IFZ reforça sincronia entre as agendas de fome e clima em webinar da Cátedra Josué de Castro sobre a COP30

  • Tempo de leitura:6 minutos de leitura

Blog do IFZ | 26/11/2025

A COP30 consolidou uma mudança histórica: deixou de ser apenas uma conferência sobre carbono e metas técnicas para se tornar, de forma definitiva, uma conferência sobre pessoas, direitos e justiça social. No centro dessa virada estão a agricultura familiar, os povos e comunidades tradicionais e a compreensão, cada vez mais clara, de que fome e clima não são agendas paralelas — são a mesma agenda. Essa foi uma das principais mensagens de Emiliano Martinez Graziano, diretor de planejamento estratégico do Instituto Fome Zero (IFZ), durante o webinar “Entre promessas e caminhos: o legado da COP30 para a transição do sistema agroalimentar”, organizado pela Cátedra Josué de Castro.

Ao retomar o legado de Josué de Castro, Emiliano destacou que a fome não nasce da falta de alimentos, mas da falta de direitos, políticas públicas e condições dignas de vida. A COP30, na visão do IFZ, expôs exatamente isso: ao colocar a Amazônia como palco e ao permitir que movimentos sociais ocupassem massivamente a Zona Azul, Belém destacou a importância de a humanidade ser o foco fundamental da política climática. Territórios, culturas, desigualdades e modos de vida estiveram no centro do debate, reafirmando que a transição agroalimentar só será sustentável se for também justa — racial, territorial, social e economicamente.

Foi nesse contexto que a Declaração de Belém sobre fome, pobreza e ação climática centrada no ser humano ganhou repercussão. O documento, articulado pela Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, recolocou os ODS 1 e 2 como pilares da ação climática e reforçou o papel estratégico da proteção social, da agricultura familiar e da agroecologia.

Emiliano lembrou ainda que a transição climática não se fará apenas por “mecanismos de carbono”, mas também por políticas sociais robustas. E citou a importância de se antecipar aos desastres climáticos cada vez mais intensos com um argumento difícil de ignorar: cada dólar investido em proteção social adaptativa poupa cinco dólares em perdas e danos. Ou seja, é melhor prevenir vulnerabilidades do que pagar pela destruição.

O IFZ levou à COP também uma mensagem metodológica: para avançar, o mundo precisa aprender com seus próprios erros. Emiliano apresentou o estudo que deverá ser conduzido pelo IFZ, Ação da Cidadania e Instituto Comida do Amanhã sobre 15 anos de iniciativas globais contra a fome. As hipóteses de trabalho do projeto são claras: faltou coordenação, sobrou fragmentação e o impacto foi muito menor do que poderia ter sido. O objetivo é fornecer evidências para que a Aliança Global não repita os erros das 12 iniciativas anteriores lançadas após 2009, que não tiveram grandes êxitos. O projeto ainda precisa garantir o financiamento mínimo necessário para iniciar sua execução.

O webinar da Cátedra Josué de Castro contou com uma série de contribuições que ajudaram a compor o mosaico de significados e tensões da COP30, que destacamos a seguir.

Fernanda Marrocos, pesquisadora da Cátedra Josué de Castro, na abertura do evento, lembrou que Belém marcou um salto qualitativo na presença dos sistemas alimentares dentro da COP. A alimentação, antes invisível ou tratada como acessório às grandes agendas de energia e transporte, tornou-se tema de disputa, reflexão e proposição. A Cátedra já vinha apontando, em publicações anteriores, que a COP30 seria uma oportunidade inédita para o Brasil posicionar a transição alimentar como questão estratégica de clima. E, de fato, a sociedade civil brasileira abraçou essa chance com força e criatividade.

Foi seguida por Francine Xavier, do Instituto Comida do Amanhã, uma das articuladoras do movimento Café com Comida e do pavilhão Food, Roads and Routes, na Zona Azul. Ela qualificou a COP30 como um “golaço” para o Brasil, especialmente pela escolha da Amazônia como sede e pela abertura para a atuação da sociedade civil. Como exemplo, citou o Café com Comida: mais de 40 organizações brasileiras se organizaram, durante um ano e meio, para ocupar todos os espaços possíveis da conferência — pavilhões, Zonas Verde e Amarela, casas temáticas, submissões oficiais e até a Cúpula dos Povos. O pavilhão Food, Roads and Routes tornou-se um dos espaços mais pulsantes da COP, reunindo diariamente agricultores, quilombolas, indígenas, pesquisadores, juventudes e gestores públicos para debater o futuro dos sistemas agroalimentares sob a ótica do Sul Global.

Na sequência, Fabricio Muriana, do Instituto Regenera, trouxe a dimensão prática e simbólica do que significa disputar a COP “pela cozinha”. Ele relatou como a iniciativa Na Mesa da COP30 levou comida de verdade — da agricultura familiar e da sociobiodiversidade — ao restaurante da SócioBio, servindo cerca de quatro mil refeições diárias. Essa ação não foi apenas logística: foi política. Fabricio revelou que houve pressão da própria UNFCCC para incluir carne vermelha no cardápio, contrariando o espírito da iniciativa. A resistência da rede envolvida mostrou que práticas mais coerentes com o clima são possíveis, desejáveis e viáveis até mesmo em megaeventos. Para ele, esse episódio simboliza um desafio maior: ainda há um “business as usual” arraigado dentro da governança climática, e será preciso insistir em cada fissura para transformá-lo.

O panorama internacional ficou por conta de Patrick Caron, pesquisador do Cirad e ex-presidente do Comitê de Painelistas de Alto Nível em Sistemas Alimentares do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS). Observando a COP “de fora”, pois não esteve presente, Patrick destacou três pontos: o fato de a conferência ocorrer na Amazônia, região vista globalmente pela lente do desmatamento; a crise profunda do multilateralismo coexistindo com elogios à diplomacia brasileira; e a promessa de uma “COP da implementação” esbarrando em polarizações ainda mais fortes entre países. Para ele, Belém reforçou a necessidade de contaminar — no melhor sentido do termo — a inovação local presente nas políticas nacionais nas negociações internacionais. Só assim os sistemas alimentares poderão se tornar eixo articulador de agendas hoje tratadas em silos: clima, biodiversidade, comércio, saúde e desenvolvimento.

Fechando o evento, Arilson Favareto, professor da UFABC e titular da Cátedra, trouxe um alerta: a ascensão do tema dos sistemas agroalimentares nas COPs é concreta, mas não está garantida. Há risco de captura por narrativas que pretendem apresentar uma “transição limpa” sem enfrentar as contradições estruturais do modelo agroalimentar dominante. Favareto reforçou que o Brasil ainda carece de uma estratégia nacional de transição agroalimentar e que a ciência tem papel fundamental em explicitar paradoxos, trazer evidências e ajudar a coordenar esforços entre sociedade civil, ativismo, filantropia e formuladores de políticas. A COP, afirmou ele, não deve ser lida como êxito ou fracasso, e sim como parte de uma disputa prolongada, na qual a busca por convergências — entre escalas, setores e atores — será decisiva.

Ao final, emergiu um consenso entre os participantes: a COP30 abriu portas inéditas, mas essas portas precisam ser mantidas abertas no ano que segue. O período até a COP31, na Turquia, será fundamental para transformar o simbolismo de Belém em política concreta, financiamento real e alianças duradouras. O IFZ, ao lado de parceiros estratégicos, seguirá atuando para que a transição justa dos sistemas agroalimentares não seja apenas promessa, mas caminho — um caminho construído com direitos, ciência, diversidade, agricultura familiar e coragem política.