Chris van Tulleken: “Produtos ultraprocessados são mentiras alimentares que nos contam”

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Por Tim Adams no The Guardian | 19/05/2024

Chris van Tulleken sugeriu que nos encontrássemos na “Sweet Thursday”, sua pizzaria local favorita, em Hackney, leste de Londres. Se a escolha parece contraintuitiva para um homem com a missão de melhorar a nossa dieta nacional, ele me corrige quando nos sentamos. “A pizza tornou-se emblemática da junk food”, diz ele, “mas uma boa pizza caseira é muito saudável”.

Na Sweet Thursday, os chefs italianos, puristas, preparam suas massas fermentadas frescas em uma cozinha aberta (dizem que são tão puristas que estabelecem limites e sequer preparam saladas). Mas não é só a autenticidade que conta, é também a comunidade. Van Tulleken mora na esquina; o proprietário cresceu nas proximidades e é aqui que as famílias locais costumam vir para conversar ou comemorar. “Acima de tudo, um restaurante nunca deve ser apenas uma forma de extrair dinheiro em troca de comida”, afirma Van Tulleken. “Ou para pagar dividendos a investidores offshore. E acho que essas coisas são realmente óbvias, mesmo que você não viva, como eu, em um mundo de estudos sobre nutrição.”

As distinções que Van Tulleken faz estão no cerne de sua pesquisa sobre os danos que os alimentos ultraprocessados estão causando à nossa saúde física e mental. A afirmação de seu livro best-seller “Ultra-Processed People” (ainda não traduzido para o Português)* é que os alimentos produzidos por empresas com aditivos, emulsionantes e amidos modificados essencialmente “hackeiam os nossos cérebros”, perturbando a regulação normal do apetite. Induz-nos a comer mais por serem mais macios, mais escorregadios, mais salgados e mais doces do que os alimentos integrais e é este o ponto do “um trilhão de dólares”, sugerem suas descobertas, que está impulsionando a epidemia de obesidade. No decorrer de sua pesquisa profunda, ele atua como cobaia para essas teorias (com a ajuda ocasional de seu irmão gêmeo, Xand, também médico e, por compartilharem uma composição genética, seu grupo de controle integrado). Os meses em que comeu mal serviram para mostrar que o que consumia não era comida, mas sim, como um colega acadêmico insistia, “uma substância comestível processada industrialmente”. Ou “comida que mente para nós”.

Enquanto fazíamos nosso pedido na Sweet Thursday – crostini rústico de fígado de frango e abobrinha frita para começar, risoto primavera para ele e pizza do mês com alcachofra e aspargos, para mim, ele faz uma singela previsão: “Você não conseguirá terminar sua pizza aqui. Ou seja, ela não vai escorregar como um prato fundo da Domino’s e deixar você querendo mais. Pode ser necessário mastigar e digerir adequadamente, e vai saciar você.”

Ao compartilharmos as nossas entradas, Van Tulleken pede desculpas antecipadamente por qualquer imprecisão que possa haver em seu pensamento – seu terceiro filho tem seis semanas e o sono é uma memória distante. Além de promover o lançamento de seu livro, há o trabalho diário – ele é especialista em doenças infecciosas na University College London – e episódios da sua mais recente série de podcasts (com Xand). Ele passou aquela manhã escrevendo uma proposta a ser submetida ao comitê sobre alimentação, dieta e obesidade da Câmara dos Lordes.

No ano em que o livro foi lançado, houve forte resistência contra suas afirmações. Em um posfácio à edição de bolso, ele oferece uma refutação bastante devastadora a essas críticas, uma proporção significativa das quais, revela ele, vem de acadêmicos cuja pesquisa foi patrocinada por vários conglomerados alimentares multinacionais. “Tentacular” é a palavra que utiliza para descrever o envolvimento dessas empresas nos comitês dedicados ao debate da sua regulamentação.

Ele teve experiência em primeira mão desse alcance. “Quando o livro foi lançado, imaginei que poderia estar no banco das testemunhas contra a Nestlé ou quem quer que fosse”, diz ele. “Mas a maneira como eles fazem isso é mais sutil.” Uma grande empresa de alimentos, por exemplo, perguntou se ele estaria interessado em dar uma palestra de meia hora para sua equipe sênior, por uma taxa de £20 mil. Ele disse que sim, mas que pagaria suas próprias despesas e doaria o dinheiro para uma instituição de caridade alimentar.

Quando o contrato foi assinado, ele mudou de ideia. Nele havia uma cláusula que o obrigava a não menosprezar a empresa em declarações públicas, “em todo o mundo, e para sempre”.

Para combater os efeitos prejudiciais dos alimentos ultraprocessados, Van Tulleken faz duas recomendações. Primeiro, proibir os conflitos de interesses nos órgãos científicos e consultivos do Reino Unido. E em segundo lugar, criar rótulos de advertência eficazes em produtos alimentares.

