Por Nancy Kacungira na BBC News | 25/08/2018
Um fazendeiro descalço segue caminho pela floresta. Ele também segura um facão enferrujado, mas não é para cortar cipós ou galhos com os quais se deparar na mata: é uma defesa contra ladrões que vagam por ali.
Muitos outros homens – agricultores como ele – estão patrulhando a área. Há três meses, eles deixam suas casas todas as noites e fazem uma longa jornada nas plantações para proteger a colheita.
Não se trata de uma plantação ilegal de coca ou algo parecido. Estamos em uma plantação de baunilha na ilha de Madagascar, na África, um dos lugares mais pobres do mundo e também o maior produtor mundial deste fruto, cujo preço disparou nos últimos anos e chegou a valer mais do que a prata.
É fácil ver na região pequenos pontos marcando a casca verde e lisa das favas de baunilha, também chamadas de vagens, que nascem em orquídeas trepadeiras depois das floradas. Dentro delas, estão polpas recheadas de sementes minúsculas de onde saem o sabor e o cheiro característicos da baunilha.
Os pontos gravados nas cascas identificam o dono da plantação. Os que vemos pertencem a Leon Charles, um homem apelidado de “Baba”. Ele e a mulher, Oristin, cultivam café e baunilha na aldeia de Ambanizana, localizada na margem do Parque Nacional Masoala, no lado nordeste de Madagascar.
É um lugar de difícil acesso, sem estradas. Para chegar a partir da capital da ilha, Antananarivo, é preciso encarar dois voos, duas horas de lancha e 30 minutos de canoa.
A aldeia onde Leon planta é cheia de música. Melodias animadas, dançantes, ecoam através da cortina rosa que cobre a entrada de sua casa, uma estrutura retangular de madeira com um teto pontudo.
Aqui, a floresta encontra o mar, e condições como alta umidade, sombra e temperaturas moderadas a tornam perfeita para o cultivo de baunilha.
Cada pé que Leon poda possui favas que acabarão vendidas por mais de US$ 150 (R$ 615) o quilo, uma vez que estiverem secas e prontas para uso.
Violência e justiça com as próprias mãos por causa da baunilha
Para impedir seu roubo, os agricultores das redondezas gravam seus nomes ou números de série nas cascas enquanto as favas ainda estão no pé. Mesmo quando estão secas, as marcações podem ser feitas.
Leon foi roubado antes da colheita do ano passado – e isso foi devastador para sua família. “Estava trabalhando no meu campo de arroz quando aproveitaram para roubar”, diz ele.
“Fiquei triste demais, até chorei, perdemos tudo. Fiquei sem dinheiro para mandar as crianças para a escola, e temos passado dificuldades o ano inteiro.” Mas poderia ter sido ainda pior.
A vigilância dos agricultores contra os ladrões tem que ser feita 24 horas por dia. Os roubos são frequentemente violentos. Houve dezenas de assassinatos em Madagascar relacionados à baunilha.
Várias comunidades tentaram e não conseguiram obter proteção da polícia. Em resposta, aldeões dizem que em um vilarejo próximo, uma multidão armada de facões surpreendeu cinco supostos bandidos, golpeando o grupo até a morte. Os assassinatos ainda não foram solucionados pela polícia.
Moradores dizem que não há vontade ou capacidade nas forças policiais para investigar os roubos de baunilha ou os casos de justiça com as próprias mãos que às vezes se seguem a eles.
O líder da aldeia de Leon, Oreis, teme que a mesma coisa ocorra no lugar onde vivem. De aparência jovem, usando shorts e sandálias com uma camisa roxa brilhante, ele para na casa de Leon para dizer oi. Sua expressão fica séria quando ele fala sobre os roubos.
“Nós temos que fazer o nosso melhor para garantir que os ladrões não consigam nos roubar. Porque, se o sustento de alguém é tirado, as pessoas são capazes de fazer qualquer coisa, até matar.”
Um sabor cada vez mais caro – e artificial
A milhares de quilômetros de distância, em Londres, a sorveteria Oddono’s fica em uma rua movimentada em South Kensington, bairro nobre da cidade.
O estabelecimento tem uma infinidade de prêmios pendurados na parede. Os proprietários se vangloriam de ter os melhores ingredientes naturais em seu autêntico gelato italiano.
A lista inclui chocolate Valrhona da França, pistaches da Sicília e avelãs do Piemonte. No ano passado, porém, outra variedade de sorvete estava em falta.
“Quando eu disse aos clientes que não tínhamos sorvete de baunilha, muitos ficaram chocados”, diz Christian Oddono, que administra a loja.
