Nosso país enfrenta o desafio da transição. Não somente de governo, mas também de retomada das políticas públicas e rearticulação das instâncias de participação social, inerentes à efetiva democracia
Por Priscilla Viana, André Biazoti, Beatriz Cancian e Helena Lopes no Le Monde Diplomatique Brasil | 13/06/2023
Arroz regional, feijão, farinha de mandioca, inhame, melancia, alface e couve são alguns dos itens que compõem o cardápio da alimentação fornecida a 41 escolas da rede pública do município de Marechal Thaumaturgo, no Acre. Com apenas 30 anos de fundação e cerca de 19 mil habitantes, a cidade é considerada referência na implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Brasil. Além de serem saudáveis e adequados, os alimentos são adquiridos junto a 55 famílias agricultoras, muitas delas indígenas, o que garante a valorização e o fortalecimento da cultura alimentar da região.
Nem mesmo a pandemia da Covid-19, que gerou o fechamento das escolas e intensificou os índices de insegurança alimentar em todo o país, interrompeu a entrega dos alimentos e a execução da política pública. “Durante a pandemia, dialogamos com a comunidade escolar e adotamos outras estratégias para manter as famílias nas suas propriedades, produzindo e gerando renda. Mantivemos as encomendas e adotamos uma escola como ponto de entrega para recepcionar os alimentos, pensando na segurança da equipe e das famílias produtoras. Elas levavam os alimentos, a equipe composta por nutricionistas e funcionários das Secretarias de Educação e de Meio Ambiente montavam os kits com produtos da agricultura familiar, e distribuíamos para as famílias consideradas de vulnerabilidade social no município”, afirma o assessor técnico do Meio Ambiente do município, Marcos Santos.
Somente no ano de 2022, a prefeitura de Marechal Thaumaturgo investiu mais de R$ 300 mil na compra de alimentos da agricultura familiar. Alguns fatores transformam o município em uma referência na implementação do PNAE, e um deles é a qualidade dos espaços de participação social. A cidade é administrada pelo professor Isaac Piyãko, da etnia Ashaninka. O prefeito Isaac, que cumpre seu segundo mandato, foi um dos mobilizadores para a implementação no PNAE ainda na década de 1990, no contexto do programa de formação de professoras/es indígenas conduzido pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI Acre). É o diálogo e a articulação entre a sociedade civil e o Poder Público Municipal que garantem a implementação eficaz dessa e de outras políticas públicas no município.
Outras experiências de inserção dos produtos da agricultura familiar e agroecológicos na alimentação escolar brasileira, assim como a de Marechal Thaumaturgo, foram mapeadas entre 2019 e 2021 pela Pesquisa-ação “Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade: Agroecologia e Alimentação Escolar”. Coordenada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), em parceria com diversas organizações e atores locais em nove municípios de todas as regiões do país, a Pesquisa-Ação trouxe caracterizações sobre as experiências, apontando potencialidades, desafios e caminhos possíveis para o fortalecimento de políticas públicas voltadas à alimentação escolar.
Os resultados da Pesquisa-Ação estão disponíveis para toda a população brasileira através do Boletim “Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade”, que pode ser baixado gratuitamente no site da ANA. A publicação, por sua vez, é utilizada como base em eventos de formação, como o seminário “O Programa Nacional de Alimentação Escolar: Olhares a partir da Agricultura Familiar e Agroecologia no Brasil”, realizado entre os dias 11 e 12 de abril no município de Viçosa, em Minas Gerais. O seminário reuniu representações do governo federal, da pesquisa acadêmica, de movimentos sociais e organizações do Terceiro Setor comprometidas com a garantia da alimentação escolar.
São iniciativas como essas, que articulam Poder público e sociedade civil e efetivam passos conectados entre a prática, a ciência e o movimento, que apontam futuros possíveis.
Um sistema de informações a serviço da agroecologia
A política pública de alimentação escolar em Marechal Thaumaturgo é uma das mais de 4 mil experiências agroecológicas mapeadas pela América Latina e cadastradas na plataforma Agroecologia em Rede (AeR). Trata-se de um sistema de informações em software livre criado no início dos anos 2000, fruto de um esforço coletivo conduzido pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia), pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pela Cooperativa Eita e por um conjunto diverso de redes e organizações atuantes no campo agroecológico em todo o Brasil.
O maior banco de dados sobre agroecologia da América Latina possibilita a realização de pesquisas sobre experiências de agricultoras e de agricultores, seus relatos de vida, as memórias de projetos e organizações, políticas públicas, entre outras informações sobre os movimentos pulsantes da agroecologia em diferentes territórios e temporalidades. O sistema de consulta da plataforma possibilita a visualização das experiências por critérios de busca como a identidade dos sujeitos envolvidos, a abrangência territorial, a data em que a experiência foi cadastrada na plataforma e os temas relacionados à agroecologia, entre outros.
É sob essa perspectiva que o AeR hoje é considerado uma plataforma referência de desenvolvimento de tecnologia da informação e metodologias para produção e partilha de conhecimentos fundamentais para a criação e o fortalecimento de políticas públicas com participação social. Para a ex-presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e Diretora de Diálogos Sociais da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação com Políticas Públicas/SNDSAPP, Islandia Bezerra, essa convergência de informações sobre políticas públicas em agroecologia é fundamental para embasar o governo federal na garantia de direitos.
