O modelo chamado de agrocaatinga tem se mostrado o mais produtivo e eficaz para aumentar a segurança alimentar das famílias do semiárido, gerar renda e preservar a vegetação nativa. Terras antes degradadas hoje produzem cerca de 50 tipos de alimentos, graças à combinação do sistema agroflorestal com técnicas de aproveitamento da água da chuva. As agrocaatingas surgiram da demanda comercial pelo maracujá-da-caatinga, fruta nativa que hoje rende até R$ 3.000 por safra para as famílias
Por Mongabay e Xavier Bartaburu, Colunista de Ecoa, de Uauá, na Bahia | 12/12/2023
Tem de tudo agora na roça de dona Perpétua. “Você tá vendo? Esse aqui é abacate, ali o mamão. Esse ano já peguei acerola. De tudo a gente planta uma coisinha. Cenoura, beterraba. Aqui eu plantei coentro. Aqui é pé de andu; a gente faz uma farofa muito gostosa com ele. Ali é umbuzeiro. Essa carreira aqui é só de maracujá. Aí na carreira do maracujá a gente planta o milho. Aqui no meio, quando chove, eu planto macaxeira. Alface não é muito — a gente se alimenta primeiro com ele e aí, se sobrar, a gente leva pra feira. Primeiro a gente, né?”
A mais orgulhosa produtora da comunidade de Serra da Besta, zona rural de Uauá (BA), vai mostrando cada planta, cada fruta, cada pé, como se fosse troféu. Não na estante, mas a céu aberto, tudo cravado no chão, lado a lado, como numa floresta, só que de comer. Onde antes se estendia uma terra estéril, que tudo que se plantasse fazia definhar, agora cresce uma lavoura próspera e diversa num espaço de somente 30 por 40 metros. Tão rara nestes sertões carentes de chuva que mereceu até placa na entrada: “Agrocaatinga”, é o que diz.
Em outras palavras, uma agrofloresta adaptada à caatinga. “A gente pensou em soluções de agroecologia que incluíssem técnicas de convivência com o semiárido”, explica o agrônomo Egidio Trindade, coordenador-geral do projeto implantado pela Coopercuc (Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá). O que, em essência, significa o máximo aproveitamento da água de uma chuva que só cai de quatro a cinco meses por ano. Em anos de seca, nem isso.
“Na semana passada, estava uma umidade relativa de 14% aqui em Uauá. Para você ter uma ideia, é a umidade relativa do Saara. Não dá para pensar num modelo de agrofloresta que seja de área úmida”, diz Egidio. Ainda mais numa terra como a de Perpétua Barbosa, que, antes da agrocaatinga, era praticamente desprovida de matéria orgânica. Quase zero de carbono – resultado da combinação de escassez de chuvas com décadas de exploração equivocada de um solo já não muito favorável.
“A gente plantava aqui, mas não prosperava. Não dava nada. Por quê? Porque a gente não sabia trabalhar”, diz Perpétua. Foram anos e anos capinando e queimando a mesma terra e plantando uma única cultura, quase sempre milho, mandioca ou feijão, até exaurir o solo. Tudo isso sem cisterna nem barragem. Se não chovesse, era preciso comprar água de um caminhão-pipa: R$ 250 para 7 mil litros, que não duravam mais que dois meses.
Egidio conta que, na primeira agrocaatinga que a Coopercuc implantou, na comunidade de Caladinho, o solo era tão ácido que já nem conseguia produzir: “Era praticamente terra morta, em processo de degradação. Hoje tem caju, manga, feijão, milho, abóbora, macaxeira…”.
Isso numa terra em tese pobre. Em áreas mais favoráveis, ele diz, o número de espécies alimentares agora ultrapassa as 50. Sem falar na quantidade de plantas: “Tem áreas em que a gente conseguiu botar 500 mudas”. Na de dona Perpétua, já são pelo menos 300.
E quando os umbuzeiros acabarem?
Segundo Egidio, a ideia da agrocaatinga nasceu de duas demandas. Uma era da L’Occitane, companhia francesa de cosméticos, que em 2018 procurou a Coopercuc – de quem já era parceira na produção de hidratantes à base de mandacaru – na intenção de investir em um projeto social focado no cultivo de maracujá-da-caatinga, fruta nativa do bioma. A outra era da própria cooperativa, e, mais que uma demanda, era na verdade uma inquietação: o que fazer quando os umbuzeiros acabarem?
A Coopercuc é pioneira no Brasil na produção em larga escala de derivados de umbu, também nativo, com a qual fabrica e revende pelo país doces, geleias, polpas, cachaças, cervejas e licores. A questão, como explica Egidio, é que “não tem mais umbuzeiros jovens na Caatinga”.
E isso é um problema porque todos os umbus que a Coopercuc usa em seus produtos são coletados direto na natureza, dado que o umbuzeiro (Spondias tuberosa) é uma árvore difícil de ser cultivada. “É uma planta muito lenta. Se não tiver o ciclo de chuvas completo, ela não vai se desenvolver”, diz Egidio, dando como exemplo umbuzeiros que a Coopercuc plantou há 20 anos e que ainda não deram frutos.