“Eu tive que explicar que não queríamos oferecer a eles produtos de má qualidade, e que também nunca usamos produtos químicos. Aí entenderam.”
O preço da safra de baunilha de Madagascar disparou no passado, mas a qualidade caiu tanto que Christian decidiu tirar o sabor do cardápio.
“As vagens tinham muita umidade e algumas vinham até com cheiro de mofo, um sinal de que o processo de cura (a secagem e maturação antes de estarem prontas para uso) não foi feito adequadamente”, diz ele.
“Neste ano, encontrei um fornecedor melhor em Madagascar. Os preços ainda estão altos, então, também tivemos que aumentar os nossos, mas os clientes não reclamaram. Vemos uma tendência geral de crescimento na demanda por alimentos naturais, e os clientes evitando os que são artificiais ou contêm químicos.”
Estamos acostumados a ver baunilha por todos lados – em essências de velas, em cupcakes e sobremesas. Mas esse cheiro e sabor são, provavelmente, artificiais: menos de 1% do sabor de baunilha no mundo saem de favas de verdade.
Cientistas vêm fabricando vanilina sintética, o composto que dá aroma à baunilha, desde o século 19. Ela tem sido extraída do carvão, do alcatrão, do farelo de arroz, de polpa de madeira e até de esterco de vaca.
Hoje, porém, é de petroquímicos que sai a maior parcela. A versão sintética pode ser 20 vezes mais barata que a real.
Ao mesmo tempo, o crescente interesse por comida feita de maneira artesanal, usando métodos tradicionais, explica um pouco da demanda pela baunilha natural. E muito do preço nas alturas pode ser explicado por regras alimentares dos dois lados do Atlântico.
Na Europa e nos Estados Unidos, o sorvete “de baunilha” deve conter extrato natural de vanilina das vagens de baunilha. Se o sabor tem origem total ou parcialmente em fontes artificiais, a embalagem deve dizer “sabor de baunilha” ou “baunilha artificial”.
A baunilha extraída das vagens de baunilha tem sabor e intensidade únicos, característicos da área onde é cultivada, assim como acontece com produtos como o vinho.
A que é cultivada em Madagascar tem um gosto peculiar, que lembra o rum, e o aroma adocicado, razões pelas quais é a preferida de fabricantes de sorvete.
E há cada vez mais pressão sobre as empresas de alimentos para que troquem a baunilha artificial pela que é extraída das vagens.
Grandes corporações, como a Hershey e a Nestlé, começaram a comprar grandes quantidades de extrato natural de baunilha para seus produtos, o que injeta mais demanda na cadeia de suprimentos limitada e aumenta ainda mais os preços.
Preços passaram por altos e baixos na última década
Na última década, os preços da baunilha passaram por dramáticos altos e baixos.
Os 80 mil produtores de Madagascar produzem mais baunilha do que qualquer outro país, por isso, o que acontece na ilha afeta a indústria mundial.
Em março de 2017, o ciclone Enawo atingiu a região e destruiu grande parte da safra daquele ano. Duas das maiores áreas produtoras foram diretamente atingidas.
Pequenos produtores têm enfrentado dificuldades desde então para atender à demanda, já que são necessários três a quatro anos para uma nova planta produzir as vagens. E, com isso, os preços dispararam.
Cinco anos atrás, o quilo da baunilha saía por US$ 20 (R$ 82). Já em 2018 ele ficou ligeiramente mais caro que o da prata, atingindo um pico de US$ 600 (R$ 2463), antes de sofrer uma leve redução, para US$ 515 (R$ 2114), em junho.
A orquídea baunilha é nativa do México, mas o país produz pouco – foi ultrapassado por Madagascar ainda na década de 1960. O segundo lugar no ranking de maiores produtores é da Indonésia.
Colonizadores franceses levaram baunilha pela primeira vez para a ilha Reunião, vizinha de Madagascar, no início do século 19. A planta cresce como uma vinha trepadeira, atingindo até 90 metros de comprimento.
As vinhas crescem bem fora do México, mas nenhuma fruta, sob a forma de favas de baunilha, foi produzida. E os horticultores acabaram descobrindo o que estava faltando.
O pólen de uma flor de orquídea baunilha é inacessível para a maioria dos insetos, incluindo abelhas típicas. A pequena abelha Melipona, que vive apenas no México, foi a única capaz de alcançar esse pólen e fertilizar as flores.
Entretanto, depender das abelhas para a polinização pode ou não funcionar, já que as orquídeas brancas pálidas florescem apenas um dia por ano e a flor é fértil por apenas oito ou doze horas após desabrochar.
Cultivo da baunilha exige delicadeza e muito trabalho
Mas foi lá, em Reunião, que um menino escravo chamado Edmond Albius inventou, aos 12 anos de idade, uma forma meticulosa de polinizar à mão.
