Por André Luzzi de Campos e Yamila Goldfarb | Julho de 2021
O Brasil é um dos países com maior concentração fundiária no mundo. Segundo dados do censo agropecuário do IBGE de 2017, a agricultura familiar representava 77% dos estabelecimentos rurais brasileiros. Este contingente de agricultores familiares ocupava uma área de 80,9 milhões de hectares, ou seja, 23% do total da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Mesmo com área tão reduzida, a agricultura familiar é responsável por 67% da força de trabalho ocupada na agropecuária. O mesmo censo identificou 51.203 estabelecimentos com mil hectares ou mais, o que representava apenas 1,0% do total; no entanto, concentravam 47,6% da área ocupada pelos estabelecimentos. Essa absurda disparidade é historicamente geradora de conflitos e pobreza para o país. A luta pela terra, pela infraestrutura nos assentamentos, pela educação no campo, pela assistência técnica, pelo acesso ao crédito, foram, entre outras, as bandeiras dos sindicatos e movimentos sociais do campo que historicamente lutaram para mudar esse quadro de desigualdade.
Neste sentido, a Declaração do Fórum pela Soberania Alimentar realizado na cidade de Nyélény, no Mali, afirma que: “A soberania alimentar é um direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentar e produtivo. Isto coloca aqueles que produzem, distribuem e consomem alimentos no coração dos sistemas e políticas alimentares, por cima das exigências dos mercados e das empresas. Defendendo os interesses de, e inclusive as futuras gerações (2007).”
É essa parcela da sociedade brasileira, agricultores e agricultoras familiares somados às comunidades tradicionais, povos ribeirinhos, costeiros e das florestas, que têm garantido não apenas a preservação dos biomas brasileiros, como o fornecimento de alimentos para a população brasileira. São estas pessoas que garantem o que existe de segurança alimentar e nutricional no país, apesar da falta de investimentos, falta de garantia de direitos como o acesso à terra, à água, falta de assistência técnica especializada e falta de infraestrutura tanto produtiva como de comercialização.
É importante compreender que a noção de segurança alimentar e nutricional envolve diferentes dimensões: disponibilidade, acesso econômico, social e físico, estabilidade, sustentabilidade e agenciamento. Estas duas últimas foram incluídas mais recentemente, devido à compreensão da urgente necessidade de transformações visando a criação de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, bem como instrumentos de engajamento dos indivíduos e suas comunidades nas políticas alimentares (GANESAN, 2020).
Podemos definir que uma situação de segurança alimentar e nutricional (SAN) ocorre quando as pessoas têm alimentos seguros e saudáveis disponíveis de forma ininterrupta e possuem condições, sejam elas econômicas, geográficas, sociais ou culturais, para acessar esses alimentos (LEÃO, 2013).
Analisemos os dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) 2017-2018, realizada pelo IBGE: entre 2017 e 2018, dos 68,9 milhões de domicílios no Brasil, 36,7% (o equivalente a 25,3 milhões) estavam com algum grau de Insegurança Alimentar (IA). Isso significava que quase 85 milhões de brasileiros se encontravam numa situação em que o acesso diário a alimentos seguros e saudáveis de forma permanente não estava assegurado, sendo que aproximadamente 10 milhões encontravam-se em situação de fome.
Segundo o grau de insegurança alimentar, tínhamos os seguintes dados: IA leve (24,0%, ou 16,4 milhões), IA moderada (8,1%, ou 5,6 milhões) ou IA grave (4,6%, ou 3,1 milhões).
Em 2004, os domicílios em situação de IA representavam 34,9% do total e em 2009 haviam caído para 21,8%, e para 13,6% em 2013. Graças a esses avanços, em 2014, o Brasil saía do chamado Mapa da Fome, uma lista de países elaborada pela ONU, nos quais constam aqueles em que 5% ou mais de sua população se encontra em situação de extrema pobreza.
Embora o Brasil não tenha voltado oficialmente para o Mapa da Fome4, dados da POF 2017-2018 (Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE) mostram que essa prevalência caiu para 63,3% dos domicílios, abaixo do observado em 2004. A IA leve teve aumento de 33,3% frente a 2004 e 62,2% em relação a 2013. Já a IA moderada aumentou 76,1% em relação a 2013, e a IA grave, 43,7%.
Observando os dados por região, temos que no Norte 43,0% dos domicílios se encontravam em situação de SA, e no Nordeste, 49,7%. Isso demonstra que menos da metade dos domicílios dessas regiões tinham acesso pleno e regular aos alimentos. Os percentuais eram melhores no Centro-Oeste (64,8%), Sudeste (68,8%) e Sul (79,3%) em situação de SA.
