Josué de Castro inovou ao trazer explicações sociopolíticas para a fome e chegou a ser indicado três vezes ao Prêmio Nobel. Segundo especialistas, sua obra segue atual
Por Edison Veiga na Deutsche Welle | 24/09/2023
Logo depois que se graduou, o médico Josué de Castro (1908-1973) passou a dividir seu tempo entre o consultório e uma fábrica de tecidos no Recife — onde atuava como médico do trabalho. O patrão acusava os funcionários de indolência. Depois de examiná-los, Castro sentenciou: “a doença dessa gente é fome”.
O jovem médico acabou demitido da indústria. Mas o assunto, uma chaga do Brasil daquela época que persiste no Brasil do século 21, jamais saiu de seu foco. Morto há exatos 50 anos, Josué de Castro, continua sendo um intelectual necessário para a compreensão da pobreza brasileira, principalmente por seus livros Geografia da Fome, de 1946, e Geopolítica da Fome, de 1951.
“Ele deu início a uma longa tradição de estudos, mobilização e políticas públicas sobre o tema da fome, assim como são marcos do mesmo processo a campanha iniciada por Betinho [o sociólogo e ativista Herbert de Sousa (1935-1997)] e, em 2003, o binômio Fome Zero e Bolsa Família”, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social.
Professora na Universidade de Brasília (UnB), a enfermeira Helena Eri Shimizu destaca que Castro “mostrou a real fotografia da fome no Brasil”, revelando que “era um problema oriundo das desigualdades sociais”.
Geografia da Fome foi inovador porque demonstrou as origens socioeconômicas do problema, esvaziando as explicações deterministas, então vigentes, sobre a situação. “O livro examina os regimes alimentares de cada região brasileira e as possibilidades oferecidas pelos fatores naturais, destacando a organização das formas de propriedade e as relações de trabalho vigentes”, explica o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A fome, desgraça que aflige os seres humanos que ingerem alimentos insuficientes para suprir as necessidades da vida, é tratada como consequência da organização econômica, política e social, não simplesmente como sensação fisiológica devida à carência de oferta, por exemplo.”
“Até então a fome era vista principalmente como um episódio crítico, uma crise que era atribuída a fenômenos naturais, como uma seca, ou temporários, como uma guerra”, contextualiza a historiadora Adriana Salay Leme, que recentemente defendeu seu doutorado sobre a obra de Castro. “No livro, ele sintetizou as discussões da época mostrando que essa fome provocada por uma crise, que ele chamou de fome epidêmica, não era mais importante que a fome endêmica. Por fome endêmica, ele entendia um fenômeno cotidiano e menos intenso, que podia não matar por inanição, mas que matava lentamente a população por doenças associadas.”
Leme acrescenta que o médico foi bem-sucedido em seus esforços para “divulgar esse alargamento do sentido de fome”. “Aí, tem algo essencial para pensarmos a fome nos dias de hoje: a ligação entre acesso aos alimentos e renda. A renda é um fator determinante para a capacidade de acessar alimentos de uma família e isso fez com que ele ligasse o olhar para a fome com pobreza e não com os fenômenos naturais”, diz ela.
Em Geopolítica da Fome, Castro levou o tema para uma escala mundial, novamente desnaturalizando a pobreza e explicando os fatores geográficos, biológicos, culturais e políticos que levam à fome. Mendes enfatiza que o livro “sepulta” a ideia de que o aumento populacional da Terra implicaria em oferta insuficiente de recursos.
“Na obra, há uma análise da lógica de funcionamento do sistema alimentar mundial, formado na esteira do colonialismo e baseado na antiga divisão internacional do trabalho”, diz o professor. “Hoje, num mundo em que a agricultura é intensiva e voltada para a produção de commodities, sobretudo nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, fica fácil compreender que a fome das populações é devida a um processo que gera riquezas que ficam concentradas.”
Para Neri, a obra de Castro “é um divisor de águas”. “Embora escritos há quase 80 anos, sua mensagem continua atual. O mundo tem produção agrícola mais do que suficiente para alimentar toda a população. O mesmo valia e vale para o Brasil”, argumenta o economista.
“Ele mostrou que os interesses políticos e a concentração de riquezas são as verdadeiras causas do flagelo alimentar que condena indivíduos e sociedades”, sintetiza Mendes.
Carreira
Nascido no Recife, Josué Apolônio de Castro cresceu em uma região pobre da cidade, próximo aos manguezais. Queria ser psiquiatra. Começou a faculdade de medicina na Bahia e concluiu no Rio. A essa altura já havia decidido que em vez da saúde mental, cuidaria dos problemas decorrentes de má alimentação: especializou-se em nutrição.
Em 1932, segundo informações do Centro de Estudos Josué de Castro, o médico realizou uma ampla pesquisa sobre as condições de vida do operariado recifense. Mudou-se para o Rio e aos 28 anos foi admitido, concursado, como professor de geografia na então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nos anos 1940, empreendeu viagens de estudos sobre alimentação e nutrição em países como Argentina, Estados Unidos, México e República Dominicana. Em 1943 tornou-se professor de nutrição do curso de sanitaristas do então Departamento Nacional de Saúde. Em seguida, foi nomeado diretor do Serviço Técnico de Alimentação Nacional, depois rebatizado de Comissão Nacional de Alimentação.
Ele ainda ocuparia diversos cargos importantes. Foi deputado federal por dois mandatos, presidente do conselho executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e, em 1957, fundou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome. Quando veio o golpe militar de 1964, ele era embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) — acabou destituído do cargo e ficou exilado em Paris, onde morreu em 1973.
Nos últimos anos da vida, confessava sentir muita falta do Brasil. “Não se morre apenas de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas também de saudade”, chegou a afirmar.
Castro chegou a ser indicado três ao Prêmio Nobel: em 1954, ao de Medicina; em 1963 e 1970, ao da Paz.
Um problema que persiste
“O Brasil se destaca internacionalmente no tema desde Josué de Castro”, ressalta Neri. “E hoje ainda mais, pelo paradoxo de ser um grande produtor de alimentos.”
Mendes lembra que oito décadas atrás o país era majoritariamente rural e “ensaiava a sua transição urbana e industrial”. “De lá para cá muita coisa mudou para permanecer igual. Os humilhados da terra, sem direitos políticos, sociais e trabalhistas migraram para as cidades movidos pelo efeito demonstração de um mundo que prometia mobilidade ascendente”, analisa o sociólogo. “O resultado foi a formação de um tipo novo de pobreza nas periferias das grandes cidades, onde a vida é precária. É para essa gente que os leitores de Josué de Castro olham hoje. Eles são vítimas do passado e do presente, estão num mundo que insiste em não os incorporar como cidadãos plenos, com direito à dignidade da vida e ao desenvolvimento de seu potencial humano. A sua fome dói.”
A historiadora Leme vê “mudanças e continuidades” no cenário. “Hoje não temos mais populações se retirando do semiárido quando há uma seca prolongada. Uma das maiores secas que esse território já teve aconteceu entre 2012 e 2017, mas políticas fundamentais como o Bolsa Família e o programa de cisternas, além de uma circulação mais rápida do alimento, fez com que essas famílias pudessem se manter em seu território”, comenta.
“Isso quer dizer que a fome epidêmica do semiárido mapeada por Josué diminuiu. Ao passado que a fome estrutural, que ele chamou de endêmica, se manteve”, explica ela. “Se a fome é estrutural, é apenas mudando a estrutura que vamos combatê-la efetivamente.”