontaram as instituições, resultando no expressivo aumento da insegurança alimentar e nutricional.
8. Assim, convocamos os poderes públicos, em parceria com organizações da sociedade civil, a fortalecer a democracia e retomar com vigor a implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). É urgente que as três esferas de governo garantam políticas públicas com mecanismos efetivos de prevenção, mitigação e gestão de conflitos de interesse e que assegurem o direito humano à alimentação adequada.
9. É imperativo que o Sisan contemple em suas ações e representações a agricultura familiar e camponesa, populações negras, periféricas, em situação de rua, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, deslocadas(os), refugiadas(os), migrantes, pessoas em situação de privação de liberdade, gestantes e lactantes, pessoas idosas e demais grupos vulnerabilizados, garantindo acesso à comida de verdade.
10. O avanço da produção de commodities alimentares intensiva no uso de agrotóxicos e transgênicos, voltada para o mercado externo e a indústria de alimentos, sobretudo de ultraprocessados, provoca erosão genética, empobrecimento nutricional, comprometimento das culturas alimentares, degradação da sociobiodiversidade, contaminação dos solos e das águas, concentração fundiária, conflitos agrários, fome e agravamento da crise climática.
11. O Brasil precisa produzir comida de verdade. Realizar a reforma agrária popular, a reforma urbana e garantir os territórios indígenas e tradicionais, assegurando condições de vida digna e trabalho assim como viabilizar arranjos produtivos originários e tradicionais, e outras ações para o estabelecimento e a permanência, especialmente das juventudes, nos campos, águas e florestas.
12. Urge a implementação de ampla transição agroecológica e transição energética com participação popular e justiça socioambiental! Urge recuperar áreas para a produção de nossos alimentos básicos. A produção de alimentos em base agroecológica, além de saudável, porque é livre de venenos, é essencial para enfrentar o aquecimento global.
13. É também urgente defender a vida das defensoras e dos defensores da Soberania e Segurança Alimentar Nutricional! Comida de verdade só existe com povos e culturas vivas; com territórios livres; com a salvaguarda das sementes crioulas; com a proteção, recuperação e conservação de nascentes e biomas; com conhecimentos ancestrais; com ações antirracistas e anticolonialistas para tecer estratégias e confluências para o Bem Viver. A comida de verdade se alimenta de diversos saberes tradicionais, populares, sagrados e científicos.
14. É fundamental que as políticas públicas respondam às realidades e demandas de cada região e território, e reduzam a distância entre quem produz e quem consome. Nesse caminho, é preciso investir em políticas de baixo impacto climático, como circuitos curtos, agricultura urbana e periurbana, hortas comunitárias, jiraus de ervas medicinais, pomares de acesso livre e feiras populares, entre outras. Faz-se necessário, ainda, garantir que seja fácil e barato ter acesso a alimentos saudáveis e variados, com uma rede de abastecimento popular que aproxime quem produz das pessoas.
15. A comida de verdade tem que ser acessível e ter preço justo. O Estado deve redistribuir renda por meio da criação de empregos dignos, da ampliação de programas de transferência de renda e de proteção social. Deve, também, implementar medidas tributárias progressivas que barateiam os alimentos saudáveis, taxem ultraprocessados e desonerem as famílias empobrecidas.
16. As políticas públicas e medidas regulatórias devem ser construídas com participação social, sem conflitos de interesse e interferência do setor privado e devem ser baseadas nos princípios e diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira com vistas à promoção da alimentação adequada e saudável, baseada em alimentos in natura ou minimamente processados, livres de transgênicos e agrotóxicos.
17. É importante promover a democracia plena e assegurar a equidade em todas as esferas da sociedade, com o fortalecimento da participação social, ancorada na educação popular. Deve ser efetivado o controle social para o monitoramento e avaliação das políticas públicas, a partir dos princípios da igualdade, equidade e justiça social, em todos os espaços intersetoriais decisórios, nas três esferas de governo.
18. Se a comida de verdade é expressão dos tempos e de nossas vidas, ela precisa ser valorizada e aprendida nas escolas, nas unidades de saúde, nos locais de trabalho e nos demais espaços que convivemos. Esta é uma forma de proteger e promover hábitos saudáveis, abordando para além de seus aspectos biológicos, valorizando os diferentes patrimônios e práticas. A alimentação é uma expressão preciosa do autocuidado individual e coletivo.
19. O Sisan requer um financiamento estável e robusto, assim como uma governança intersetorial com papéis claramente definidos dos seus componentes em articulação com os demais sistemas setores e sistemas de políticas públicas, como Cultura Educação, Emprego e Renda, Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (Suas) e Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama).
20. A comida de verdade pauta-se pela solidariedade internacional. Por essa razão, convocamos nosso governo a enfrentar a captura corporativa dos espaços de governança global, a ampliar a cooperação Sul-Sul na agenda de segurança alimentar e nutricional e a levar em consideração esta dimensão nas negociações internacionais, incluindo aquelas referentes à agenda econômica, ao comércio internacional e às mudanças climáticas. E que fortaleça o Comitê de Segurança Alimentar Mundial das Nações Unidas, como principal espaço de governança global da área, participativo e inclusivo, nessa área.
O futuro é nosso
21. O futuro que desejamos será construído a partir do compromisso radical com a democracia, com a força das organizações e dos movimentos sociais em diálogo com o governo, debatendo políticas em suas dimensões de cidadania e soberania popular.
22. Lutamos por um país democrático, justo e solidário no qual agricultoras e agricultores familiares, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais tenham suas terras e territórios garantidos, protegidos e regularizados para uso exclusivo de seus costumes e tradições necessários ao Bem-Viver. Lutamos, ainda, para que as populações urbanas, especialmente as periféricas, tenham uma vida digna com acesso regular e permanente a alimentos adequados e saudáveis.
23. Defendemos um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) antirracista, anti-patriarcal, anti-capacitista e anti-lgbtfóbico, que coloque as pessoas e a natureza no centro e que considere a água e o alimento como bens comuns.
24. O país, que foi erguido em terras indígenas e construído por mãos negras, precisa enfrentar o racismo estrutural. É urgente a reparação histórica, jurídica e geográfica, com a devida redistribuição de terras para as reformas agrária e urbana, a demarcação de terras indígenas e a titulação de territórios de povos e comunidades tradicionais. É também urgente considerar como bens da natureza a água, a terra, a fauna e a flora para enfrentar as mudanças climáticas e garantir a vida desta e das próximas gerações.
25. Nós, participantes da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, nos comprometemos com a mobilização permanente da sociedade na defesa da
radicalização da democracia, enfrentamento à fome e à sede, para garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável.
Vamos, juntes, “virar o mundo em festa, trabalho e pão”!
Brasília, 14 de dezembro de 2023