Considerando a alimentação por grupos, nota-se que têm aumentado as refeições fora dos domicílios, sendo que essa prática é mais comum nas classes mais altas (ultrapassando os 50% dos domicílios), enquanto nas classes mais baixas, já atinge cerca de 20% dos domicílios. Para estas, a refeição fora de casa consiste basicamente na alimentação escolar e nas refeições que os trabalhadores recebem nos seus locais de trabalho ou através do uso de cartões vale-refeição. Para as classes mais altas, as refeições fora de casa consistem em idas a restaurantes, lanchonetes, padarias, bares, etc.5.
As famílias mais ricas alocam menores percentuais de sua renda com o consumo de alimentos, ainda que, em termos absolutos, a despesa aumente. Segundo dados de 2018, quando o salário mínimo (SM) era de R$ 954,00:
Para as famílias com rendimentos de até 2 SMs, os gastos mensais com alimentação foram de R$ 328,74, representando 23,8% do consumo, enquanto as famílias com rendimento mensal superior a 25 SMs despendem, em média, R$ 2.061,34, o que significa 11,4% do consumo. Como é descabido pensar que as famílias ricas comam seis vezes mais que as pobres, pode-se inferir que os alimentos consumidos sejam mais sofisticados e de maior valor agregado (BELIK, 2020, p.9).
Em 2020, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) realizou um inquérito populacional visando analisar a Insegurança Alimentar no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19. O inquérito nacional baseou-se em amostra probabilística de 2.180 domicílios, representativa da população geral brasileira, considerando as cinco grandes regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) e a localização dos domicílios (áreas urbanas e rurais). Os resultados foram alarmantes. Do total de 211,7 milhões de habitantes, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar, dos quais 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de habitantes enfrentavam a fome. Conforme explicado pela Rede no relatório do Inquérito:
“Embora seriamente impactado pelo alastramento da pandemia da Covid-19, o agravamento da Insegurança Alimentar (IA) no Brasil revelado no inquérito ora divulgado é parte de um processo que já estava em curso de deterioração das condições de vida de um significativo contingente populacional e do aumento das desigualdades sociais. Entre suas causas, encontram-se os potenciais impactos na SAN das políticas de austeridade adotadas pelo Brasil desde 2014, acarretando redução de investimentos relacionados às políticas sociais.” (REDE PENSSAN, 2021, p.13).
Como podemos notar, nosso sistema agroalimentar é complexo e cheio de contradições. Possuímos um território capaz de gerar alimento saudável, de forma sustentável, para toda a população brasileira; possuímos famílias e comunidades cujo modo de vida gera alimentação saudável, possível de ser comercializada, mas que têm o acesso aos seus territórios ameaçado ou impedido; enfrentamos problemas crônicos de saúde pública, como diabetes infantil, sobrepeso e hipertensão, resultantes de uma alimentação rica em produtos alimentícios processados e ultraprocessados, açúcares e aditivos químicos; temos um ambiente cada vez mais contaminado por agrotóxicos, que também afetam populações do campo e das cidades. A lista poderia continuar. No entanto, o que pretendemos aqui neste estudo é mostrar como determinadas formas de articulação entre campo, florestas, águas e cidade, sem querer entrar na discussão sobre a necessidade de superar esses conceitos, podem nos ajudar a lidar com essas contradições e garantir a soberania alimentar da população brasileira, bem como o desenvolvimento sustentável e justo das comunidades e seus territórios.
Destinados à oferta, distribuição e comercialização de refeições ou de alimentos6, os EPSAN são classificados em: a) equipamentos de acesso à alimentação saudável e adequada e b) apoios ao abastecimento, distribuição e comercialização de alimentos. Essas são as duas frentes que este artigo pretende analisar, destacando as ações, programas e modelos que devem ser potencializados com vistas à redução da fome e garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.
Pensando nessas duas frentes, este estudo analisa, num primeiro momento, o sistema de logística, abastecimento, estoques e distribuição de alimentos do país, e como estes influenciam a regulação de preços e outras políticas de acesso aos alimentos pela população. Vale fazer uma observação: ainda que com o intento de uma abordagem sistêmica, não pretendemos contemplar aqui toda a complexa rede de políticas de combate à fome, dado o espaço limitado. Em seguida, abordamos parte do desmonte das políticas de combate à fome, mostrando onde se encontram experiências que deveriam ter sido potencializadas, como a articulação entre a agricultura familiar e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Na terceira parte, buscamos destacar o importante papel da sociedade civil na gestão das políticas de combate à fome e a importância dos espaços de participação, como Conselhos e Fóruns. Por fim, na quarta parte, abordamos a importância de se fortalecer circuitos locais de produção e abastecimento como resultado da articulação campo-cidade no combate à fome e promoção da alimentação adequada.
Publicação da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária) com apoio da Friedrich Ebert Stiftung