Toda a produção da cooperativa depende exclusivamente do extrativismo, o que envolve a concorrência com os bodes, que têm nas folhas do umbu sua comida predileta – justo as plantas mais novas, ao alcance de suas bocas.
Somadas as duas demandas, os técnicos da Coopercuc pensaram em criar áreas de cultivo que tivessem como foco imediato o maracujá-da-caatinga – que frutifica em menos de um ano -, mas com os umbuzeiros em vista no longo prazo, cultivados em ambiente controlado. E, no meio dos dois, o máximo de alimentos orgânicos que fosse possível plantar para manter cheia a geladeira das famílias e lhes proporcionar uma renda extra.
Hoje já são 33 agrocaatingas espalhadas pelo norte da Bahia. E além: uma cooperativa no Rio Grande do Norte já está implantando o sistema por lá.
“É como se estivessem no paraíso”
O sucesso, e o segredo, de uma agrocaatinga está na habilidade em manter a roça sempre úmida – aquilo que Egidio chama de técnicas de convivência com o semiárido. E esta é arte: um pacto firmado entre o engenho humano e os tempos da mata para ali encontrar a salvação da lavoura.
A técnica básica é o plantio em curvas de nível: fileiras (ou carreiras) paralelas de terra que se elevam alguns centímetros acima do terreno, onde uma mangueira goteja a água que recebeu da chuva, regando as plantas. Essa mesma água escorre para as concavidades entre as curvas de nível, ali se acumula e lentamente infiltra no solo. Na prática, um microrrelevo de vales e serras que nunca deixa a roça secar.
Se ela secar, por conta da falta de chuvas, recorre-se à chamada irrigação de salvação: toda agrocaatinga tem uma cisterna de 36 mil litros, igualmente alimentada pelas chuvas, que garantirá a água nos longos meses de estiagem.
“Para as plantas, é como se estivessem no paraíso”, resume Egidio. Porque, além de nunca morrerem de sede, elas também são continuamente nutridas por adubo orgânico. E por si mesmas. Num sistema agroflorestal, é fundamental podar as plantas para que folhas e galhos sejam devolvidos à terra na forma de matéria orgânica – isso ajuda a fixar o carbono e também a cobrir o solo e protegê-lo do sol do sertão.
Geralmente implantadas na forma de mutirão, as agrocaatingas levam no máximo três dias para estarem prontas – os tamanhos variam de 1,2 mil a 2 mil metros quadrados. Aí, em dois meses, já é possível colher hortaliças; em três, o milho. O maracujá-da-caatinga, em seis meses. E em um ano começam a frutificar os pés de acerola, abrindo caminho para as goiabas e graviolas. Em dez anos, espera-se que os primeiros umbuzeiros já estejam no ponto de ser colhidos.
Todas as plantas cultivadas juntas, as mais altas fornecendo sombras às mais baixas e todas nutrindo umas às outras, seguindo à risca a cartilha da agricultura sintrópica. Como explica Taiane Souza Costa, educadora social da Coopercuc, “na natureza, você não vê duas espécies seguidas. Dentro desses sistemas, a gente tenta fazer como na natureza.” Edigio complementa: “A natureza gosta de diversidade”.
Isso inclui espécies não produtivas da caatinga, em geral árvores de grande porte como angico, imburana e aroeira. Seu papel na agrocaatinga é ajudar na recuperação do solo, atuar como barreira contra o vento e, sobretudo, repovoar a região com vegetação nativa – ainda mais num bioma que vem sofrendo fortemente com o desmatamento e a desertificação.
Não é por acaso que muitas das agrocaatingas estão instaladas em comunidades que praticam também o recaatingamento, iniciativa que procura reservar áreas de vegetação nativa para deixar que a caatinga se recupere por si só. Na Serra da Besta, onde vive dona Perpétua, são quase 400 hectares conservados.
Maracujás mais próximos do céu
Nenhuma espécie endêmica, porém, é mais importante nestas agroflorestas sertanejas que o maracujá-da-caatinga (Passiflora cincinnata). Primeiro, por uma demanda de mercado, já que tem a compra garantida pela L’Occitane, que, com o óleo de suas sementes, faz uma linha de xampus e condicionadores. Da polpa que sobra, a Coopercuc fabrica doces, geleias e uma cerveja, a maratinga – receita inventada ali mesmo, na Serra da Besta, por um membro da comunidade.
Mas o chamado maracujá-do-mato tem se mostrado também uma excelente alternativa ao clima adverso do semiárido. Parente menor, mais doce e mais azedo que o maracujá comum, ele é também mais resistente às pragas e, sobretudo, à seca. “Tu pode passar um trator numa roça e deixar. Quando chove, ele nasce igual coentro. E no ano que ele dá é maracujá, viu?”, comenta Perpétua. Além disso, é um ótimo complemento à coleta do umbu. “O maracujá dá na safra que o umbu não dá”, diz ela.
