Por José Graziano da Silva e Maria Helena Semedo
Nenhuma solução climática duradoura será possível sem transformar os sistemas alimentares — e, no coração desses sistemas, está a agricultura familiar. Ela produz uma parte importante dos alimentos do mundo — em especial das frutas, verduras e legumes, que são os mais nutritivos —, sustenta economias locais, preserva a biodiversidade, além de manter viva a cultura alimentar dos povos. Mas é também a agricultura familiar a que mais sofre com a crise climática. Enchentes, secas e ondas de calor atingem antes e com mais força os agricultores familiares, que, na maioria das vezes, estão localizados em áreas de solos menos férteis, têm pouco acesso a crédito, seguros, tecnologia e infraestrutura de transporte e armazenagem.
A Declaração de Belém sobre Fome, Pobreza e Ação Climática Centrada nas Pessoas, adotada na abertura da COP30, recoloca a agricultura familiar no centro das soluções globais. Ela reconhece a necessidade de fortalecer políticas de apoio aos pequenos produtores como agentes de resiliência e transformação, ampliar o acesso a financiamento climático, proteção social e tecnologias adaptativas. O texto consagra a importância de promover sistemas agrícolas sustentáveis e resilientes ao clima, por meio de planos e estratégias nacionais, estimulando a cooperação entre atores e integrando questões socioeconômicas às ações de mitigação e adaptação. Reforça ainda que é essencial adotar abordagens sistêmicas e integradas para tratar da segurança alimentar e nutricional, identificando sinergias e reduzindo compromissos entre adaptação e mitigação, com soluções adaptadas a cada contexto nacional e social.
Embora celebrada como inédita, essa abordagem é resultado de um longo caminho que começou há anos. Desde Paris (COP21, 2015), a agricultura foi incorporada como parte da solução climática. O Acordo de Paris reconheceu que “garantir a segurança alimentar e acabar com a fome” é prioridade fundamental e que os sistemas de produção de alimentos são particularmente vulneráveis aos impactos da mudança do clima. Foi um ponto de inflexão: pela primeira vez, a agricultura deixou de ser considerada apenas como fonte de emissões e passou a ser tratada também como parceira indispensável para reduzir gases de efeito estufa e promover adaptação, dada a sua capacidade única, entre os setores produtivos, de reabsorver, via fotossíntese, uma grande parte do CO₂ que emite.
Esse reconhecimento amadureceu sob a Presidência de Fiji (COP23, em Bonn, 2017), com a criação do Trabalho Conjunto de Koronivia sobre Agricultura (Koronivia Joint Work on Agriculture – KJWA), um marco decisivo que reuniu, pela primeira vez, os dois órgãos subsidiários da Convenção do Clima (SBI e SBSTA) em torno de uma agenda agrícola integrada. O KJWA definiu seis áreas interligadas: saúde do solo, uso de nutrientes, manejo da água, sistemas pecuários, métodos de adaptação e dimensões socioeconômicas e de segurança alimentar. Foi o primeiro passo para construir uma visão unificada, científica e participativa sobre o papel da agricultura na ação climática.
O KJWA também enfatizou que os agricultores familiares e povos indígenas são guardiões de práticas agrícolas sustentáveis e aliados estratégicos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente o ODS 2 – Fome Zero. A FAO sempre defendeu que investir nesses produtores é a forma mais eficaz de reduzir a pobreza rural e aumentar a resiliência às mudanças climáticas. Programas de proteção social — transferências de renda, alimentação escolar, compras públicas — funcionam como colchões de segurança que permitem aos pequenos agricultores permanecer na terra, investir, diversificar e inovar, sem cair na pobreza a cada nova crise.
Com o término do mandato da Koronivia em 2022, o Sharm el-Sheikh Joint Work on Agriculture and Food Security (SJWA), adotado na COP27, assumiu a missão de transformar conhecimento em ação, convertendo as recomendações anteriores em resultados concretos. O novo trabalho conjunto aprofunda o enfoque de implementação, com ênfase em políticas nacionais e planos integrados, troca de informações e cooperação entre governos, sociedade civil, setor privado e organizações internacionais. Ele reafirma o papel central dos agricultores familiares, comunidades locais, mulheres e jovens como agentes de mudança, destacando a importância de que cada país defina suas próprias estratégias, sem soluções padronizadas.
O documento de base do SJWA (Decisão 3/CP.27) e o roteiro aprovado em Bonn em 2024 reforçam exatamente os mesmos princípios que emergem agora em Belém: abordagem sistêmica, coerência entre mitigação e adaptação, fortalecimento da pesquisa e do conhecimento tradicional, transparência sobre o progresso e mobilização de financiamento adequado. Em essência, a COP30 em Belém não inaugura uma nova agenda; ela consolida uma evolução contínua que vem de Paris, Koronivia e Sharm el-Sheikh, agora com mais clareza política e compromisso financeiro.
Ao valorizar a agricultura familiar, a Declaração de Belém traduz em compromissos concretos o que o KJWA já havia afirmado desde 2017: os sistemas agroalimentares são o elo entre o clima, a biodiversidade, a água e o bem-estar humano. Eles concentram tanto as vulnerabilidades e riscos quanto as soluções. Mitigar os impactos climáticos sobre a agricultura e redesenhar sistemas alimentares dentro dos limites planetários é essencial para garantir segurança alimentar de longo prazo e cumprir o ODS 2 — Fome Zero — sem ultrapassar o limite de 1,5 °C de aquecimento global.
As evidências acumuladas ao longo dos trabalhos do Koronivia e do Sharm el-Sheikh Joint Work on Agriculture mostram que a agricultura familiar e a agroecologia caminharam juntas na história recente das COPs, mostrando-se o caminho mais promissor para alinhar mitigação, adaptação e resiliência nos sistemas agrícolas. Com base em princípios como diversidade, reciclagem de nutrientes, eficiência energética, cocriação de conhecimento e economia solidária, práticas agroecológicas — como integração lavoura-pecuária-floresta, manejo de solos e água, sistemas agropastoris e restauração de paisagens — têm mostrado ser capazes de aumentar a fertilidade dos solos, capturar carbono, reduzir emissões e fortalecer a segurança alimentar e nutricional.
Além disso, por sua natureza participativa, a agroecologia coloca os agricultores no centro da inovação, valorizando o conhecimento local e a experimentação contínua. Essa abordagem não apenas melhora a produtividade e a renda rural, mas também amplia a autonomia das comunidades e das mulheres agricultoras, tornando a transição agroecológica um componente essencial de qualquer estratégia de ação climática centrada nas pessoas.
O desafio agora é transformar essas declarações em resultados tangíveis de práticas locais. Isso requer financiamento em escala — com acesso justo e direto para agricultores familiares —, cooperação técnica e tecnológica, e políticas públicas que recompensem quem produz de forma sustentável. As experiências já mostram um caminho a seguir: integração lavoura-pecuária-floresta, manejo de solos e nutrientes, agroecologia, restauração de paisagens e cadeias curtas de comercialização. São práticas que capturam carbono, reduzem emissões e aumentam renda e produtividade local.
A agricultura familiar representa, ao mesmo tempo, o elo mais vulnerável e o mais promissor da ação climática. Fortalecê-la é proteger o presente e semear o futuro. Belém nos lembra que os compromissos climáticos só terão legitimidade se forem também compromissos com as pessoas — especialmente com quem alimenta o mundo.
José Graziano da Silva e Maria Helena Semedo são membros do Instituto Fome Zero