Uma vara fina e afiada é usada para levantar a frágil membrana que existe entre as partes masculina e feminina da flor, que são então empurradas uma em direção à outra para que a polinização ocorra.
O processo tem que ser repetido em cada uma das flores, em todas as videiras, para que a fruta seja produzida – ou seja, a vagem da baunilha cheia de milhares de minúsculas sementes pretas que eventualmente veremos em um sorvete de baunilha de alta qualidade.
Os agricultores de Madagascar precisam checar suas plantas todas as manhãs. Perder a janela de fertilização de uma flor, ou danificar a planta, significa perder vagens preciosas – para se ter ideia, são necessárias 600 flores polinizadas à mão para produzir apenas 1 quilo de favas de baunilha curadas.
Após a polinização, leva-se nove meses para as vagens amadurecerem, e, então, serem colhidas.
As favas ainda verdes começam a fermentar rápido, por isso os compradores têm de ser encontrados depressa.
Os pequenos agricultores normalmente vendem o produto para intermediários que coletam grandes quantidades para vender aos exportadores locais.
Nessa altura da cadeia produtiva, as vagens não têm o cheiro ou o sabor característicos da baunilha. A dura jornada que enfrentam – da polinização à cura e secagem, e depois à preparação para exportação – demora cerca de um ano.
O produto acabado é uma fava de baunilha escura-amarronzada e fortemente enrugada que é mole, flexível e tem a textura semelhante ao couro, com um forte aroma.
Alta demanda cria ‘mercado paralelo’ do fruto
Em uma rua empoeirada no meio da cidade comercial de Maroantsetra, em Madagascar, os vendedores no “mercado paralelo” negociam a baunilha antes mesmo do período de colheita.
A BBC conversou com um “comissário” (ou atravessador). Ele é um intermediário. Tinha apenas 300 gramas disponíveis e admitiu: “Não é de boa qualidade”.
“São 2kg”, diz o negociante com tom orgulhoso, “por 3,3 milhões de ariari (a moeda de Madagascar)”, ou R$ 4,1 mil.
Eu digo a ele que não posso comprar. Ele encolhe os ombros e sorri, mas não fica desapontado – haverá outros compradores dispostos a pagar o montante.
As vagens são embaladas a vácuo, uma prática que o governo está proibindo, porque reduz a qualidade do produto pela qual Madagascar é tão conhecida. E o processo pode ser usado por especuladores para conservar vagens que foram colhidas antes do tempo, que ficam armazenadas para serem vendidas depois a preços mais altos.
Mas, imaturas ou curadas de forma inadequada, elas têm um teor mais baixo de vanilina e, muitas vezes, gosto de mofo.
Muitos produtores optam por antecipar a colheita para evitar perdê-la para os ladrões. O governo tentou impedir isso estabelecendo datas de colheita fixas para cada aldeia. Para reforçar a ideia e pressionar para que os produtores respeitem o calendário, as autoridades recentemente queimaram em público 500 quilos de vagens colhidas prematuramente.
Mas há atravessadores menores sob imensa pressão para pegar as favas mais cedo – e por um preço menor. Eles obtêm adiantamentos em dinheiro de grandes exportadores e precisam entregar o produto.
No entanto, esperar até o período da colheita, quando a demanda excede a oferta – empurrando os preços para cima – pode ser arriscado.
Arman Ramarokootonirina tem trabalhado como atravessador, comprando baunilha de fazendeiros em Maroantsetra, há mais de sete anos. Há muitos novos operadores inescrupulosos na indústria, diz ele. O setor está atualmente cheio de dinheiro.
“É a ganância dos grandes patrões que está causando o problema. As pessoas obtêm grandes adiantamentos, embora ainda nem tenham feito o plantio. Depois, precisam roubar a baunilha das plantações dos outros para atender as encomendas.”
A baunilha movimenta a economia da ilha
Mas, para os produtores que conseguem proteger suas colheitas, uma boa safra em um ano de preços altos podem mudar a vida de um agricultor.
Um quilo de fava curada vale entre US$ 400 (R$ 1,6 mil) e US$ 500 (R$ 2 mil)- uma quantia considerável em um país onde a renda per capita média anual é de US$ 1500 (R$ 6,2 mil).
Na aldeia de Ambanizana, é possível ver o dinheiro da baunilha na prática. É com ele que os pais conseguem pagar a mensalidade de escolas melhores para seus filhos, fora da aldeia.
Casas de tijolos modernas também estão surgindo onde antes existiam apenas moradias tradicionais de madeira.