Toda roça de agrocaatinga tem ao menos uma fileira só para ele, os frutos todos pendentes de um arame que vai de ponta a ponta. Se na mata o maracujá-da-caatinga cresce mais próximo do chão, esgueirando-se entre arbustos, aqui ele foi alçado ao status de parreira, cultivado tal qual cacho de uva, em sistema de espaldeira. Mais perto do céu, portanto.
“O maracujá nativo dá uma renda boa”, diz Egidio. “Tem produtores que chegam a tirar R$ 2 mil ou R$ 3 mil na safra.” Ele cita o caso de um produtor da comunidade de Caladinho que bateu recorde: em dois meses, vendeu mais de R$ 1.200,00 só de maracujá-da-caatinga. “E foi 100% com água de reúso”, acrescenta. Ou seja, uma roça inteira regada com a água usada para tomar banho e lavar louça – um passo além no esforço de tornar o projeto ainda mais sustentável.
Suco de verdade
Taiane ressalta que cerca de 80% das pessoas que produzem nas agrocaatingas são mulheres. “As roças em geral ficam perto de casa, então é um trabalho estratégico para elas”, diz. Uma atividade que, além de gerar renda, permite que ponham na mesa da família o alimento colhido e escolhido por elas. Até porque, na agrocaatinga, os únicos produtos obrigatórios são o maracujá nativo e o umbu. O que a produtora vai plantar no meio, é ela quem decide. “Enquanto ela não está colhendo o maracujá, ela está colhendo para o sustento.”
E é alimento orgânico e diversificado, fato inédito numa região acostumada a uma dieta à base de arroz, feijão, farinha e carne. “Agora você tem frutas, sucos, uma gama de verduras e legumes. Isso sem contar que essa produção é 100% agroecológica”, diz Egidio. Tanto que, como relata o agrônomo da Coopercuc, a agrocaatinga já está virando moda em Uauá: “Hoje a gente já pega agricultores vizinhos fazendo curva de nível, cultivo consorciado?”.
Agora definitivamente habituada à alimentação saudável, dona Perpétua diz que já nem consegue consumir a comida de antes, comprada em supermercado. “Quando eu vou pra São Paulo visitar minha filha, ela inventa de fazer um suco lá que não tem gosto de suco, não. Quando eu chego aqui e eu faço o suco, é outro sabor. Por quê? Porque o da gente é uma coisa orgânica, não tem tóxico dentro.”
A segurança alimentar e nutricional proporcionada pelas agrocaatingas impacta, inclusive, a própria população da cidade, que agora compra os produtos da agrofloresta na feira agroecológica que acontece em Uauá toda sexta-feira. É para lá que, toda semana, dona Perpétua leva o excedente da produção – em grande parte formado pela farinha de mandioca que ela agora consegue produzir em larga escala, resultado da eficiência do sistema agroflorestal somada à presença de uma casa de farinha móvel, toda mecanizada, que agora circula pelas comunidades da zona rural. O veículo é iniciativa do projeto Pró-Semiárido, do governo da Bahia.
“Dona Perpétua faz em média R$ 300 na feira por semana. Fora a fruta que ela vende para a Coopercuc. E tem a economia de supermercado, já que ela não compra mais macaxeira, milho, feijão”, conta Egidio. Agora, ela conta novamente com a venda para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciativa de combate à fome do Governo Federal, que voltou no primeiro ano de governo Lula depois de praticamente ser destruída nos governos Temer e Bolsonaro.
“Quando esse outro entrou, o Bolsonaro, cortou tudo, tudo. Agora tá voltando ao normal”, diz Perpétua. Quem confirma é Valdira Ferreira da Silva, coordenador do PAA em Uauá: “Da Perpétua a gente agora compra maracujá, mamão, aipim… São 17 produtos cadastrados”. Valdira diz que o município este ano tem R$ 457 mil disponíveis para comprar alimentos da agricultura familiar e doá-los a pessoas em situação de vulnerabilidade, o que ajuda a mover a economia local e fortalecer ainda mais o projeto das agrocaatingas.
A agrocaatinga é o projeto mais viável e sustentável para a nossa região”. À medida que a gente consegue que a família produza, a gente vai ter qualidade melhor de alimento, geração de renda e permanência das mulheres e jovens no campo. Além de tudo, vai conservar espécies nativas da Caatinga. – Taiane Souza Costa, educadora social da Coopercuc
No caso de dona Perpétua, a permanência é literal, de tanto que ela diz gostar de passar o dia na roça. “Eu até esqueço de ir na casa dos vizinhos. Minhas colegas vivem brigando comigo: ‘Você não vem na minha casa porque enricou’. É que no momento em que a gente tá lá, a gente tá se divertindo. É bom pra saúde, pra mente. Pra mim, é cuidar do que é da gente. Não tem felicidade maior que chegar lá, ver as plantas tristinhas, eu molhar elas e elas se alegrarem. Pra mim esse projetinho é uma terapia que a gente faz.”
*Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.