Por Flávio Campestrin Bettarello – Instituto Rio Branco | Janeiro de 2022
O Brasil é uma potência agroambiental consolidada, contribuindo simultaneamente para a segurança alimentar e a sustentabilidade globais. A importância do comércio agroalimentar para o país é impressionante. Em 2021, registrou US$ 120,59 bilhões em exportações, o que representou 43% das vendas externas brasileiras no período. O saldo da balança do agronegócio mais que compensou o déficit dos demais setores, sendo responsável pelo superávit global de US$ 61,22 bilhões.
A magnitude desse desempenho suscita reações contraditórias da comunidade internacional. A oferta em grande escala de alimentos a preços acessíveis beneficia os consumidores finais, mas cria desequilíbrios na balança comercial e na dinâmica de produção alimentar de muitos países. O modo de reagir a esses desequilíbrios varia, sendo o protecionismo disfarçado de preocupações sanitárias o mais cínico e nefasto, pois mascara, sob argumentos éticos e pseudocientíficos, interesses populistas ou exclusivamente econômicos.
Não se devem minimizar os elevados custos sociais para segmentos específicos, como os pequenos produtores rurais, nem as dificuldades de adequação de países com limitados recursos ambientais, tecnológicos, territoriais ou financeiros para o desenvolvimento de uma produção agropecuária competitiva. Contudo, a discricionariedade com que reguladores domésticos estabelecem seus próprios níveis de proteção e procedimentos de determinação de risco torna-os suscetíveis a pressões político-econômicas que transcendem as evidências e métodos científicos disponíveis. Assim, por exemplo, sob influência de interesses restritos de agricultores domésticos, do lobby ambientalista e das opiniões leigas dos consumidores em geral, objetivos legítimos (como minimizar os riscos no consumo) são manipulados para resguardar mercados internos da concorrência internacional.
A disparidade com que autoridades competentes de cada país ou bloco tratam a normatização de padrões análogos (heterogeneidade regulatória) distorce e limita o comércio agroalimentar. Apesar de esforços para convergência e harmonização e de disciplinas multilaterais que buscam assegurar o comércio livre e justo, exigências relativas à segurança do alimento (sanidade/inocuidade) seguem baseadas em procedimentos próprios, muitas vezes contrários ao consenso científico internacional.
Para além das nuances naturais entre diferentes perspectivas, observa-se uma nítida clivagem entre os grandes países exportadores e aqueles largamente influenciados pela União Europeia (UE), usualmente importadores líquidos. O bloco europeu busca multilateralizar suas práticas restritivas de produção, de forma a apaziguar seus consumidores (e eleitores) ao mesmo tempo em que assegura a competitividade de sua agricultura. Dado o tamanho de seu mercado, a influência de suas empresas e a projeção de sua “diplomacia verde”, acaba se tornando referência para outras nações sob sua órbita de influência.
O grupo agroexportador advoga em favor de regulações que, a um só tempo, resguardem a saúde humana, animal e vegetal, assim como minimizem os impactos negativos sobre o comércio, de modo a garantir a inocuidade dos alimentos e a segurança alimentar de grandes parcelas da população global. Em suma, proteção sem protecionismo. Os europeus e seus seguidores inclinam-se à abordagem maximalista de eliminação de quaisquer riscos, mesmo que resulte em exigências excessivamente rigorosas. Há um viés protecionista oculto no que se considera risco (frequentemente exagerado e sem comprovação) e no rigor que, por ser excessivo, nivela artificialmente os sistemas produtivos ao desconsiderar suas especificidades nacionais.
Nesse contexto, insere-se a importante questão dos Limites Máximos de Resíduos (LMR): os níveis mais altos de traços de pesticidas permitidos em alimentos ou ração animal, em decorrência da aplicação em uma cultura agrícola, ou a concentração máxima aceita de resíduos de drogas veterinárias detectadas em produtos de origem animal.
Os LMR são objeto de discussão há muitos anos, mas com resultados aquém do desejável. Estão sujeitos a complexa rede regulatória, pública (organismos internacionais – OI, autoridades nacionais e comunitárias) e privada (certificadores, grupos varejistas), e também à debate em inúmeros foros políticos. Os LMR constituem um importante dispositivo para o aprimoramento do agronegócio (contribuindo para o cumprimento de boas práticas agrícolas e a segurança do alimento), mas poderão se transformar, caso sejam difundidos limites arbitrários, excessivamente restritivos e discriminatórios, na principal barreira ao comércio mundial de alimentos, em um futuro relativamente próximo. Reduzir LMR abaixo dos valores de referência internacional, sem quaisquer justificativas científicas, não assegura proteção adicional à saúde pública, mas o tema, de aparência estritamente técnica, reveste-se de crescente complexidade política.
