Marina Bolfarine Caixeta, Kaio Rodrigues e André Luzzi de Campos no LatinoAmerica21 | 18/01/2024
Em um contexto de alta concentração de renda e riqueza no setor privado que provoca um grande risco para os interesses públicos, a cooperação internacional com e entre as organizações da sociedade civil torna-se cada vez mais relevante. De acordo com o World Inequality Report de 2022, as ‘nações estão ficando mais ricas, mas os governos mais pobres’. O aumento da pobreza também é associado ao aumento da fome e aquecimento global, sendo que o 1% mais rico do mundo emite a mesma quantidade de poluição que 5 bilhões de pessoas, conforme apurado pela Oxfam.
Essa ‘sindemia’ que caracteriza a atual governança de segurança alimentar e nutricional requer respostas coletivas para as questões de saúde (desnutrição, obesidade e deficiência de nutrientes), mudanças climáticas e concentração de renda e riqueza. Além disso, o direito humano à alimentação adequada se encontra muito ameaçado e violado, indo na direção oposta à produção de alimentos.
As grandes corporações privadas encaram a alimentação como um negócio. Ainda que nocivo, o setor privado persegue a venda de produtos ultraprocessados e, para tanto, participa e influencia os espaços multilaterais ligados a essa agenda, como a Cúpula dos Sistemas Alimentares celebrada em setembro de 2021.
Essa lógica se insere também na crise do sistema multilateral e dos Estados. Com a crescente crise de liquidez do Sistema ONU, principalmente por falta de contribuições dos Estados, o setor privado se coloca como “parceiro” na mesa de negociações e fonte de recursos para a execução dos projetos, a despeito dos graves conflitos de interesse.
A Cooperação Sul-Sul, nesse sentido, pode ser um mecanismo estratégico para defender a alimentação saudável e sustentável como um direito humano e um bem público. Nesse sentido, é importante reconhecer que, na região da América Latina e do Caribe, a Cooperação Sul-Sul tem sido uma forma de articulação entre distintos movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Com grande dinamismo na participação de blocos de países desde o início do século XXI – as cúpulas sociais. Com relação à agenda de Segurança Alimentar e Nutricional, mais particularmente, a esta cooperação se expressa no Mecanismo da Sociedade Civil e Povos Indígenas (MSCPI) que congrega vários atores sociais para ação coletiva junto ao Comitê de Segurança Alimentar da ONU (CSA).
As organizações da sociedade civil na Cooperação Sul-Sul
Na prática, a cooperação internacional ocorre tanto entre povos, países e organizações intergovernamentais quanto entre sociedades (e nações). Isso implica reconhecer que a Cooperação Sul-Sul serve também para articular resistências entre as organizações da sociedade civil no Sul global.
Quanto à experiência brasileira de Segurança Alimentar e Nutricional podemos citar a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em 2023 como instância consultiva apoiando o governo executivo federal na elaboração de marcos de ação (Políticas e Planos Nacionais) e implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
A sociedade civil nas iniciativas de Cooperação Sul-Sul tem sido muito impulsionada por governos progressistas da região, em momentos de recuos, ela se torna uma garantia de que as lutas e iniciativas de promoção de Segurança Alimentar e Nutricional continuem ativas. Da ‘onda rosa’ até o boom das commodities, houve um crescente envolvimento da sociedade civil nas políticas governamentais. Após esse período, muitas articulações e projetos de cooperação continuaram sendo feitos mesmo sem a participação dos países.
Há, contudo, um permanente desafio e reivindicação em torno da garantia de espaços formais com dotações orçamentárias para a participação social efetiva em discussões multilaterais protagonizadas por Estados.
A governança regional de segurança alimentar e nutricional
Considerada uma região constituída por países que se dedicaram à exportação agropecuária – o ‘celeiro’ do mundo –, a agenda de Segurança Alimentar e Nutricional é prioritária para os povos e governos. Especialmente porque a região também se caracteriza pela alta concentração de terras, por solos férteis para produção de alimentos e pela presença de minerais. Então, saímos da condição de ‘colônias de exploração’ intensiva na mão-de-obra escrava para um extrativismo ambiental e mineral sem precedentes no mundo.
Nas relações internacionais, o uso da palavra governança surge no contexto de estímulo ao neoliberalismo. Um Estado mínimo operaria por meio da terceirização de serviços e bens públicos com apoio do setor privado e de organizações não-governamentais. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), assim, passaram a estimular a ideia de um plano de ação multisetorial, multinível (do local ao global) e multiatores, que incluem as parcerias público-privadas. Indo além das estratégias regionais pensadas para o comércio global e regional, os países latino-americanos e caribenhos se deparam com a necessidade de defender a agricultura familiar e sua soberania alimentar.
Contra as degradações ambientais provocadas pelo agronegócio, o desmatamento e a invasão e titulação de terras de povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais, coloca-se em pauta a necessidade de políticas e estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional já que são uma garantia para o direito humano à alimentação adequada, a biodiversidade e as unidades de conservação. Ademais, a crescente produção para o mercado externo com a exportação de commodities diminui a área produtiva de alimentos baseados nas distintas culturas alimentares nos países. Isso, somado, à “commodificação” de alimentos básicos das dietas resulta em surtos de inflação e consequente aumento da insegurança alimentar. Assim, é preciso também incidir na agenda comercial, e em estratégias de abastecimento alimentar.
A atuação em rede das organizações da sociedade civil, torna-se cada vez mais importante diante do aumento de poder do setor privado. A Cooperação Sul-Sul se faz mais importante para não deixar que retrocessos em várias agendas globais de interesse público, especialmente para combater a fome, a pobreza, a destruição ambiental e à saúde humana, juntamente à diversidade cultural e biodiversidade é premente. No Brasil, o CONSEA tem buscado se inserir e contribuir para a efetiva participação social nas iniciativas de cooperação internacional. Em dezembro de 2023, ele organizou um encontro com líderes de governos e sociedades, antes da VI Conferência Nacional de SAN, para discutir a governança democrática da segurança alimentar e nutricional para a realização do direito humano à alimentação adequada. Nesta ocasião, enfatizou-se a importância da criação e fortalecimento de espaços de participação social em segurança alimentar e nutricional, não perdendo de vista a participação de grupos da população mais vulnerável à fome, insegurança alimentar e pobreza, tanto na América Latina e Caribe quanto na África.
MARINA BOLFARINE CAIXETA | Investigadora, profesora y becaria postdoctoral CAPES en la Universidad Federal de Goiás (UFG), activista y profesional de la cooperación internacional Sur-Sur en el Centro de Estudios y Articulación de la Cooperación Sur-Sur (ASUL), actualmente es consejera suplente del CONSEA.
KAIO RODRIGUES | Graduado y máster en Relaciones Internacionales. Participa activamente en redes de la sociedad civil en el ámbito de la Seguridad Alimentaria y Nutricional y la Justicia Ambiental desde 2017. Actualmente es secretario ejecutivo del Foro Brasileño por la Soberanía y la Seguridad Alimentaria y Nutricional (FBSSAN).
ANDRÉ LUZZI DE CAMPOS | Activista alimentario. Doctor en Ciencias por la Facultad de Salud Pública de la USP. Miembro del Grupo de Investigación DEMSA (UFU). Miembro del Mecanismo de la Sociedad Civil y los Pueblos Indígenas (MSCPI) para las relaciones con el Comité de Seguridad Alimentaria de la ONU.
Publicado no LatinoAmerica21
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