Apoiamos dados positivos na economia, mas queremos comida de verdade no prato do brasileiro
Por Marjorie Nogueira Chaves e Mariana Pedron Macário na Folha de S.Paulo | 26/12/2023
Na sua famosa fotografia “99 cent”, Andreas Gursky retratou um supermercado com inúmeras prateleiras da seção de alimentos, todas repletas de embalagens coloridas. A imagem a princípio fascina, mas um olhar mais atento mostra que aquilo é um mar de produtos industrializados, e sentimos um profundo incômodo.
O mesmo incômodo que sentimos com a reportagem da Folha “Commodities fortalecem indústria e Brasil vira ‘supermercado do mundo“, que louva a indústria da alimentação com uma lista de contribuições desse setor. Afirma que o Brasil se tornou o maior exportador mundial de alimentos industrializados e expõe outros méritos: geração de empregos, número de empresas e volume de exportação. E conclui que “sem a interferência estatal”, a indústria alimentícia está mudando a alcunha do Brasil de “celeiro do mundo” para “supermercado do mundo”. Os produtos que a reportagem menciona: “açúcar, proteína animal, óleo de soja e suco de laranja, derivados de trigo (como biscoitos), produtos lácteos e café, inclusive em cápsulas”. Que vitrine colorida!
Mas pedimos um olhar atento para aquilo que a matéria esconde: do outro lado do balcão estão problemas dramáticos para a saúde da sociedade brasileira. O Brasil tem índices alarmantes de fome, que atingem em especial famílias chefiadas por pessoas negras, por mulheres e aquelas com crianças menores de 10 anos. São 33 milhões de brasileiros desprovidos desse direito básico e mais da metade da população com algum grau de insegurança alimentar. Mas essa fome convive com um alto consumo de alimentos ultraprocessados, que tanto impacta o nosso sistema alimentar e deu origem ao termo nutricídio—cunhado pelo médico afro-americano Llaila Afrika para tratar da impossibilidade de acesso a alimentos com alto valor nutricional.
Em 2022, 93% das crianças de 5 a 9 anos consumiram alimentos ultraprocessados, como salgadinhos e bolachas recheadas. No período entre 2002 e 2018, a participação de ultraprocessados em nossa dieta foi de 12,6% para 18,4%. A compra de biscoitos e snacks no mercado está presente em 34% das notas fiscais, e os refrigerantes, em 67%. Devido ao baixo custo, a durabilidade na prateleira e a forma rápida com que são consumidos, os ultraprocessados são muito populares.
A compra de arroz e feijão é menos frequente, apenas 8% e 6%, respectivamente. “Nas comunidades periféricas tem gente que nem lembra mais o que é um brócolis“, nas palavras do empreendedor social Aziz Camali Constantino. Segundo reportagem recente desta Folha, sete em cada dez escolas de São Paulo estão cercadas por comida ultraprocessada, os chamados “pântanos alimentares”, o que, segundo especialistas, aumenta os riscos de obesidade, que só cresce: o contingente de brasileiros com obesidade grave aumentou 30% entre 2019 a 2022.
O problema é tão preocupante que um importante mecanismo de justiça tributária está prestes a ser votado no Congresso: o imposto seletivo para produtos que fazem mal à saúde —como refrigerantes— para desestimular seu consumo. Mas a dedicação dessa indústria em escapar desse mecanismo é uma ameaça a ser bem-sucedida, vide o espaço que sua defesa encontrou neste jornal. A matéria que aqui questionamos se soma a uma série de reportagens que seguem a mesma toada: de exaltar o livre mercado e o valor da grande produção de alimentos aliadas à de commodities, de forma pouco parcial.
O sucesso dessa indústria está ligado à dificuldade de acesso a alimentos saudáveis. Recursos valiosos, como terra, financiamento, subsídios e poder de influência na política, estão concentrados na indústria de alimentos, que produz em larga escala para exportação. Enquanto isso, o carrinho dos pequenos e médios produtores está vazio de apoio, cheio de juros altos e burocracia. E é esse segmento que coloca comida na nossa mesa.
Atuação e propostas da sociedade civil não faltam —enquanto escrevemos este texto, centenas de brasileiros estão reunidos na 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar debatendo e lutando por esta causa. Não somos contra a indústria de alimentos, mas é preciso ponderar que o sistema que permite seu sucesso cobra um alto preço e pede medidas justas. Queremos políticas públicas que gerem, sim, dados positivos na economia, mas que também coloquem comida de verdade no prato do brasileiro —comida produzida de forma justa, cultivada sem destruição e acessível a todos.
Marjorie Nogueira Chaves é Doutoranda em política social e mestra em história pela UnB, trabalha nos campos dos estudos feministas e de gênero, dos movimentos contemporâneos de mulheres negras e da epistemologia feminista
Mariana Pedron Macário é Especialista em políticas públicas e combate às desigualdades nas organizações, é mestre em filosofia e teoria geral do direito e gerente de advocacy da Ação da Cidadania
Publicado na Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/12/falta-comida-de-verdade-no-supermercado-do-mundo.shtml