Por Sandra Weiss no RiffReporter | 15/09/2025
O agrônomo José Graziano da Silva demonstrou como a fome pode ser combatida com sucesso em seu país natal, o Brasil. Uma conversa sobre rótulos de advertência em embalagens, alimentos cultivados em laboratório e a luta contra o lobby internacional da agricultura e da alimentação.
José Graziano da Silva dedicou sua vida ao combate à fome. Seu trabalho combina ação política com estratégias de desenvolvimento social e econômico. O agrônomo, acadêmico e político brasileiro foi Ministro da Segurança Alimentar de 2003 a 2004. Durante esse período, iniciou e liderou o Programa Fome Zero, que tirou aproximadamente 28 milhões de brasileiros da pobreza e reduziu a desnutrição em 25%. Graças a esse sucesso, foi eleito o primeiro latino-americano a ocupar o cargo de Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2012. Durante seus sete anos de mandato, descentralizou a organização e envolveu a sociedade civil nas políticas alimentares e agrícolas. Hoje, Graziano dirige o Instituto Fome Zero, uma ONG que busca promover globalmente o objetivo da ONU de “fome zero”.
Entrevista com o ex-diretor-geral da FAO e atual diretor-geral do Instituto Fome Zero, José Graziano da Silva
Sandra Weiss: Sr. Graziano, a ONU acaba de retirar o Brasil do mapa mundial da fome. Esta é a segunda vez em 25 anos, ambas sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O senhor idealizou o programa Fome Zero e o implementou com sucesso no primeiro governo Lula. Pode compartilhar a receita para erradicar a fome?
José Graziano da Silva: Acho que o Brasil é um bom exemplo de como isso é, fundamentalmente, uma decisão política. Ao contrário da década de 1960, hoje temos os recursos necessários. Naquela época, a insegurança alimentar era predominante devido à escassez de alimentos. Simplesmente não havia comida suficiente para todos. Desde a Revolução Verde, o mundo produz mais do que o suficiente. O problema agora é a distribuição: muitas pessoas não têm dinheiro para comprar comida.
Weiss: Foi algo parecido quando Lula chegou ao poder em 2003. Que medidas o senhor tomou então?
Graziano: Basicamente, foram medidas macroeconômicas para criar empregos com melhores salários. Aumentamos imediatamente o salário mínimo e lançamos o Bolsa Família, um programa de transferência de renda voltado para os grupos mais vulneráveis, como mães solteiras ou famílias do interior do Nordeste. Essas famílias recebiam dinheiro em um cartão, com o qual podiam comprar alimentos básicos em supermercados.
Weiss: O senhor também queria que a alimentação fosse mais saudável. Como funcionaram essas iniciativas?
Graziano: Hoje, um dos desafios é garantir o acesso a produtos de qualidade. Criamos dois programas fundamentais, depois replicados com sucesso na África:
- Programa de alimentação escolar, que destina 30% das compras – sobretudo de produtos frescos – a agricultores familiares. O Estado paga um adicional por alimentos orgânicos, garantindo que as crianças recebam refeições mais saudáveis nas escolas.
- Programa de abastecimento das periferias urbanas com produtos frescos e de qualidade. Nessas áreas, frutas e verduras são difíceis de encontrar; predominam lanchonetes que vendem refrigerantes, hambúrgueres e ultraprocessados. Por isso, criamos feiras locais onde agricultores vendem diretamente ao consumidor, com preços acessíveis.
Weiss: Mesmo assim, o Brasil enfrenta, como outros países da América Latina, um grande problema de obesidade. Depois de muito embate com a indústria alimentícia, países latino-americanos tornaram obrigatórios rótulos de advertência em alimentos ricos em açúcar, sal e gorduras. Como o senhor conseguiu vencer a resistência da indústria?
