Por Tracy Kidder no The New York Times | 14/07/2025
Partes de Easthampton, uma antiga cidade industrial no oeste de Massachusetts, lembram relíquias da Nova Inglaterra fabril — como as antigas casas geminadas dos operários. Em outros trechos, a cidade parece reviver, com fábricas reformadas e reocupadas por galerias de arte, restaurantes e lojas. Pedestres lotam as calçadas nas noites de sexta e sábado, especialmente durante as noites mensais dedicadas à arte. Mas, nas manhãs de segunda-feira, quando o centro parece deserto, outro tipo de multidão se forma em uma rua lateral, diante de um prédio de tijolos do século XIX. A placa na entrada o identifica como o Easthampton Community Center and Food Pantry (Centro Comunitário e Banco de Alimentos de Easthampton).
O centro distribui mantimentos gratuitos às segundas e quartas-feiras, mas a segunda costuma ser o dia mais movimentado, pois muitas das pessoas atendidas já ficaram sem comida nesse ponto da semana. Às 9h de uma segunda-feira em junho, uma fila de pessoas com sacolas de compras se estendia da calçada, atravessando o estacionamento, até a primeira das estações de distribuição, ao lado do velho edifício. Ali, os clientes eram recebidos por voluntários com rostos amigáveis e vozes prestativas, oferecendo leite e ovos, uma seleção de pães e doces, carne congelada, frutas e vegetais. No interior, outra equipe de voluntários montava sacolas com alimentos enlatados e embalados, algumas voltadas para adultos, outras para crianças.
A responsável por essa movimentação bem organizada é Robin Bialecki, uma mulher de 71 anos, de cabelos brancos. Ela começou como voluntária há 25 anos e dirige a operação há 17. É a única funcionária remunerada; trabalha todos os dias, exceto no Natal, e recebe US$ 32.400 por ano. Planejava se aposentar, mas permaneceu no cargo para ajudar durante o que agora parece ser o colapso das defesas do país contra a fome e doenças evitáveis.


O número de famílias atendidas pelo centro saltou para mais de 5.000, ante cerca de 1.000 antes da pandemia de Covid-19. No ano passado, Bialecki e seus voluntários distribuíram 2,5 milhões de libras de alimentos no centro e em locais próximos, como acampamentos de pessoas em situação de rua. Hoje, dezenas de novas famílias chegam todas as semanas, e Bialecki tenta acalmar os clientes em pânico que lhe perguntam o que a nova lei de política interna do presidente Trump significará para eles. Recentemente, uma frequentadora assídua, uma senhora idosa, agarrou Bialecki pelos ombros, sacudiu-a e disse: “Nós dependemos de você! E você não vai ter comida suficiente!”
A mulher tinha motivos para se preocupar — assim como cerca de 50 milhões de outros norte-americanos que dependem de bancos de alimentos como o de Easthampton.
A lei de Trump, assinada no Dia da Independência, é a mais recente e abrangente de uma série de tentativas cíclicas de reduzir o tamanho e os custos da chamada rede de proteção social dos Estados Unidos — para desmantelar os vários programas sociais criados sob o programa “Grande Sociedade”, do presidente Lyndon Johnson. Entre outras medidas, a lei começa a desmontar o programa federal anteriormente conhecido como vale-alimentação, hoje chamado, em tempos de prolixidade, de Programa de Assistência Nutricional Suplementar — SNAP, na sigla em inglês. O programa oferece assistência financeira para alimentação — uma média de US$ 187 por mês por pessoa. Cerca de 42 milhões de americanos dependem do SNAP, incluindo 85% dos atendidos por Bialecki.

