“A água é tudo! Se não tiver água, não tem arroz!”: entre a produção e a preservação, o caso do assentamento Sepé
Por Potira Viegas Preiss, Cap. 12 de Água e agroecologia | Embrapa, 2023
Desde os primórdios da civilização, a disponibilidade de água sempre foi um fator chave para o desenvolvimento das sociedades e o florescimento da agricultura. Mais do que um recurso, é um elemento essencial à vida em todas as suas formas. Atualmente, o impacto socioambiental do padrão de produção e consumo moderno tem levado a um contexto crescente de escassez de água, seja pelo agravamento das estiagens ou pelo elevado nível de poluição que alguns mananciais atingiram. Nesse processo, a agricultura tem uma grande responsabilidade visto que consome cerca de 70% da água doce disponível no Planeta e é, ao mesmo tempo, um dos principais veículos de contaminação por agrotóxicos ou adubos em excesso. Outro agravante é o crescimento populacional exponencial que pode atingir 9,5 bilhões de pessoas vivendo majoritariamente em cidades em 2050, um contexto que levaria a um aumento de 55% do uso de água e energia (Godfray; Charles, 2102).
Esse vínculo quase que intrínseco entre água, produção de alimentos e energia tem sido foco da agenda de pesquisa e ação de diferentes agências internacionais preocupadas em equacionar segurança alimentar e nutricional, qualidade da água, proteção da biodiversidade e resiliência climática (Blay-Palmer et al, 2018; Marsden; Farioli, 2015; FAO, 2018; FAO, 2019; Allouche, Middleton; Gyawali, 2014). Esses documentos trazem em comum o entendimento de que esta equação passa necessariamente por um processo de transição dos sistemas alimentares, de forma que possam se tornar mais sustentáveis, gerando não só alimentos de qualidade, mas também inclusão social e ações com vistas a preservar recursos essenciais e mitigar as mudanças climáticas. A Agroecologia é seguramente a referência mais qualificada neste sentido, extrapolando o campo de atuação dos movimentos sociais para a academia e sendo crescentemente fomentada através de políticas públicas em Estados mais progressistas (Carron et al, 2018; IPES-Food, 2016)
Neste processo, a construção e a gestão do conhecimento agroecológico tornam-se temas essenciais, pois são resultado dos processos de vivência e experiência dos agricultores na gestão (muitas vezes coletiva) dos bens comuns e nos caminhos encontrados para produção de alimentos aliada ao desenvolvimento sustentável. Este capítulo busca dar visibilidade à experiência e trajetória de agricultores do Assentamento Filhos de Sepé, o maior assentamento de reforma agrária no Rio Grande do Sul, que desde 1998 busca conciliar a produção de arroz agroecológico e a preservação ambiental. Em conjunto com outros assentamentos na região, integra um complexo produtivo que tem levado o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) a ser considerado o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. A trajetória do Filhos de Sepé é bastante peculiar porque as famílias foram obrigadas a se envolverem com a produção agroecológica de forma a não impactar áreas de interesse ambiental localizadas dentro de seu território, o Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos e a Barragem Águas Claras. Ambas são relevantes porque contribuem para o abastecimento de água para cidades no entorno, resguardam nascentes e abrigam espécies ameaçadas de extinção, entre os quais estão os últimos espécimes do cervo-do-pantanal no Estado. Portanto, há uso múltiplo da água (irrigação, abastecimento humano e preservação ambiental), o que implica em pressão sobre as práticas realizadas pelos agricultores, fazendo com que esta seja paralelamente um elemento essencial para o manejo agroecológico do cultivo do arroz irrigado, mas também um ponto de conflito entre atores internos e externos (em especial, órgãos de governo) ao Assentamento.
O capítulo tem como objetivo apresentar e refletir sobre a experiência vivida pelos agricultores do Assentamento Filhos de Sepé na construção dos conhecimentos necessários ao manejo e gestão da água como elemento essencial no cultivo de arroz agroecológico. Os dados apresentados foram adquiridos através de uma metodologia qualitativa, ancorada na abordagem teórico-metodológica da Perspectiva Orientada pelos Atores e se referem ao processo vivido entre as safras de 2011 a 2013. Além de uma intensa revisão de documentos e relatórios relevantes para o caso, a pesquisa envolveu coleta dos dados primários através de entrevistas semiestruturadas, observação participante de práticas de manejo, reuniões, seminários, avaliações de safra, entre outros momentos relevantes ao cotidiano das famílias. Ainda que o uso das falas tenha sido autorizado por cada um dos entrevistados, os nomes citados são fictícios de forma a proteger a identidade dos atores.
Acreditamos que a trajetória vivida por estes agricultores traz uma importante contribuição ao debate sobre a conciliação entre a produção de alimentos e a preservação de ecossistemas, repensando o manejo dos recursos naturais de formas mais socialmente inclusivas. Ao longo dos anos, as famílias assentadas foram enfrentando os desafios para construção do conhecimento agroecológico e gestão dos recursos, em especial da água através da criação de um Distrito de Irrigação gerido de forma coletiva e horizontal entre os agricultores produtores de arroz. O processo de aprendizado sobre o manejo da água também é vital para garantir a produtividade do grão sem o uso de agrotóxicos, fazendo com que a água seja usada não só para irrigação, mas também para induzir a brotação do grão e como estratégia de controle biológico para plantas indesejáveis e insetos danosos. Ainda que o engajamento das famílias na transição agroecológica tenha sido em parte uma imposição do Estado, sua permanência tem sido uma escolha que possibilita o aumento da autonomia dos agricultores e gera ampla melhoria da qualidade de vida dos envolvidos.
Além desta introdução, o capítulo é composto por cinco sessões. Primeiramente, apresentamos uma breve revisão de algumas das perspectivas que nos auxiliam na análise dos dados, tendo a Agroecologia como referência principal, porém complementada por abordagens que tratam dos processos de gestão de recursos e da agricultura familiar. Na sequência, relatamos a história de formação do Assentamento e os principais acontecimentos que interferem nas práticas mobilizadas pelas famílias para a gestão dos recursos e a produção agrícola. Duas seções são dedicadas a discutir o processo de gestão da água, sendo a primeira centrada nos processos de manejo para a produção do arroz irrigado e a segunda focada em refletir na interação entre as famílias e o Estado. Por fim, traçamos as considerações finais do capítulo.
A introdução aqui apresentada se refere ao Capítulo 12 – “A água é tudo! Se não tiver água, não tem arroz!” Entre a produção e a preservação – o caso do Assentamento Filhos de Sepé/RS de autoria de Potira Preiss, publicado no livro Água e agroecologia, organizado por Roseli Freire de Melo, Irene Maria Cardosos, Paola Hernandez Cortez Lima, Helder Ribeiro Freitas | Embrapa, 2023 – Brasília/DF.
Baixe aqui o livro completo “Transição Agroecologica vol7: Água e Agroecologia“