Graziano: O pioneiro foi o Chile, em 2016, com a melhor lei, na minha opinião. O Brasil só seguiu em 2022, de forma atenuada. No Chile, além dos selos de advertência, há restrições à publicidade: personagens infantis foram banidos das embalagens; produtos ultraprocessados devem ficar em prateleiras altas ou baixas, fora do alcance das crianças; e não podem ser anunciados em rádio ou TV.
A resistência maior veio das multinacionais. Mas, na fase de testes, vimos que empresas que cumpriam as regras tiveram melhores vendas. As outras, ao perder mercado, acabaram cedendo. Também usamos argumentos técnicos: na FAO, mostramos que era possível, por exemplo, reduzir o sal do presunto de Parma sem alterar significativamente o sabor.
Weiss: Muitos defendem que, diante da crise climática, precisamos de alimentos cultivados em laboratório. Isso é necessário ou apenas um discurso da indústria?
Graziano: Vejo os dois lados. Produzir alimentos sem precisar de terra, plantas ou água pode ser libertador em termos de recursos naturais. Como cientista, acho interessante. Mas, como consumidor, recomendo cautela: isso pode virar desculpa para vender produtos nada saudáveis. Precisamos de forte regulação antes de liberar tais alimentos ao consumo humano.
Weiss: Que conselhos o senhor daria a um governo que queira combater seriamente a fome e melhorar a nutrição?
Graziano:
- Informações objetivas: precisamos de dados sobre quantidade e qualidade de alimentos disponíveis em cada região. Isso evita desperdício de recursos.
- Priorizar vulneráveis: crianças e gestantes sofrem danos permanentes quando passam fome.
- Políticas combinadas: fortalecer o poder de compra via empregos e salários, mas também criar programas específicos para famílias numerosas, mães solteiras ou grupos marginalizados.
Weiss: Desde a pandemia, os preços dos alimentos dispararam na América Latina. Muitas vezes, produtos saudáveis custam mais que na Europa. O que está errado?
Graziano: É um problema de política fiscal. A agroindústria tem custos menores por usar agrotóxicos e fertilizantes importados sem tarifas, tornando seus produtos mais baratos que os da agricultura familiar ou agroecológica. Resultado: frutas, legumes e alimentos saudáveis saem mais caros que os ultraprocessados.
Weiss: O uso massivo de agrotóxicos no Brasil preocupa. O que fazer?
Graziano: Isso me preocupa muito – e também ao consumidor. Muitos dos pesticidas usados aqui são proibidos em outros países. Precisamos de leis mais rígidas, mas enfrentamos forte resistência da bancada ruralista no Congresso. A Revolução Verde já deu o que tinha que dar: agora é hora de repensar o modelo. Temos alternativas em agricultura orgânica e regenerativa, mas é preciso vontade política.
Weiss: O Brasil exporta frango orgânico, mas em pequena escala. Por quê?
Graziano: Porque custa mais caro produzir orgânicos. Precisamos de mais pesquisa para baratear e de subsídios a alimentos saudáveis, financiados por impostos sobre ultraprocessados – como já se faz em parte da Europa e no México. É possível, mas exige coragem dos governos.
Weiss: A agroindústria diz que só ela pode produzir alimentos suficientes para alimentar o mundo. Isso é verdade?
Graziano: Infelizmente, sob as condições atuais, sim. Mas isso não pode continuar. Precisamos de uma transição agroecológica, com menos agressão à natureza. Não acontecerá espontaneamente; só com políticas públicas fortes. A urgência é enorme: a natureza não aguenta mais esse modelo.
Weiss: O acordo Mercosul–UE pode favorecer o comércio mais saudável e sustentável?
Graziano: Se for aprovado no formato negociado há 25 anos, não beneficia ninguém. É preciso atualizá-lo, incorporando regulações ambientais e sanitárias. Hoje sabemos muito mais sobre os impactos de certos produtos.
Publicado originalmente no RiffReporter
https://www.riffreporter.de/de/international/welthunger-ernaehrungssicherheit-fao-graziano-da-silva-interview