O corte no SNAP aumentará drasticamente a pressão sobre os bancos de alimentos. Estes representam um modelo de decência — esforços comunitários coordenados em prol dos necessitados. Ajudam famílias em situações emergenciais, mas, embora complementem o SNAP, não conseguem suprir nem de longe a mesma quantidade de pessoas. Segundo a Feeding America, organização que coordena os bancos de alimentos no país, o SNAP fornece nove vezes mais alimentos que todos os 200 bancos de alimentos da rede combinados. Além disso, como os recursos do SNAP vão quase que inteiramente para pessoas em situação de vulnerabilidade aguda, o dinheiro é gasto rapidamente, injetando atividade nas economias locais. Cada dólar investido no SNAP acrescenta até US$ 1,50 ao Produto Interno Bruto dos EUA — um importante amortecedor durante crises e recessões.
Conservadores há muito se opõem ao SNAP. Muitos argumentam que o programa é mal administrado e desestimula o trabalho. No entanto, a necessidade do SNAP é evidente, urgente e nacional. Não há condado nos Estados Unidos, por mais rico que seja, em que as únicas pessoas famintas estejam fazendo dieta. Os dados mais recentes indicam que 47,4 milhões de americanos enfrentaram a ameaça da fome em algum momento de 2023. Dentre eles, 13,8 milhões eram crianças. Quase 7 milhões de famílias passaram por episódios classificados como “insegurança alimentar muito grave” — o que significa pular refeições, ou até um dia inteiro de alimentação, sem saber de onde viria a próxima refeição. Proporções desproporcionais de afro-americanos e latinos vivem essa miséria.


O problema não é novo, mas a nova lei o agravará. Segundo o Escritório de Orçamento do Congresso (CBO), mais de dois milhões de pessoas perderão os benefícios do SNAP. Ao mesmo tempo, mudanças no Medicaid permitirão uma economia de cerca de US$ 1 trilhão ao longo de 10 anos — em parte por meio de exigências de trabalho já sabidamente confusas, usadas historicamente para barrar inscrições. A lei adicionará 11,8 milhões de pessoas aos atuais 26 milhões de americanos sem seguro de saúde.
No total, a nova política interna retirará cerca de US$ 1,2 trilhão de programas sociais na próxima década. Seus defensores afirmam que as reformas combatem fraudes, reduzem desperdícios e “salvam” os programas sociais para o futuro. Mas parte da intenção é visivelmente redirecionar recursos — por exemplo, para injetar mais de US$ 100 bilhões em operações de deportação de imigrantes indocumentados. O Congresso republicano também decidiu estender os grandes cortes de impostos promovidos no primeiro mandato de Trump. Principalmente por isso, segundo estimativas do CBO, a nova lei acabará adicionando cerca de US$ 3,4 trilhões ao já imenso déficit federal em 10 anos.
Há muitas opiniões divergentes sobre as redes de proteção social. O que elas devem incluir? Elas deveriam existir? Observando a fila diante do banco de alimentos em Easthampton, percebi que, se destruirmos a rede atual, o cenário se tornará verdadeiramente distópico.
Quase ninguém na fila de segunda-feira parecia indigente. Para muitos — senão todos —, ficar ali era um ato humilhante. A maioria das mulheres mais velhas vestia-se com esmero, como para afastar a vergonha. Na verdade, os frequentadores da fila estavam melhor vestidos que os voluntários em suas roupas de trabalho. De acordo com trolls online — e até com alguns moradores locais —, muitos dos presentes seriam imigrantes ilegais roubando comida dos americanos. Não que isso importe para Bialecki. (“Fome é fome”, diz ela.) Mas a maioria dos atendidos é composta por cidadãos americanos: em sua maioria brancos, com alguns latinos e alguns negros. Um deles, desempregado após sua empresa se transferir para outro estado, culpava-se: “Não consigo alimentar meus filhos”, disse à Bialecki. “Sou um fracasso.”




É fácil julgar equivocadamente os clientes. Certa vez, alguém viu uma mulher saindo do centro com mantimentos em um SUV moderno e disse a Bialecki que desaprovava. “Não que seja da sua conta”, respondeu ela, “mas o marido dessa mulher acabou de deixá-la com quatro filhos e sem dinheiro.” De todo modo, acrescentou, o carro dela seria recuperado em breve.
Bialecki conhece histórias assim aos montes, histórias sobre a vasta vulnerabilidade da sociedade americana. Conhece praticamente todos os que passam pelas filas. Alguns usam bengalas, outros estão em cadeiras de rodas. Alguns sofrem de transtornos mentais ou dependência de drogas e álcool. Muitos têm empregos — mas não os que pagam o suficiente para cobrir os custos crescentes de moradia, transporte, alimentação e cuidados infantis, mesmo em famílias com dois salários ou com mães solo que trabalham. Outros perderam o emprego ou tiveram de parar de trabalhar por conta de um filho doente ou de um carro quebrado. Muitos são idosos que trabalharam por toda a vida, mas cuja Previdência Social não dá conta — como a viúva idosa que viu filho, filha e seis netos se mudarem para sua casa. Há ainda quem tenha perdido o emprego na pandemia e agora, mesmo trabalhando, receba menos do que antes.
Para muitos republicanos, a nova lei de política interna — que Trump chama de One Big Beautiful Bill Act (algo como “A Grande e Bela Lei”, em tom triunfalista de pátio escolar) — representa uma vitória na longa campanha por uma “reforma dos direitos”, com o objetivo de reduzir ou eliminar os programas da rede de proteção social. Mas essa suposta reforma nada faz para aliviar a situação das pessoas para as quais tais programas foram criados.
Há muito sofrimento nos Estados Unidos. O Census Bureau estima que 36 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza — um critério de renda absurdamente baixo. E, segundo um estudo de 2019, cerca de 30 milhões de trabalhadores em tempo integral não recebem o chamado “salário digno” — aquele que cobre necessidades básicas e ainda oferece alguma margem para imprevistos. Um país rico com uma economia tão excludente precisa, no mínimo, oferecer paliativos.

