Por Víctor García Guerrero na Radio Televisión Española | 19/03/2024
José Graziano da Silva é uma das pessoas que mais entendem de combate à fome no mundo. Ele foi o homem que Luiz Inácio Lula da Silva colocou no comando do programa Fome Zero em 2003. Dez anos depois, 55 milhões de pessoas estavam se beneficiando da ação do governo brasileiro e não passavam mais fome. Mais tarde, Graziano da Silva tornou-se diretor da FAO e hoje dirige o Instituto Fome Zero, que assessora municípios e governos na luta contra a fome.
Ele esteve na Espanha a convite do Instituto das Nações Unidas e do Le Monde Diplomatique, e proferiu uma conferência na La Casa Encendida, em Madri.
PERGUNTA: Por que ainda existe fome no mundo?
RESPOSTA: Por causa da falta de compromisso político das mais altas autoridades nacionais. A fome hoje não é um problema de falta de alimentos, como era no passado. Hoje há abundância de alimentos. Temos mais do que o suficiente: trigo, milho… todos os grãos básicos. Hoje, o problema é o acesso.
Muitas pessoas não podem comprar porque não têm emprego, porque não têm renda suficiente para pagar preços altos, especialmente por alimentos saudáveis. Se houvesse um compromisso político para priorizar a fome, isso poderia ser erradicado em menos de uma década. Essa é a experiência que o Brasil teve com o programa Fome Zero.
P: A má nutrição é mais grave do que a fome atualmente?
R: Sim, esse é o problema. A epidemia do momento é a obesidade. Ela é maior do que a fome. Há 730 milhões de pessoas famintas no mundo, de acordo com a FAO, com dados de 2022, e a Organização Mundial da Saúde acaba de divulgar um relatório que diz que há um bilhão de pessoas obesas. E a obesidade é tão ruim ou pior do que a fome. Porque uma criança obesa não só terá dificuldades ao longo de sua vida, como também, quando se tornar pai ou mãe, passará isso para seus filhos. É um dano permanente à humanidade.
É isso que estamos enfrentando. E, para isso, precisamos promover uma alimentação mais saudável. É nesse ponto que as políticas públicas são necessárias. Uma delas, importante e básica, é a alimentação escolar. As crianças vão à escola, porque o direito à educação é garantido a todos, certo? E por que não garantimos o direito à alimentação saudável a todos, dando às crianças uma refeição saudável na escola? Essa é uma política pública que precisa ser permanente em todo o mundo.
P: Uma política permanente mesmo que não haja mais fome?
R: Sem dúvida. O combate à fome não é um evento episódico, não é uma emergência. Quando se erradica a fome, é preciso manter a atenção total do Estado com políticas públicas que impeçam o retorno da fome ou da obesidade. E isso requer um tipo de intervenção permanente do Estado. Cuidar das pessoas é um dever do Estado. Garantir alimentação saudável para todos é tão fundamental quanto garantir saúde e educação.
P: Com a guerra na Ucrânia, foi dito que a fome no mundo nos países mais vulneráveis iria aumentar. Isso aconteceu?
R: A FAO estima que o impacto da guerra na Ucrânia aumentou a fome em 25 milhões de pessoas. Não é um número pequeno em termos totais, mas é um número relativamente menor em comparação com o impacto dos aumentos de preços. Isso teve um efeito mais perceptível. Atualmente, as mudanças climáticas e as guerras são os dois principais fatores que causam a fome.
P: No caso de Gaza, o uso da fome como meio de guerra está sendo denunciado. O que você acha do que está acontecendo?
R: Acho que é um retorno à barbárie. Antigamente, a Europa enfrentava a invasão dos bárbaros. Na Idade Média, as pessoas fugiam do campo, iam para os castelos e depois os bárbaros cercavam os castelos até que as pessoas morressem de fome ou se rendessem. Voltamos a esse assunto. Gaza é um castelo cercado por bárbaros. Essa é a situação em que estamos vivendo. Isso não pode ser admitido, é inaceitável. E há tratados internacionais, há regras assinadas e aceitas por todos os países, inclusive Israel, para não fazer isso. Temos que intervir. As Nações Unidas precisam encontrar uma maneira de intervir nessa situação. As projeções são de que milhares de pessoas morrerão de fome em Gaza nos próximos meses. Será a maior fome da história. Não se pode admitir isso.