Há um grande canteiro de obras às margens da aldeia. O encarregado da obra revela que a construção é de uma discoteca e restaurante, a primeira do tipo em Ambanizana.
O dono do projeto é um “baunilhionário”, alguém quem fez dinheiro tanto como produtor quanto como atravessador do produto.
Os agricultores podem estar ganhando mais do que antes, mas seus pequenos lotes de terra produzem quantidades limitadas. Quem realmente está fazendo fortuna a partir da cultura são os atravessadores e exportadores.
A dificuldade de acesso às regiões produtoras significa que elas são uma parte essencial da cadeia de suprimentos.
Os homens que fazem a intermediação das vendas viajam pelas aldeias, comprando grandes quantidades de vagens de baunilha para vender a empresas exportadoras que as curam e enviam para o mundo todo.
O maior edifício de Maroantsetra é a sede de uma dessas exportadoras. Pintado de branco puro com revestimento verde escuro, o prédio contrasta fortemente com as casas de madeira dos dois lados.
Até quatro toneladas de baunilha são exportadas pela empresa todos os anos. Câmeras de segurança traçam o caminho até o grande armazém na parte de trás do complexo. Grandes cadeados trancam os portões e barras de ferro cruzam as janelas.
Sylvan Chen administra o lugar. Eles revistam os funcionários no final de cada dia para garantir que nenhuma baunilha esteja sendo levada escondida em bolsas, sapatos ou roupas íntimas.
Ainda não está na época da baunilha, então, as mulheres que trabalham no andar de baixo do armazém estão atualmente peneirando cravo – outra especiaria exportada de Madagascar, mas nem de longe lucrativa como a baunilha.
O andar superior é onde a baunilha fica armazenada enquanto está secando. O espaço está cheio até o teto de colchões baratos de espuma.
Sylvan vendeu 2 mil deles no ano passado a agricultores, que preferem dormir assim do que em tradicionais tapetes de tecido. O valor que pagam por isso, no entanto, representa muitas vezes o que ganham pelo trabalho com a baunilha – e que dessa maneira acaba retornando à empresa.
Qualidade e reputação da baunilha e Madagascar estão ameaçados
O momento está bom para a indústria, agora que o preço da baunilha está nas alturas, reconhece Sylvan. Mas há o temor de que ganhos de curto prazo provoquem danos a longo prazo à qualidade e reputação da baunilha de Madagascar.
“A baunilha daqui é muito cara, e as pessoas podem recorrer a outros países que são dotados de padrões de qualidade. O setor de baunilha aqui pode não ter mais futuro se a qualidade não melhorar.”
Em uma lancha que cruza a costa às margens do Parque Nacional de Masoala, vejo trechos de terra nua cortando a floresta verdejante.
O guarda florestal Armand Marozafy e o ativista ambiental Clovis Razafimalala dizem que esse é o impacto no parque do aumento dos preços da baunilha.
Eles mostram outras partes da faixa costeira da floresta que foram queimadas para que plantações, principalmente de baunilha, sejam cultivadas. Dentro da floresta, as árvores que foram cortadas tinham mais de cem anos de idade.
Quando esse tipo de dano ocorre, um ecossistema frágil é afetado. Plantas, insetos e animais começam a desaparecer.
As pessoas em Madagascar estão preocupadas com a perda da reputação de sua baunilha, mas, no parque nacional, um ecossistema delicado está sendo seriamente prejudicado para atender à demanda global.
À medida que as árvores começam a desaparecer, as condições únicas que tornam este local perfeito para cultivar baunilha também começam a sumir. As florestas fornecem a quantidade certa de chuva, umidade e solo para cultivar a cobiçada baunilha de Madagascar.
Derrubar a floresta para plantar mais baunilha acabará por dificultar o cultivo do fruto de qualidade na ilha. A indústria terá de encontrar meios de garantir qualidade consistente, a fim de evitar que os compradores procurem o produto em outro lugar.
François Ravelonjara, produtor em Maroansetra, assume um ar de resignação enquanto marca um número de série na vagem de baunilha em sua pequena fazenda.
O número corresponde ao de seu “cartão de produtor”, registro que o governo distribui aos produtores para provar a posse e coibir o roubo. As marcações, entretanto, não impediram os ladrões de invadirem seu terreno duas vezes.
“Seria melhor se os preços caíssem de novo”, diz ele. “Não ganharíamos muito, mas pelo menos não vivemos com medo. “
Muitos produtores e comerciantes de longo prazo ecoam esse sentimento. Como o florescimento da flor da orquídea de baunilha, eles sabem que o boom atual não durará muito tempo. Mas os efeitos dele, sim.
Publicado originalmente na BBC News
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45245309