No início deste ano, o governo Trump cortou verbas para os bancos de alimentos, colocando muitos sob imensa pressão. Mas os cortes do SNAP previstos na nova lei — quase US$ 200 bilhões em 10 anos — são ainda mais ameaçadores.
E há uma nova reviravolta: por 60 anos, o governo federal financiou integralmente os benefícios do SNAP, enquanto os estados cuidavam da aplicação das regras — uma tarefa árdua, que muitos desempenhavam de forma imperfeita. A partir de 2028, estados com taxa de erro superior a 6% terão que arcar com 5% a 15% do custo de seus próprios programas. Poderão, inclusive, reduzi-los ou encerrá-los. Talvez esse seja o objetivo do jargão burocrático e das cifras entorpecentes da “grande e bela lei”: fazer com que os estados abandonem o SNAP e assumam sozinhos a responsabilidade.
As novas regras de trabalho também cumprem uma função ideológica: reafirmam a velha distinção entre os pobres e os “pobres merecedores”. Prefiro a alternativa sugerida pelo príncipe Hamlet, de Shakespeare: se todos recebessem exatamente o que merecem, ninguém escaparia do castigo. Melhor, diz ele, tratar os outros conforme “nossa própria honra e dignidade”. Assim, quanto menos alguém merece, mais crédito temos em ajudá-lo.
Robin Bialecki trabalha arduamente para aliviar o sofrimento ao seu redor. Esforça-se para atender quem tem necessidades alimentares especiais. O porão do centro está repleto de roupas doadas; o sótão, de brinquedos para as centenas de crianças atendidas. Cada criança recebe um presente no Natal e uma refeição de aniversário escolhida por ela, com direito a mistura para bolo e cobertura favorita. Para muitos moradores do oeste de Massachusetts, esses esforços são quase tudo o que restou da rede de proteção social.
Mas o trabalho de Bialecki está se tornando cada vez mais difícil. Nos dias de distribuição, o centro geralmente fecha das 12h às 15h. Mas, na segunda-feira, 1º de julho — poucos dias antes de a “grande e bela lei” entrar em vigor — a fila era tão longa e incessante que Bialecki e seus voluntários distribuíram alimentos por 10 horas seguidas. Mais de 450 famílias passaram por lá naquele dia. Era como se estivessem se preparando para um furacão.
Alguns dias depois, com um tom de voz ainda alegre, Bialecki disse que talvez, enfim, aquilo que ela vinha dizendo a si mesma há meses fosse verdade: talvez agora as coisas realmente não possam piorar. “Todos os dias me impressiona o fato de não conseguirmos parar essa loucura”, desabafou.
O presidente da Câmara, Mike Johnson, que reuniu os votos para a aprovação da lei, disse certa vez: “Pegue uma Bíblia na sua estante e leia. Essa é a minha visão de mundo.” Talvez ele devesse reler o capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Lá, Jesus adverte seus discípulos sobre o que dirá, no Juízo Final, às pessoas mesquinhas do mundo:
“Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Pois tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber. Era estrangeiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; doente e na prisão, e não me visitastes.”
Os condenados perguntarão quando foi que deixaram de fazer tudo isso por Ele. Jesus responderá:
“Em verdade vos digo que, quando não o fizestes a um destes pequeninos, não o fizestes a mim.”
Tracy Kidder é escritor e vencedor do Prêmio Pulitzer. Esta reportagem foi feita em Massachusetts.
Publicado originalmente no The New York Times
https://www.nytimes.com/2025/07/14/opinion/america-safety-net.html