Muitas das críticas à ideia dos alimentos ultraprocessados residem no fato de serem difíceis de definir e, portanto, difíceis de regular. Van Tulleken argumenta que uma melhor aplicação das orientações dietéticas existentes no Reino Unido sobre gordura, sal e açúcar “apanharia 95% dos alimentos ultraprocessados”, e que um octógono preto de advertência sobre esses alimentos significaria que não poderiam fazer alegações de saúde nem atingir as crianças na sua comercialização. “Pegue uma caixa de Coco Pops em um supermercado e verá meia dúzia de alegações de saúde nela. Mas se houvesse um octógono de advertência, eles não poderiam fazer essas afirmações; não poderiam colocar um macaco alegre de desenho animado na frente; não poderiam ser vendidos em hospitais ou escolas.”

O caminho que o levou a este evangelismo é instrutivo. Ele cresceu em Hammersmith, no oeste de Londres. Seu plano inicial era ser piloto de caça – ele assistiu Top Gun – mas seu primeiro voo solo o desanimou. Ele então se formou como cirurgião, mas acabou seguindo Xand na pesquisa de doenças tropicais.

Trabalhando na África Central, ele viu muitas crianças morrerem de infecções. “E a razão pela qual morreram”, diz ele, “não foi porque não tínhamos antibióticos. Acontece que elas estavam sendo alimentadas com comida para bebês feita com água suja… a fórmula láctea era comercializada diretamente para as famílias como uma aspiração.” Quanto mais testemunhava esta tragédia, mais se tornava claro que “a solução deveria ser tentar limitar o poder [de marketing] corporativo, em vez de precisar de mais antibióticos. O que hoje chamamos de determinantes comerciais da saúde.”

Suas pesquisas o levaram a expor como as multinacionais alimentares trabalham arduamente para nos fazer comer cada vez mais ingredientes com cada vez menos valor nutricional. Seus testes, mostra ele, concentram-se na velocidade e no volume de consumo. Não é por acaso, sugere ele, que os gigantes do tabaco Philip Morris e RJ Reynolds adquiriram, respectivamente, a Kraft e a Nabisco na década de 1980: “Eles sabiam que tinham um conjunto de tecnologias que podiam aplicar aos alimentos”.

Nas últimas semanas, grande parte da discussão sobre os alimentos ultraprocessados se resumiu ao pão nosso de cada dia. Eu me pergunto o que ele achou do artigo do Guardian de Giles Yeo, professor de genética de Cambridge, que, embora reconhecesse as evidências que ligam os alimentos ultraprocessados a 32 efeitos adversos à saúde, também parecia argumentar que “deixando o sabor de lado, o pão de supermercado não é pior para você do que pão chique”.

“Tenho muito respeito por Giles”, diz ele. “Mas para mim, aquele artigo foi muito confuso. Se olharmos para um pão básico de supermercado, versus um pão de verdade, nada sofisticado, o pão de supermercado será extremamente rico em sal e geralmente rico em açúcar, acima do nível recomendado. Terá alta densidade energética porque é muito seco, para promover a vida útil – e sabemos que a densidade energética, o número de calorias por 100 gramas de alimento, é muito, muito importante para o ganho de peso. E então o pão do supermercado ficará extremamente macio, o que significa que você o comerá mais rápido e consumirá as calorias antes de ficar satisfeito.”

O argumento mais amplo de Yeo contra a imprecisão do rótulo de alimento ultraprocessado tocou naquela outra afirmação persistente, de que alimentos integrais são uma preocupação elitista; um pão de quatro libras está muito bem se você puder pagar. Van Tulleken tem duas réplicas a isso. A primeira é que a crise da obesidade custa ao NHS (National Health Service, o SUS britânico)* milhares de milhões de libras por ano – porque não tributar os alimentos ultraprocessados e usar isso para subsidiar a produção local de alimentos mais saudáveis? E, em segundo lugar, grande parte do “argumento esnobista” sobre a alimentação adequada é, acredita ele, “gerado industrialmente” por interesses estabelecidos.

“Quero dizer, a British Nutrition Foundation [cujos membros incluem empresas como McDonald’s, British Sugar e Mars, com financiamento de empresas como Nestlé, Mondelēz e Coca-Cola] tinha aquela citação: ‘Achamos que é importante não estigmatizar as pessoas na pobreza [aconselhando-as sobre o que não comer]’. Concordo plenamente! A verdadeira fonte de vergonha e estigma deveria ser dirigida aos governos que se recusam a regulamentar estas coisas…”

Enquanto ele me contava tudo isso, eu avançava lentamente sobre minha fabulosa pizza do mês. Longe de ser um teste duplo-cego, a sua previsão estava correta; é, na verdade, tão gratificante que não consigo terminar. Mas que tal uma bola de sorvete caseiro?, pergunta ele.

Ah, vá em frente então.

Publicado originalmente no The Guardian
https://www.theguardian.com/food/article/2024/may/19/academic-and-doctor-chris-van-tulleken-ultra-processed-products-are-food-that-lies-to-us

Informações sobre o livro “Ultra-Processed People – Why We Can’t Stop Eating Food That Isn’t Food” no site da editora
https://www.penguinrandomhouse.ca/books/711145/ultra-processed-people-by-chris-van-tulleken/9781039004931

Tradução: Blog do IFZ
(*) notas da tradução