É fundamental entender como a percepção da violência cotidiana afeta os resultados da economia e as questões sociais
Por José Graziano da Silva na Mídia NINJA | 06/03/2025
A pesquisa do DataFolha, publicada em 15/02/25, mostrou que a aprovação do governo do presidente Lula desabou para 24% e é a pior de todos os seus mandatos. E a reprovação também é recorde: 41%. Segundo a matéria que acompanhou a divulgação dos dados, “O tombo demonstra o impacto de crises sucessivas pelas quais passa o governo, sendo a mais vistosa delas a do Pix. Ela ocorreu em janeiro, com a divulgação de que o governo iria começar a fiscalizar transações superiores a R$ 5.000 pela modalidade instantânea de transferência bancária. Ato contínuo, houve uma cobrança da oposição, sugerindo controle indevido, e uma enxurrada de fake news dizendo que haveria uma taxação do Pix. O governo ficou atônito e restou… revogar a medida. (…) Os problemas, contudo, continuaram.”
Na sequência, outra matéria se pergunta: “Como um governo que ostenta indicadores econômicos bastante razoáveis, com crescimento econômico decente e desemprego em níveis historicamente baixos, pode gerar tanta insatisfação popular?” (…) “A resposta, como sempre, passa pela economia, sobretudo pela inflação. Produtos de grande peso simbólico, como café e laranja, subiram nas feiras e supermercados e pegaram em cheio as classes médias e baixas.”
“Há algo maior do que isso, no entanto, e aí entra a própria figura de Lula, o que só alimenta a especulação de que ele terá de desistir da reeleição. Parece haver uma certa fadiga de material como presidente, que é agravada pelos seus recentes problemas de saúde, o etarismo de parte da sociedade e seu manancial inesgotável de gafes.”
“Gols contra, como a crise do Pix, turbinados por uma oposição que sabe amplificar polêmicas em redes sociais, passam a imagem de confusão e de que ninguém está no comando. Pior, retratam uma ‘casta’ (para usar um termo emprestado de Javier Milei) que quer apenas tirar dinheiro da população e entrega pouco em troca.”
Concordo que “há algo maior do que isso”, mas discordo que seja a figura do presidente. Esse algo maior – e pior, na minha opinião – é a violência cotidiana que afeta todos nós. Ela se manifesta desde a percepção de que “o tráfico ganha terreno em todo o país”, passando por assaltos de todos os tipos, desde roubos de celulares até grandes agências bancárias, coisa que só ocorreu antes nos tempos da luta armada contra a ditadura, além de um sem-número de fraudes e tentativas de golpes pela internet.
Infelizmente, esse componente da violência cotidiana, que permeia toda a percepção do cidadão comum hoje em dia, não é sequer mencionado pelos nossos comentaristas, que parecem presos à famosa e enganadora frase: “É a economia, estúpido!”.
Se retrocedermos às últimas pesquisas antes do “caso Pix”, pode-se verificar que a Quaest, por exemplo, apontava que o “principal problema” que vivia o país, na opinião dos entrevistados, eram economia, violência e questões sociais, empatados em cerca de 20% (considerando a margem de erro) ao longo de todo o período de julho a dezembro de 2024. A pesquisa Genial/Quaest, divulgada nesta quarta-feira (26/02), aponta que a violência é o problema mais grave nos estados do Rio de Janeiro (71%), Bahia (44%), São Paulo (34%) e Pernambuco (32%), entre os oito estados pesquisados.
É fundamental entender como a percepção da violência cotidiana afeta, além da confiança nos governos, também os resultados da economia e as questões sociais do país. Há um livro da CEPAL de 2010 (“América Latina frente al espejo: dimensiones objetivas y subjetivas de la inequidad social y el bienestar en la región“) que explorou, pela primeira vez, a relação entre dados objetivos, que refletem as condições econômicas e sociais (como crescimento do PIB, emprego, etc.), e dados subjetivos, medidos por pesquisas de opinião, que representam as percepções da população nos países da América Latina, com destaque para o Brasil.