P: O que você acha do envio de alimentos para Gaza por ONGs que não fazem parte da UNRWA ou do Programa Mundial de Alimentos da ONU?
R: Qualquer coisa que possa ser feita para levar alimentos e água para Gaza é bem-vinda. Não podemos olhar de onde vem, mas para quem está indo. As crianças estão morrendo, e isso não pode ser permitido. Portanto, todos que quiserem ajudar são bem-vindos. Mas não se pode pensar que se pode combater a fome com doações. A fome não é um problema de uma campanha, como se fosse Natal, para comer bem em uma noite. A fome é um problema permanente e, para lidar com um problema permanente, são necessárias instituições internacionais com mandato para isso. E a única coisa que temos, para o bem ou para o mal, são as Nações Unidas.
P: Na América Latina existe a grande contradição de ser um continente que exporta alimentos, mas onde há fome. Como isso é possível?
R: Por causa da falta de poder aquisitivo. O Brasil talvez seja o melhor exemplo que se pode dar de um país que exporta alimentos para centenas de outros países do mundo e, no entanto, tem um número de pessoas famintas que chegou a 70 milhões há dois anos. Felizmente, conseguimos reduzir esse número no primeiro ano do governo Lula. Hoje temos cerca de 20 milhões de pessoas. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas é fácil entender o porquê: os salários e o emprego aumentaram, os benefícios e as pensões cresceram e a inflação dos preços dos alimentos ficou sob controle. Com esse aumento na renda acima da inflação, há um aumento real no poder de compra. Isso explica a redução da fome no Brasil.
P: Bolsonaro disse que não havia problema de fome no Brasil e com Milei na Argentina, para continuar na região, os problemas de fome e pobreza estão aumentando. Alguns dizem que há uma guerra contra os famintos, o que você acha?
R: Bolsonaro também disse que não havia necessidade de vacinas, que você poderia dar um placebo que curava a COVID? E quase um milhão de pessoas morreram no Brasil por causa disso. O que Milei está fazendo na Argentina é um ataque à miséria. Os argentinos estão se tornando miseráveis, sem apoio público, sem emprego, e estão passando fome. A necessidade do Estado hoje é inquestionável. Alguém tem que garantir comida saudável para todos. E há uma parte da sociedade que, infelizmente, devido à distribuição desequilibrada da renda, que está concentrada em poucas mãos, não pode ter acesso a alimentos de qualidade decente. O Estado tem de proporcionar a essas pessoas o mesmo direito que proporciona ao acesso à saúde e à educação.
P: Aqui na Europa, temos visto há algum tempo filas de pessoas famintas em frente aos pontos de distribuição de alimentos em cidades como Madri, Milão e Paris. A fome também é um problema de primeiro mundo?
R: Também é um problema do primeiro mundo. Há alguns anos, a fome deixou de ser apenas um problema do terceiro mundo. Estamos vendo a fome em muitas partes do mundo e, principalmente, a má nutrição que afeta a todos, tanto nos países ricos quanto nos pobres. A má nutrição é um problema moderno que todos nós temos de enfrentar.
P: A fome já é um problema urbano?
R: Sim, de fato, a fome hoje é principalmente um problema urbano. A fome não é mais um problema rural, como era no passado, há 20 anos. Hoje em dia, a população está concentrada na cidade e é lá que está a fome mais difícil, a fome mais dura e mais difícil de combater, porque na cidade não é possível produzir seu próprio alimento, como era possível no campo.
P: A fome pode ser combatida a partir de uma perspectiva local?
R: O Brasil tem eleições municipais este ano e o que estamos insistindo com os candidatos a prefeito é que eles se comprometam a implementar políticas públicas em nível municipal. A fome começa a ser combatida em nível local, no município, na administração local, com produtos de qualidade, frescos, com distribuição assegurada. É assim que se erradica a fome.
Tradução: Blog do IFZ
Publicado na RTVE | Radio Televisión Española
https://www.rtve.es/noticias/20240319/jose-graziano-da-silva-gaza-hambre-barbarie/16023102.shtml