Como promover um atalho para um mundo sem fome

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Um fator crucial, frequentemente negligenciado na luta contra a fome, é a frágil governança global dos sistemas alimentares

Por José Graziano da Silva no Nexo | 04/05/2025

A fome global tem sido majoritariamente atribuída a conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas. Nos últimos anos, a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia agravaram ainda mais essa situação, interrompendo cadeias de suprimentos e elevando os preços dos alimentos. No entanto, outro fator crucial, frequentemente negligenciado na luta contra a fome, é a frágil governança global dos sistemas alimentares.

A maneira como os países e as organizações internacionais coordenam seus esforços para erradicar a fome tem um impacto direto na eficácia e sustentabilidade das políticas nacionais. Uma governança fragmentada e ineficiente enfraquece as respostas locais às crises, aumenta a duplicação de esforços e dificulta a prestação de contas nas iniciativas de segurança alimentar. Fortalecer a governança global das iniciativas de segurança alimentar e nutricional é, portanto, um pilar essencial de qualquer estratégia que vise um mundo sem fome.

Um relatório recente da Comissão Kofi Annan, intitulado Reimaginando a Governança Global para a Segurança Alimentar, traz luz a essa questão e apresenta um conjunto de recomendações transformadoras que exigem atenção urgente. O relatório destaca como o atual sistema de governança alimentar global carece de coordenação, transparência e eficácia, tornando-o inadequado para enfrentar os desafios interconectados do presente. A Comissão Kofi Annan propõe quatro mudanças fundamentais para aprimorar as estruturas de governança e torná-las mais eficazes. Essas recomendações, que apoio integralmente, traçam um caminho para uma resposta global mais eficiente à fome e à desnutrição.

A maneira como os países e as organizações internacionais coordenam seus esforços para erradicar a fome tem um impacto direto na eficácia e sustentabilidade das políticas nacionai

Em primeiro lugar, o relatório defende um maior alinhamento entre os esforços internacionais de segurança alimentar e a Agenda 2030, especialmente o ODS 2 (Fome Zero). Atualmente, a sobreposição de mandatos e iniciativas concorrentes dilui o impacto das ações. Uma proposta-chave é a criação de um Grupo de Governança Alimentar, reunindo organizações internacionais líderes como FAO (Food and Agriculture Organization), PMA (Programa Mundial de Alimentos) e Banco Mundial para harmonizar estratégias e fortalecer a prestação de contas. Além disso, o fortalecimento do CFS (Comitê de Segurança Alimentar Mundial) como um órgão independente, com recomendações baseadas em evidências, ajudaria a preencher a lacuna entre compromissos políticos e ações concretas.

Em segundo lugar, o relatório defende a prevenção em vez de respostas reativas a crises. Muitas vezes, a fome é combatida por meio de ajuda emergencial, em vez de soluções estruturais. O investimento na resiliência dos sistemas alimentares — por meio da promoção da paz em zonas de conflito, da ampliação de programas de proteção social e da garantia das cadeias de suprimentos alimentares — deve ser uma prioridade. Um Mecanismo de Proteção da Segurança Alimentar (FSPM, na sigla em inglês) poderia desempenhar um papel proativo na proteção das populações vulneráveis antes que as crises ocorram.

Em terceiro lugar, o relatório destaca a necessidade de reconhecer os alimentos como um bem público global, integrando a segurança alimentar às agendas globais mais amplas, como ação climática, políticas comerciais e sistemas financeiros. Atualmente, a alimentação e a agricultura recebem menos de 4% do financiamento climático global, apesar de serem grandes contribuintes para as emissões de gases de efeito estufa. Incorporar a segurança alimentar em estratégias de adaptação climática e em políticas comerciais mais justas é fundamental para a sustentabilidade a longo prazo.

Por fim, a inovação e a inclusão devem estar no centro das reformas de governança. Pequenos produtores e comunidades locais, frequentemente os mais afetados pela insegurança alimentar, precisam de uma voz mais forte na tomada de decisões. Incentivar investimentos sustentáveis do setor privado e garantir acesso equitativo a avanços tecnológicos também será essencial para a construção de sistemas alimentares resilientes.

Nesse contexto, a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, lançada durante a presidência brasileira do G20, representa um passo importante na direção certa.

A Aliança traz dois pontos essenciais para fortalecer o cenário de uma melhora da governança global. Primeiro, ela introduz uma “cesta de políticas”, reunindo experiências bem-sucedidas de segurança alimentar já testadas em diferentes países, identificando o que funciona e promovendo a troca de conhecimento entre as nações participantes.

Segundo, a Aliança faz um chamado explícito para a criação de sinergias com iniciativas globais anteriores de erradicação da fome. Nas últimas duas décadas, pelo menos 20 grandes iniciativas foram lançadas com objetivos semelhantes — construir sistemas alimentares sustentáveis e garantir dietas saudáveis para todos. No entanto, uma falha crítica de governança tem sido a falta de uma avaliação abrangente sobre o impacto efetivo dessas iniciativas: quantas pessoas foram alcançadas, como os recursos foram alocados e quais resultados tangíveis foram obtidos.

Muitas dessas iniciativas ainda possuem financiamento ativo, mas novos programas continuam sendo desenvolvidos em paralelo, muitas vezes com os mesmos parceiros e recursos. Essa ineficiência destaca a necessidade urgente de uma abordagem sistemática para a governança da segurança alimentar, garantindo que novas iniciativas sejam construídas com base em esforços existentes, em vez de duplicá-los.

Uma quinta recomendação fundamental que se poderia somar às do relatório da Comissão Kofi Annan é precisamente essa: uma avaliação completa das iniciativas passadas de segurança alimentar, analisando seu impacto e garantindo que os esforços futuros estejam estrategicamente alinhados. Sem essa abordagem, a governança global continuará fragmentada, e o progresso rumo ao Fome Zero permanecerá lento e desigual.

O relatório da Comissão Kofi Annan fornece um plano valioso para fortalecer a governança alimentar global. O desafio não é apenas alimentar os famintos de hoje, mas construir sistemas alimentares que previnam a fome amanhã. A governança é o elo perdido. Abordá-la não é apenas uma opção—é uma necessidade.

A Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza oferece uma oportunidade concreta para aplicar essas lições na prática. No entanto, sem uma liderança forte, mecanismos claros de prestação de contas e um compromisso com investimentos de longo prazo, corremos o risco de repetir erros do passado.

A voz globalmente reconhecida do presidente Lula na luta contra a fome o posiciona naturalmente para liderar a mobilização de esforços em prol do Fome Zero global. Como presidente da República do Brasil de 2003 a 2008, Lula liderou o Brasil na erradicação da pobreza extrema e da fome em menos de uma década e, agora, está reconduzindo o país de volta ao caminho certo após anos de desmantelamento das políticas de segurança alimentar dos governos dos últimos governos. Até 2026, ao final de seu terceiro mandato, caso decida não se recandidatar, Lula seria o nome ideal para assumir o desafio de se tornar a principal voz da Aliança Global contra a Fome, estabelecida sob a presidência brasileira do G20!

José Graziano da Silva é Diretor-Geral do Instituto Fome Zero

Publicado originalmente no Nexo
https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2025/05/04/mundo-sem-fome-governanca-global-opiniao