As reformas agrárias na América Latina:  legado histórico e desafios contemporâneos 

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Blog do IFZ | 05/06/2025

Baixe aqui o artigo “La tierra y las reformas agrarias en América Latina una mirada al pasado y perspectivas

A América Latina carrega consigo uma história agrária marcada por profundas contradições. Desde os tempos coloniais, quando a terra foi concentrada nas mãos de uma elite por meio das sesmarias e encomiendas, até os dias atuais — em que a estrangeirização e a financeirização do solo rural desafiam a soberania dos Estados nacionais —, a questão fundiária permanece como um tema central para o desenvolvimento da região. É nesse contexto que o estudo “La tierra y las reformas agrarias en América Latina: una mirada al pasado y perspectivas”, de autoria do sociólogo Sergio Gómez, Professor Associado da FLACSO-Chile y ex-consultor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), oferece uma visão global para a compreensão das transformações agrárias no subcontinente. 

O trabalho, originalmente apresentado em 2008 e revisado em 2014, oferece uma análise minuciosa das reformas agrárias implementadas ao longo do século XX, destacando seus avanços, limitações e o atual cenário de concentração de terras. Gómez, que além de pesquisador foi ator em processos reformistas no Chile, conjuga o rigor acadêmico com uma perspectiva crítica, evitando simplificações e reconhecendo a complexidade de um tema que permanece tão atual quanto polêmico. 

As raízes da desigualdade do período colonial ao século XX 

Para compreender as reformas agrárias latino-americanas, é preciso retroceder ao período colonial, quando a estrutura fundiária foi moldada pela dominação espanhola e portuguesa. A distribuição desigual de terras, consolidada no sistema de haciendas e plantations, engendrou uma sociedade rural estratificada, na qual uma minoria detinha o controle sobre vastas extensões territoriais, enquanto a maioria da população — incluindo indígenas e camponeses — vivia em condições de subsistência ou servidão. Esse modelo, conhecido como latifúndio-minifúndio, perpetuou-se mesmo após as independências do século XIX, mantendo intactas as estruturas de poder no campo. 

Foi apenas no século XX, diante do agravamento das tensões sociais e da crescente pressão por modernização, que as reformas agrárias emergiram como resposta política à desigualdade. Gómez destaca que, embora cada país tenha seguido caminhos distintos, três experiências se sobressaem como paradigmáticas: México, Bolívia e Cuba.

As reformas agrárias na América Latina entre revoluções contradições e a influência da Guerra Fria 

O século XX testemunhou, na América Latina, uma série de transformações agrárias profundas, marcadas tanto por avanços significativos quanto por paradoxos persistentes. No México, a Revolução de 1910, impulsionada pelo emblemático lema zapatista “La tierra para el que la trabaja”, inaugurou um processo de redistribuição fundiária que se estendeu por décadas, com a criação dos ejidos — terras coletivas inalienáveis que beneficiaram milhões de camponeses. No entanto, como aponta o estudo de Gómez, a reforma mexicana, apesar de seu caráter massivo (mais de 100 milhões de hectares redistribuídos), não logrou superar a marginalização econômica do campesinato. Enquanto o setor ejidal permaneceu estagnado, a agricultura moderna floresceu em propriedades privadas, revelando as contradições de um modelo que priorizou a justiça social sem assegurar a eficiência produtiva. 

Os Revolucionários (Mural de David Alfaro Siqueiros)
Os Revolucionários (Mural de David Alfaro Siqueiros)

Na Bolívia, a Revolução Nacional de 1952 promoveu uma das reformas mais radicais do continente, abolindo o latifúndio e as relações servis no altiplano, mas as regiões reformadas continuaram marcadas pela pobreza, enquanto o desenvolvimento agrícola se concentrou em Santa Cruz, área pouco afetada pela redistribuição. Esse paradoxo ilustra um dos dilemas centrais das reformas agrárias: a desconexão entre o acesso à terra e o desenvolvimento rural sustentável. 

Revolução Boliviana 1953 [Cena do filme “Nossa Voz de Terra – Memória e Futuro”]
Revolução Boliviana, 1953

Cuba, por sua vez, com a reforma de 1959, seguida por uma segunda lei em 1963, nacionalizou as grandes propriedades e estabeleceu o controle estatal sobre 84% das terras cultiváveis, tornando-se um símbolo continental que inspirou movimentos camponeses e, ao mesmo tempo, justificou a Aliança para o Progresso — iniciativa dos Estados Unidos que condicionava a ajuda econômica à implementação de reformas moderadas em outros países da região. 

Reforma Agrária (Cuba, 1959)
Reforma Agrária (Cuba, 1959)

A partir dos anos 1960, sob a influência da Guerra Fria e do temor de revoluções socialistas, diversos governos latino-americanos adotaram leis agrárias, muitas vezes como mera formalidade para acessar recursos internacionais. Contudo, em países como Chile e Peru, as reformas ganharam maior profundidade e significado.

No Chile, primeiro o governo de Frei Montalva (1964-1970) e depois o governo de Salvador Allende (1970–1973) promoveram uma massiva redistribuição de terras antes que o golpe militar revertesse brutalmente o processo.

No Peru, o regime militar de Velasco Alvarado (1968–1975) promoveu uma reforma singular, substituindo latifúndios por cooperativas que, anos depois, se fragmentariam em pequenas propriedades familiares, demonstrando tanto o potencial quanto as limitações das experiências coletivistas.