Os principais produtos da pauta exportadora brasileira encontram-se vulneráveis à heterogeneidade dos LMR: complexo soja (US$ 48,01 bilhões exportados em 2021), carnes (US$ 19,86 bi), café verde (US$ 4,97 bi) e milho (US$ 4,14 bi). As chamadas minor crops, como citricultura (US$ 1,62 bi apenas em suco de laranja) e fruticultura (US$ 1,21 bi), igualmente enfrentam desafios associados.
Outras nações além do Brasil, que exportam para múltiplos destinos, encontrarão dificuldades adicionais para acessar mercados, enfrentando alto custo de conformidade, falta de transparência e imposição de modelos one-size-fits-all. Tal fardo será absorvido desigualmente, prejudicando países em desenvolvimento, pequenos agricultores e sistemas agrícolas tropicais – que, devido às suas características edafoclimáticas, sofrem alta pressão de pragas e patógenos. Aqueles países que desejarem navegar de forma eficaz e, idealmente, influenciar nos regimes de LMR, deverão desenvolver estratégias e meios de implementação sofisticados, em várias frentes e de maneira integrada às agendas agroalimentares e de sustentabilidade globais.
Nesse cenário, as negociações diplomáticas são fundamentais, e ao Brasil cabe não apenas manter-se no cerne das discussões relacionadas aos sistemas agroalimentares e à dinâmica de seu comércio internacional, mas assumir um papel de liderança. O país conta com condições técnicas e diplomáticas para tanto, com potencial para alcançar resultados comerciais, econômicos, éticos e sociais positivos. O engajamento brasileiro ocorre em diversos níveis – bilateral, regional, multilateral – e em inúmeros fóruns. Além disso, o país já dispõe de uma política externa para LMR, que consiste, no campo ofensivo, em ações coordenadas sobretudo entre o Itamaraty e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). O setor privado, a academia e a sociedade civil nacional têm demonstrado interesse crescente no tema, e podem atuar de forma complementar às ações governamentais, particularmente em um cenário global de crescente complexidade e que cada vez mais conta com a participação de agentes não estatais.
A presente tese conta com três objetivos principais, dois de natureza mais descritiva e um de esforço prescritivo: (i) analisar as bases conceituais e empíricas, os regimes internacionais e domésticos de LMR e como se relacionam, inclusive frente às novas tendências para o comércio agroalimentar, (ii) tabular algumas das iniciativas da política externa brasileira (PEB) para LMR, analisando as lições aprendidas e (iii), partindo dos elementos anteriormente levantados, estruturar algumas recomendações para futuras ações da diplomacia brasileira, fortalecendo a atuação do país e seu papel de liderança em LMR. As dimensões descritivas e prescritivas do trabalho não são estanques e compartimentalizadas: ao longo de todo o texto, haverá uma abordagem crítica e opinativa, que buscará elaborar propostas conforme as teorias e fenômenos forem estudados.
Adicionalmente, cumpre destacar que os LMR possuem interface com diversas outras questões importantes para o Brasil, como avaliação de risco e princípio da precaução, preocupações não comerciais, barreiras não tarifárias, sustentabilidade ambiental, segurança alimentar e diplomacia pública. Esses pontos serão abordados na medida em que se relacionam com o tema central, oferecendo a oportunidade de tratá-los sob recorte metodológico específico. Quanto ao referencial teórico, serão apresentadas principalmente as literaturas de governança global, racionalidade limitada, tomada de decisão e modelos gravitacionais.
A tese está concebida em cinco capítulos. O inicial introduz o enfoque de governança global que trata do complexo de regimes – a rede de instituições parcialmente sobrepostas e não hierárquicas que governam área temática específica. Como mencionado, os LMR estão sujeitos a um emaranhado regulatório e à discussão em inúmeros fóruns, técnicos e políticos. Mostra-se fundamental mapear os atores afetos à questão, como OI, agrupamentos internacionais, reguladores domésticos, certificadores privados e outros stakeholders. A complexidade da governança internacional traz condicionantes à tomada de decisão e à ação político-diplomática. Observa-se, por exemplo, a prática de forum shopping, pela qual os atores escolhem o espaço onde melhor podem promover suas preferências, a fim de aumentar suas chances de lograr decisões favoráveis. Há, ainda, a construção de narrativas com base em recortes parciais de um problema complexo, segundo os interesses dos grupos que desejam propagá-las.
O Capítulo I da tese explora as bases conceituais dos Limites Máximos de Resíduos (LMR), começando com uma análise do contexto multilateral, destacando os dispositivos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e o papel do Codex Alimentarius. Em seguida, são examinados os condicionantes técnicos e políticos no âmbito doméstico, incluindo o dilema do regulador e o precaucionismo. Por fim, são apresentadas as abordagens dos principais atores, como o Brasil, a União Europeia e a China, em relação aos LMR.