O estudo concluiu que as desigualdades materiais afetam a forma como os cidadãos interpretam a realidade, mas essas percepções também são moldadas por fatores culturais, históricos e sociais. Dessa forma, políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade não devem se limitar à redistribuição econômica. É necessário promover a inclusão simbólica de grupos marginalizados, aumentar a transparência na gestão pública e reduzir a percepção de injustiça social. Também a percepção de conflito entre classes sociais é mais forte em países com maior concentração de renda na região, entre os quais o Brasil.
A análise da CEPAL mostra que, em países com menores desigualdades sociais, há uma relação mais forte entre crescimento econômico e sentimentos positivos sobre a economia. Em países com grandes desigualdades, mesmo melhorias econômicas significativas não resultam necessariamente em percepções mais otimistas e dependem da percepção da insegurança que vive a população.
A pesquisa destaca que a percepção de insegurança está relacionada diretamente à inflação e ao desemprego, sendo que a intensidade dessa relação varia em função do nível de desigualdade social existente em cada país. Mas podemos dizer que, quanto maior a violência cotidiana, maior a percepção dos grupos sociais mais desfavorecidos do impacto da inflação e do desemprego sobre sua vida. Ou seja, um mesmo índice de inflação ou desemprego pode ser aceitável para um segmento da população e insuportável para outro, dependendo da sua posição social.
A pesquisa também analisou a relação entre a desigualdade e a percepção de insegurança. As taxas de homicídios são mais baixas em países com menores desigualdades sociais, mas a percepção de violência varia significativamente. Em alguns países, mesmo com taxas de homicídios relativamente baixas, a população se sente extremamente insegura. Essa percepção é reforçada pelo medo do conflito social e pela experiência pessoal com crimes. Indivíduos que foram vítimas de delitos apresentam níveis mais altos de percepção de insegurança. Além disso, a desigualdade social amplia o sentimento de vulnerabilidade, tornando a segurança um tema central na percepção da qualidade de vida da população.
Outro aspecto destacado no estudo pioneiro da CEPAL é a relação entre a carga tributária objetiva e a percepção de justiça fiscal da população. Os resultados mostraram que não há uma correlação direta entre os impostos efetivamente pagos e a percepção de carga tributária, com exceção do Brasil, país que tem, de longe, a maior carga tributária da América Latina.
No entanto, há uma relação direta entre a hostilidade aos impostos e a desconfiança na gestão dos recursos públicos em todos os países da região. Nos países com maior desigualdade, como o Brasil, a principal razão apontada para a evasão fiscal é a corrupção, enquanto, em países com desigualdades menores, a queixa principal é a alta carga tributária, embora ela seja bem menor que no Brasil. Isso sugere que a aceitação dos impostos está mais ligada à percepção de um retorno justo em serviços públicos do que ao valor absoluto da tributação. A pesquisa da CEPAL mostra também que a confiança no governo afeta a aceitação da carga tributária.
Essa relação pode estar no cerne da explicação do episódio do Pix de janeiro no Brasil, refletindo uma desconfiança maior no governo, especialmente depois das idas e vindas da “tributação das blusinhas”. Além disso, contribui muito a percepção de uma “reforma tributária inconclusa”, que não deixa claro quando efetivamente entrará em vigor, nem a fase da mudança na tributação do consumo, que interessa mais aos pobres, e muito menos a fase seguinte, de tributação sobre a renda, que interessa mais aos ricos.
O aumento da violência cotidiana e a perda crescente de confiança no governo são duas faces da mesma moeda na desigualdade estrutural do Brasil. A percepção maior da inflação pelos grupos menos favorecidos não é a causa, mas a consequência disso. E o governo não vai recuperar a confiança da população enquanto não mostrar medidas efetivas de combate à violência cotidiana e não apenas promessas de mudanças no arcabouço legal, que não dizem nada para quem a sofre no dia a dia.
Publicado originalmente na Midia NINJA
https://midianinja.org/opiniao/inflacao-violencia-e-confianca-no-governo/