Esses casos revelam como as reformas agrárias na América Latina foram moldadas não apenas por demandas internas, mas também por pressões geopolíticas e contradições estruturais que, em muitos aspectos, permanecem irresolutas até os dias atuais. 

O cenário contemporâneo com concentração estrangeirização e novos atores 

Se as reformas do século XX buscaram combater o latifúndio tradicional, o estudo alerta para um fenômeno novo e igualmente inquietante: a concentração e a estrangeirização de terras, impulsionadas por investidores estrangeiros, fundos de capital e conglomerados agroindustriais. Dados da FAO, citados por Gómez, revelam que, em países como Brasil e Argentina, propriedades médias superam os 15 mil hectares, muitas vezes destinadas à produção de commodities para exportação, em detrimento da segurança alimentar local.

Manifestação do MST pela Reforma Agrária diante do Congresso Nacional do Brasil
Manifestação do MST pela Reforma Agrária diante do Congresso Nacional do Brasil, 2025

Diante desse cenário, o estudo ressalta a importância das Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Terra (2012), um marco internacional que propõe diretrizes para garantir o acesso equitativo aos recursos naturais, sem recorrer a modelos impositivos. Gómez argumenta que, diferentemente das reformas do passado — frequentemente concebidas como “construções sociais” vinculadas a contextos históricos específicos —, o desafio atual exige mecanismos flexíveis, capazes de conciliar desenvolvimento econômico, justiça social e sustentabilidade ambiental.

Reforma Agrária: uma questão pendente

A reforma agrária é entendida, de forma geral, como um conjunto de políticas, medidas e mudanças legislativas — realizadas com diferentes níveis de participação e mobilização dos próprios beneficiários — que visam modificar a estrutura de propriedade e posse da terra em um país ou região. Seu principal objetivo é redistribuir a terra de forma mais equitativa, promovendo o acesso de camponeses e pequenos agricultores à terra arável, aumentando a produção agrícola e reduzindo as desigualdades sociais.

Historicamente, as reformas agrárias foram promovidas e realizadas ao longo do século XX.
Diante desse cenário, há quem acredite que o processo já foi concluído, na medida em que o latifúndio, como estrutura predominante, teria sido superado.

Outros, por outro lado, argumentam que se trata de uma questão ainda pendente, pois os objetivos da reforma agrária não foram plenamente alcançados, como a superação da pobreza rural. Além disso, surgiram novos desafios, especialmente aqueles decorrentes da “grilagem de terras”.

O atual processo de concentração fundiária está em um nível muito mais elevado do que antes da implementação das políticas de reforma agrária.

Além disso, a nova agricultura, moderna e competitiva, que se observa atualmente, enfrenta problemas urgentes que precisam ser enfrentados, como a implementação de políticas que garantam a sustentabilidade e a inclusão da agricultura de pequena escala.

As Diretrizes Voluntárias sobre a Posse Responsável da Terra

As Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, da Pesca e das Florestas no Contexto da Segurança Alimentar Nacional (VGGT) constituem uma estrutura de referência internacional para a governança responsável da terra, da pesca e das florestas.

Elas foram adotadas em 2012 pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO e representam um conjunto de princípios e normas que orientam o uso e a gestão desses recursos. São o resultado de um longo processo de negociação que envolveu governos, representantes da sociedade civil e do meio acadêmico, em diversos níveis (nacional, regional e global), sob a coordenação e orientação do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO.

Entre 2008 e 2012, observou-se um processo de “apropriação de terras”, expresso na crescente concentração e aquisição de terras por estrangeiros, resultado do desencadeamento simultâneo de três crises: (i) uma crise marcada pelo aumento explosivo da demanda por alimentos; (ii) uma crise energética, que demanda grandes áreas para o cultivo de biocombustíveis; e (iii) uma crise financeira, que transforma a terra em um ativo seguro para investidores. Essa conjuntura gerou uma dinâmica no mercado de terras em que países e fundos de investimento passaram a atuar como compradores, além dos investidores tradicionais. Essa realidade, inicialmente observada na África e na Ásia, também se manifesta na América Latina e no Caribe.

Há uma discussão em aberto sobre a relação entre a aplicação das Diretrizes Voluntárias sobre a Posse Responsável da Terra e o conteúdo da reforma agrária.

É necessário fomentar um debate que respeite os diferentes argumentos — todos passíveis de questionamento — sobre questões complexas e em constante transformação.

Lições para o futuro

Ao revisitar as reformas agrárias latino-americanas, o estudo de Sergio Gómez E. não apenas recupera uma história de lutas e conquistas, mas também oferece reflexões críticas sobre os desafios contemporâneos. Se no século XX a questão agrária era entendida como um problema de redistribuição, hoje ela se complexifica, envolvendo temas como soberania territorial, mudanças climáticas e direitos indígenas. 

A obra conclui que, embora as reformas tenham sido fundamentais para abolir relações servis e reduzir desigualdades históricas, seu legado permanece incompleto. O futuro exigirá políticas inovadoras, que integrem a democratização do acesso à terra com estratégias de desenvolvimento rural inclusivo — um caminho ainda em construção, mas essencial para uma América Latina mais justa e sustentável.

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