O Capítulo II aborda os custos decorrentes da heterogeneidade dos Limites Máximos de Resíduos (LMR), destacando como esses custos são desigualmente absorvidos por diferentes atores, como exportadores para múltiplos destinos, países em desenvolvimento, agricultura familiar e sistemas agrícolas tropicais. São detalhados os diversos aspectos desses custos, incluindo conformidade, transparência e danos reputacionais, com estudos empíricos que quantificam seus impactos no comércio, renda e preços dos alimentos. Além disso, é discutido como LMR mais restritivos limitam o uso de tecnologias essenciais para a produtividade agrícola, acesso democrático aos alimentos e adaptação à mudança climática. O capítulo também explora a ideia de barreiras não tarifárias, evidenciando sua natureza discriminatória e seu potencial para o protecionismo agrícola. São apresentados impactos específicos para o Brasil, cujo sistema de produção é predominantemente tropical, e discute-se como políticas internacionais podem exacerbá-los ao impor soluções uniformes inadequadas. Por fim, são refinadas as questões de LMR aplicadas a duas categorias de culturas relevantes para o país: os grandes cultivos exportadores, como grãos, e as minor crops, fundamentais para a diversificação e descentralização da produção.
O Capítulo III aborda as questões socioambientais como potenciais obstáculos ao comércio internacional legítimo, destacando a dificuldade em evitar a instrumentalização de regulações socioambientais por interesses protecionistas. Duas principais tendências emergentes para o comércio agroalimentar são discutidas: a regulação privada e a busca pela multilateralização de padrões, principalmente europeus, em uma chamada “transição global”. No que diz respeito à regulação privada, são examinados os fatores que levam os varejistas a exigir produtos com níveis de resíduos mais baixos do que os tolerados pelas normas governamentais. Quanto à “transição global”, é analisada a tentativa da Europa de impor suas rigorosas regulações a nível mundial, com destaque para estratégias como biodiversidade, resistência antimicrobiana e a Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas (UNFSS). O capítulo também discute questões de representatividade e conflito de agência nos secretariados de organizações internacionais, evidenciando a influência da União Europeia nesses fóruns.
O Capítulo IV reconhece a complexidade da política externa brasileira (PEB) para Limites Máximos de Resíduos (LMR), abordando seus elementos técnicos, políticos e diplomáticos. Destaca-se a coordenação entre o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) como fundamental para uma abordagem coesa e eficaz. Lições aprendidas são apresentadas, destacando a importância da cooperação bilateral, regional e multilateral. Exemplos incluem negociações com a Rússia sobre o glifosato na soja, o Grupo de Trabalho de Alto Nível com os EUA e a atuação do Ag5 nas Américas. Nas esferas multilaterais, são abordadas intervenções no Codex Alimentarius e no Comitê SPS da OMC.
O Capítulo V apresenta recomendações adicionais à diplomacia brasileira sobre Limites Máximos de Resíduos (LMR). Propõe melhorias na coordenação interna liderada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) e na uniformização das visões em diferentes fóruns. As recomendações se concentram em dois eixos principais: (i) atuação internacional ampla e assertiva, visando a liderança na definição de regras e (ii) promoção de sistemas produtivos alternativos para mitigar os riscos da heterogeneidade de LMR. No primeiro eixo, sugere-se avanços na harmonização regulatória, cooperação internacional, engajamento com stakeholders e atuação em agrupamentos internacionais relevantes. No segundo eixo, são propostas iniciativas como o uso de sistemas de produção paralelos, certificação de produtos orgânicos e incentivo ao emprego de bioinsumos, com uma avaliação transparente dos custos e benefícios associados.
A conclusão destaca a necessidade de aprimoramento da atuação brasileira em Limites Máximos de Resíduos (LMR) por meio de dois movimentos principais: coordenação doméstica e recrutamento de apoio internacional. A sinergia entre os ministérios brasileiros pode ser aproveitada para capacitar mais agentes a defender a posição do país em relação aos LMR, envolvendo não apenas autoridades públicas, mas também o setor privado, a academia e a sociedade civil. É ressaltada a importância de uma coordenação doméstica ampla e de projeção internacional, envolvendo contatos diretos entre os elos da cadeia agroalimentar e a participação em foros internacionais. Além disso, são enfatizadas iniciativas de soft power, como esforços de cooperação internacional e engajamento em diferentes plataformas, para expandir a influência brasileira no debate sobre LMR. A comunicação adequada, abordando a regulação privada e a percepção dos consumidores, é vista como essencial, com a promoção de informações sobre controles, sistemas de produção alternativos e certificações baseadas em critérios científicos para mitigar os efeitos negativos junto ao público em geral.
Tese apresentada pelo Conselheiro Flávio Campestrin Bettarello no LXVII Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco / Ministério das Relações Exteriores