“A agroecologia se localiza nesse campo da complexidade onde vários saberes e várias áreas se encontram e trocam efetivamente experiências empíricas, mas também dados científicos comprovados. A agroecologia passa a ter esse destaque porque a gente não precisa apenas de políticas públicas alimentares, na perspectiva da saúde das pessoas e do ambiente, levando em consideração a natureza como sujeito, a gente percebe que a agroecologia é quem nos oportuniza esse refletir-agir. A gente precisa mais do que políticas públicas alimentares, a gente precisa de políticas públicas alimentares agroecológicas, trazer a agroecologia para a centralidade dessas políticas e outras que possam ser consideradas transversais, seja na saúde, seja no ministério das mulheres, dos povos originários.”
Democracia, agroecologia e segurança e soberania alimentar e nutricional
Mas, de que maneira uma plataforma de experiências em agroecologia pode contribuir para o processo de retomada da democracia brasileira?
O governo Lula inicia o seu 3º mandato sob um cenário político bem mais adverso do que os mandatos anteriores. Trata-se de uma transição que se movimenta a passos delicados, após um (des)governo que teve como algumas das ações principais a revogação dos espaços de participação social, o desmonte de políticas públicas de redução da desigualdade, de combate à fome e de garantia da soberania e da segurança alimentar e nutricional.
Esse projeto de governo voltado ao atendimento e à gestão de interesses privados de grandes corporações do agronegócio, da mineração, do setor energético e de latifundiários em detrimento do interesse público não poderia ter outro resultado, senão índices desesperadores. Apesar de ser uma das maiores economias do mundo, o Brasil retornou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), com 125,2 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar e 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer.
Não à toa, a erradicação da fome e a retomada de políticas públicas essenciais à mudança desse cenário foram algumas das principais pautas abordadas na agenda eleitoral de 2022. O acervo de experiências sistematizadas na plataforma do Agroecologia em Rede mostra que existe um caminho possível para a construção e o fortalecimento das políticas públicas de futuro, com valorização da agricultura familiar camponesa, dos povos e comunidades tradicionais e da agroecologia.
“O tipo de política pública que a gente precisa fazer avançar não são políticas públicas que partam do zero, mas que olhem para as experiências que foram construídas nas últimas duas décadas. Há muitas experiências importantes, construídas em rede de baixo pra cima com protagonismo de quem vive nos territórios, na articulação entre Estado e sociedade civil”, destaca André Burigo, da Agenda de Saúde e Agroecologia, sob coordenação da vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz.
Todos esses apontamentos apresentam o AeR como um grande e completo banco de dados e informações sobre experiências e políticas públicas protagonizadas pela sociedade civil em articulação com o Poder Público. Disponível para a realização de pesquisas, análises e estudos sobre a agroecologia e a agricultura familiar no Brasil, a imensa gama de informações sistematizadas ao longo de 23 anos na plataforma também pode servir de base para a implementação e o fortalecimento de políticas públicas com ampla participação popular.
Muitas dessas informações são sistematizadas a partir de processos de incidência política, como as ações de mobilização para a criação e aprimoramento de políticas públicas de apoio à agroecologia. Promovida em todo o Brasil entre os anos de 2021 e 2022 pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a iniciativa “Agroecologia nos Municípios (AnM)” é um exemplo disso. Através de processos de articulação e mobilização junto às redes estaduais de agroecologia, a iniciativa pôde mapear políticas públicas, programas, projetos, leis e experiências municipais importantes de apoio à agricultura familiar, à segurança alimentar e nutricional e de fortalecimento à agroecologia e incidir politicamente sobre algumas delas. As atividades de incidência política foram conduzidas por 26 consultorias em 38 municípios brasileiros, assim como foram sistematizadas iniciativas de referência na participação popular na construção de políticas públicas em 21 municípios, totalizando 59 municípios envolvidos. Um dos produtos gerados pela iniciativa é um Mapa interativo, publicado no Agroecologia em Rede, que apresenta quase 60 experiências de incidência política em todo o país.
Uma delas aconteceu em Jacobina, na Bahia. Através do processo de incidência política realizado pela iniciativa junto à Cooperativa de Trabalho e Assistência à Agricultura Familiar do Piemonte (COFASPI), a Articulação de Agroecologia da Bahia (AABA) e a Articulação do Semiárido (ASA), foi criado o Fórum Permanente Agroecológico de Jacobina, um espaço de diálogo entre a sociedade civil e o poder público. Foi a partir desse Fórum que Jacobina conquistou a criação e aprovação da Lei Municipal de Agroecologia, que dispõe sobre a criação da Política Municipal de Agroecologia e Convivência no Semiárido. O PL foi aprovado na Câmara Municipal de Jacobina, com ampla participação popular.
São experiências como a de Jacobina que apresentam possibilidades e aprendizagens para aprimorar o debate sobre a democratização do Estado e avançar no ciclo de elaboração, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas, com ampla participação social. Além disso, servem de inspiração para organizações e movimentos sociais e mostram que é possível ampliar ainda mais a relação entre a sociedade civil e o Poder Público.
Um novo governo, para fortalecer de fato a democracia e o caminho das políticas públicas, deve ouvir as vozes de quem nunca deixou de resistir, no Agroecologia em Rede essas informações estão sistematizadas e já apontam para trajetórias em curso.
Publicado originlmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/base-de-dados-da-agroecologia-e-estrategica-reconstrucao-no-brasil/