Blog do IFZ | 09/06/2025
Ao longo de quase quatro décadas, as palavras de Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega e arquiteta do conceito de desenvolvimento sustentável, mantêm uma pertinência inquietante. Em sua recente passagem pelo Brasil, durante o Global Agribusiness Festival (GAFFFF), Gro Brundtland não apenas reiterou os alertas de seu célebre Relatório Nosso Futuro Comum (1987), como também traçou um diagnóstico agudo do presente: vivemos uma década decisiva, com pouco tempo restante para evitar o colapso ambiental e social. A COP30, que será realizada em Belém do Pará, em novembro, surge como um marco potencial — não apenas de virada climática, mas de virada ética e civilizatória. E é o Brasil, com toda a sua complexidade, que se encontra no centro desse palco.
Pobreza, o poluente invisível
“A pobreza é o maior poluente”; esta frase-conceito, amplamente usada por Gro Brundtland — e, antes dela, por Indira Gandhi — encapsula uma das mais profundas e negligenciadas relações entre desigualdade e degradação ambiental. Não se trata apenas de retórica. A interseção entre escassez material e impactos ecológicos opera em múltiplos níveis: populações pobres, sem acesso a infraestrutura digna, frequentemente dependem de fontes de energia sujas, vivem em áreas ambientalmente vulneráveis e estão mais expostas a inundações, secas e doenças tropicais.
O paradoxo é cruel. São os menos responsáveis pelas emissões históricas de carbono que pagam o preço mais alto da devastação climática. As recentes enchentes no Rio Grande do Sul, que desalojaram meio milhão de pessoas, ilustram com brutal clareza esse ciclo perverso. A desigualdade ambiental não é um subproduto da crise climática — ela é o seu núcleo. Nenhum plano de transição ecológica será duradouro sem enfrentar, de modo sistêmico, as raízes estruturais da pobreza.
A produção agrícola como ameaça e esperança
Ao lado das emissões industriais e da matriz energética, a produção de alimentos figura como uma das grandes responsáveis pela emergência ambiental: cerca de 30% dos gases de efeito estufa são oriundos da forma como o mundo planta, colhe, embala, transporta e consome. O dado, embora alarmante, é revelador. Ele desloca o foco de culpabilizações abstratas e aponta para uma cadeia produtiva concreta, marcada por práticas exaustivas de monocultura, uso intensivo de fertilizantes fósseis e desmatamento em larga escala.
Mas há também, nesse cenário, uma possibilidade latente de reconfiguração. Gro Brundtland insiste: “Precisamos de uma transição urgente para sistemas alimentares regenerativos.” Isso significa transformar radicalmente os modos de cultivo, restaurar solos degradados, diversificar culturas, revalorizar práticas indígenas e tradicionais e integrar pequenos produtores à nova economia verde. O desafio não é meramente técnico. É, antes, um problema de governança, vontade política e compromisso coletivo.
Bioeconomia é a floresta em pé como resposta da natureza ao desenvolvimento econômico
O conceito de bioeconomia — economia baseada na utilização sustentável dos recursos biológicos — tem sido proposto como chave de transição entre modelos extrativistas e regenerativos. No caso da Amazônia, Gro Brundtland vislumbra um potencial concreto: a floresta, se protegida e valorizada como ativo estratégico, pode render até 8 bilhões de dólares anuais por meio de cadeias produtivas que respeitem sua biodiversidade e suas populações.
Essa proposta desafia paradigmas históricos. Em vez de enxergar a Amazônia como barreira ao progresso ou fronteira agrícola a ser conquistada, ela passa a ser compreendida como infraestrutura viva, cuja riqueza reside em sua integridade ecológica. O Brasil, ao adotar um modelo de bioeconomia inclusiva, pode não apenas conter a destruição ambiental, mas também redistribuir renda, criar empregos de futuro e reposicionar-se como potência ecológica global.
Entretanto, a transição para essa nova economia não ocorrerá por inércia. Ela exige planejamento integrado, acesso a crédito sustentável, pesquisa científica, infraestrutura tecnológica e, sobretudo, respeito às populações que há séculos habitam e cuidam dessas florestas. É um caminho mais exigente do que o da devastação — mas infinitamente mais fecundo.
O Brasil tem um papel histórico a ser assumido
Gro Brundtland advoga que, na diplomacia climática, poucas nações têm o capital simbólico e estratégico do Brasil. Do protagonismo na Rio-92 à liderança em mecanismos como o REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação), o país tem uma trajetória relevante. Mas a inércia das últimas décadas, aliada à expansão do desmatamento e ao avanço de interesses negacionistas, comprometeu seriamente essa reputação.
A COP30, portanto, é mais que uma conferência: é uma chance de reposicionamento histórico. Gro Brundtland afirma que o Brasil “tem a responsabilidade e a oportunidade de liderar esse processo”. Liderança, nesse caso, não significa apenas protagonismo discursivo, mas a capacidade de mobilizar compromissos ambiciosos, articular alianças entre países em desenvolvimento, pressionar o G20 — responsável por 80% das emissões globais — e oferecer exemplos de políticas públicas inovadoras.
Isso inclui desde metas rigorosas para redução do desmatamento até incentivos para a agricultura regenerativa e a bioeconomia. Implica também enfrentar os fluxos de desinformação que minam a confiança social e corroem o tecido democrático — outro aspecto destacado por Gro Brundtland como ameaça crescente.
Ao refletirmos sobre o futuro comum, não nos faltam diagnósticos, nem tampouco ferramentas técnicas. Falta, talvez, um senso de urgência moral e imaginação política. O Brasil, país de contradições colossais e possibilidades vastas, encontra-se mais uma vez diante de uma encruzilhada. E talvez seja justamente aí, na tensão entre a catástrofe e a esperança, que resida a potência de sua atuação no mundo. Como lembrou Gro Brundtland, o tempo é curto. Mas não é tarde demais.
Baixe aqui o documento “Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future“
