Combate à fome: diretora do IFZ defende geração de emprego e renda aliada a políticas sociais

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Jornal Economia Popular | 04/07/2023

O número de domicílios com moradores passando fome saltou de 9% (19,1 milhões de pessoas) para 15,5% (33,1 milhões de pessoas). São 14 milhões de novos brasileiros/as em situação de fome em pouco mais de um ano. O levantamento foi feito entre novembro de 2021 e abril de 2022 pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan). O resultado foi divulgado no final de junho.

Os dados também apontam que a fome atinge um quinto das famílias chefiadas por pessoas negras – autodeclaradas pardas e pretas – no Brasil (20,6%). Esse percentual é duas vezes maior quando comparado ao de famílias comandadas por pessoas brancas (10,6%).

Para falar sobre os resultados dessa pesquisa, o Jornal Economia Popular convidou a diretora de articulação social do Instituto Fome Zero (IFZ), Ana Claudia Santos, para falar sobre as políticas públicas podem ser adotadas para combater a fome no país.

Ana Claudia Santos é mestre em ordenamento territorial e ambiental pela Universidade Federal Fluminense do Rio de janeiro (UFF/RJ). Trabalha com o Fome Zero desde o lançamento do projeto e depois na implementação como política pública federal em 2003. Atuou como coordenadora executiva da secretaria geral do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que também organizou a 2ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) em 2004.

Jornal Economia Popular – As políticas públicas gerais de combate à fome – a exemplo do Bolsa Família – são capazes de combater a fome denunciada na pesquisa?

Ana Claudia Santos – Em 2003 [quando o programa Fome Zero foi implantado] a gente se encontrava em uma situação muito diferente. Os altos índices de insegurança alimentar de populações com fome estavam muito localizadas na região nordeste do país, em cidades rurais, com uma população de até 50 mil habitantes e que viviam cercadas com uma série de outras precariedades. Então o Fome Zero foi implementado com o intuito de resolver o problema da fome dessas famílias e das outras precariedades relacionadas como por exemplo o fato de essas famílias não terem água pra produzir os produtos que garantiam a sua existência. Então o programa Fome Zero tinha um conjunto de políticas e ações voltadas pra oferecer condições dignas pra essas famílias produzirem a sua alimentação e se capacitarem para produzir, construírem cisternas, e depois venderem seus alimentos para o programa de aquisição de alimentos. Esse tipo de atuação fez com que os níveis de fome diminuíssem. Então o Fome Zero naquele período não foi feito para as grandes cidades.

O que mudou de lá para cá?

Na atualidade essas pessoas com fome estão vivendo nos grandes centros urbanos, regiões metropolitanas. Então a situação é muito mais complicada porque essas pessoas vivem em grandes cidades em que outras precariedades também existem, relacionadas a transporte, a qualidade da moradia e ao desemprego. Como garantir o alimento na mesa se as pessoas não têm o salário mensal que tinham, e não têm mais isso garantido? Muitas delas acabaram não conseguindo pagar aluguel, saíram de suas casas com suas famílias e começaram a viver na ruas para garantir subsistência a partir de pedidos de ajuda, cestas básicas e doações. Atualmente o que resolveria essa situação é fundamentalmente a garantia do emprego e da renda. A correção do salário mínimo – que anteriormente era feita de acordo com o aumento da inflação – também é necessária e fundamental para garantir que elas tenham condições financeiras de se alimentarem corretamente. É bom também deixar claro que o Fome Zero é um conjunto de medidas e ações coadjuvantes a essas políticas.

A pesquisa também aponta que ter melhor escolaridade não protegeu as famílias de mulheres negras da falta de alimentos. Que tipos de políticas podem ajudar a proteger essa parcela da população?

Essas mulheres e famílias residem em áreas que já são precarizadas. É um conjunto de precariedades como um todo. Se ela tem um nível maior de escolaridade, ela também tem filhos e tem que se desdobrar no dia a dia pra criar esses filhos, levar na escola, conseguir trabalhar, se deslocar, se alimentar e pagar as outras contas. Ela é a chefe da família e segura tudo isso sozinha. Então é esse peso por mais escolaridade que ela tem, o peso de carregar a família nas costas. Há outra questão apontada por especialistas que fala da queda da produtividade do brasileiro nos últimos anos que se reflete no quanto ele recebe de remuneração. Esse reflexo é sentido muito nas periferias, onde vive a população mais pobre, miserável, que é em geral negra, e as privações todas são maiores. São esses os números da insegurança alimentar dessas mulheres pretas, periféricas, trabalhadoras e chefes de famílias que são grandiosas. Creio que a partir do incremento do aumento do emprego e da renda também se reflete positivamente e cria uma uma maior estabilidade nessas famílias. As políticas fundamentais nas atuais circunstâncias são criação de empregos e melhoria da renda para a trabalhadora, desde que seja uma remuneração adequada, corrigida e justa. Além disso, a gente está falando sobre essas famílias que necessitam do auxílio do Bolsa Família, que são famílias formadas por uma única pessoa ou com um chefe de família que é uma mulher com muitos filhos. Muitas vezes ela deixa de se alimentar pra poder alimentar os filhos, pra que não faltem pros filhos. Então hoje o Bolsa Família não daria conta de tudo isso – teria que estar alinhado a outras políticas como eu já disse – políticas de geração de emprego e melhoria da renda.

Emprego e renda ajudam na alimentação das famílias, mas a pesquisa aponta que pelo menos 20% de famílias com renda e emprego não conseguem obter segurança alimentar. Que outras políticas públicas podem ser adotadas para que trabalhadores tenham segurança alimentar?

Acho que nesse ponto há a importância do Custo Brasil para a economia voltar a crescer. Porque se não crescer, não acaba com a fome. O fundamental é garantir emprego e renda para as pessoas, sobretudo para os jovens que querem ou precisam entrar no mercado de trabalho. Com o aumento do custo Brasil não se consegue nem absorver quem está no mercado de trabalho na condição de desempregado e nem para os mais jovens recém-formados, gente que precisa ingressar nessa trajetória. Então há uma série de questões aí para o Brasil crescer que envolvem a questão tributária, que é muito injusta. Envolve combater a concentração brutal de renda pra poucos enquanto muitos não têm sequer condições de ter renda. Essa situação pode ser corrigida com políticas de emprego e renda e melhoria de salários, que agora estão começando a ser reajustados acima da inflação. Então quando se tem uma perspectiva otimista de crescimento, os empresários aceitam melhor as negociações, não apenas para repor as perdas relacionadas a inflação, mas também para aumentar um pouco mais os salários dos empregados. Assim, a roda da economia começa a girar positivamente e todos saem beneficiados, e isso reequilibra a economia do país e a situação de vida das pessoas.

Publicado originalmente no Jornal Economia Popular
https://jornaleconomiapopular.com/2023/07/03/combate-a-fome-diretora-do-instituto-fome-zero-defende-a-integracao-de-programas-sociais-com-politicas-de-geracao-de-emprego-e-renda/?v=19d3326f3137