ITR: o imposto esquecido que pode mudar o futuro fiscal e ecológico do Brasil

  • Tempo de leitura:6 minutos de leitura

Blog do IFZ | 09/07/2025

O novo relatório do Banco Mundial sobre o Brasil, “Dois por Um: Políticas para Atingir Sustentabilidade Fiscal e Ambiental”, apresenta uma proposta cuja simplicidade contrasta com a profundidade de seus impactos esperados: reformar o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). Longe de se tratar de mera reengenharia fiscal, a proposta busca redefinir a própria racionalidade que orienta o uso da terra no país. O documento é explícito: um ITR robusto, calibrado com base em critérios econômicos e ambientais atualizados, seria capaz de limitar o desmatamento, disciplinar o uso improdutivo da terra e, simultaneamente, aumentar a arrecadação pública com distorções mínimas sobre a economia.

A proposta do Banco Mundial parte de um diagnóstico contundente: o ITR, em seu formato atual, é um imposto essencialmente inócuo. Embora sua estrutura nominal preveja alíquotas que chegam a 20% para propriedades improdutivas, os critérios de produtividade são tão obsoletos — e o processo de autodeclaração do valor da terra tão permissivo — que o imposto médio pago por hectare no Brasil é de apenas R$ 6,20. Isso significa que toda a arrecadação anual com o ITR — cerca de R$ 3,1 bilhões em 2024 — é comparável à do IPTU de uma única capital de médio porte. Enquanto a Austrália arrecada o equivalente a 0,6% de seu PIB com impostos territoriais, o Brasil extrai apenas 0,03%, mesmo sendo uma das maiores economias agropecuárias do mundo.

A análise do Banco Mundial se ampara, entre outras fontes, em estudos recentes desenvolvidos no Brasil, notadamente o relatório Imposto Territorial Rural: Justiça Tributária e Incentivos Ambientais, do Instituto Escolhas. O documento estima que a atualização dos parâmetros de cálculo do ITR, alinhando-os ao valor de mercado e aos padrões produtivos contemporâneos, poderia gerar até R$ 15 bilhões em receitas fiscais adicionais — um valor cinco vezes superior ao arrecadado atualmente. Esse estudo serviu como subsídio técnico e empírico à modelagem de impacto do relatório, reforçando a viabilidade prática da reforma.

Mas o cerne da proposta não está apenas na arrecadação. A lógica do novo modelo tributário visa romper com a complacência estrutural do sistema atual diante da pecuária extensiva e da especulação fundiária. Ao tratar como “uso produtivo” a criação de gado com taxas de lotação de 0,15 cabeça por hectare — realidade em boa parte da Amazônia Legal — o ITR vigente legitima práticas de baixa eficiência, alto custo ambiental e mínimo retorno social. Um modelo tributário racionalizado, por sua vez, não apenas desincentivaria tais práticas, como também tornaria economicamente mais vantajoso conservar florestas ou utilizar técnicas de intensificação sustentável, como os sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta.

Entre os principais elementos da reforma proposta estão:

  • a adoção do valor de mercado como base de cálculo;
  • a progressividade das alíquotas conforme o tamanho da propriedade;
  • a aplicação de alíquota mínima mesmo sobre florestas em pé (para desestimular a retenção especulativa);
  • e a reclassificação das pastagens subutilizadas como improdutivas.
    Além disso, seriam exigidas comprovações de conformidade com o Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural, de modo a alinhar o incentivo fiscal com a legalidade ambiental.

Os efeitos estimados pelo modelo de Equilíbrio Geral Computável (EGC) utilizado pelo relatório são significativos. Nos cenários de reforma analisados, o desmatamento evitado até 2030 poderia alcançar até 5,26 milhões de hectares, com os maiores benefícios ambientais concentrados nos biomas Amazônia e Cerrado. Ao mesmo tempo, os impactos econômicos seriam irrisórios: a perda máxima de PIB seria de 0,01%, ou R$ 0,07 para cada R$ 1 arrecadado a mais com o novo ITR. Nos cenários mais ambiciosos, a arrecadação do imposto triplicaria, com efeitos redistributivos positivos — principalmente quando as maiores propriedades são mais oneradas, resultando em leve aumento da renda média das famílias mais pobres.

A modelagem do Banco Mundial também contempla alternativas híbridas, como a adoção de um “imposto de entrada” sobre a terra, vinculado às emissões de gases de efeito estufa. Neste caso, o imposto seria totalmente abatido por produtores que adotassem práticas de baixa emissão, criando um mecanismo de precificação indireta do carbono. Os resultados apontam para uma redução média de 25,5% das emissões do setor agrícola até 2050, com queda adicional de 5,8% nas emissões por desmatamento. O impacto sobre a produção seria marginal: apenas 0,6% de perda acumulada.

Além de suas implicações fiscais e ambientais, a proposta adquire um contorno institucional relevante ao sugerir que a eficácia do novo ITR está condicionada à reforma da governança fundiária. No Brasil, a sobreposição de cadastros, a falta de interoperabilidade entre bases de dados e a ausência de transparência nos registros fundiários são obstáculos persistentes para qualquer política territorial moderna. O relatório é enfático: sem sistemas robustos de titulação, interoperabilidade digital e validação cruzada de dados, nenhuma tributação territorial pode ser eficaz. Nesse aspecto, o relatório sugere que a expertise da Receita Federal na consolidação de grandes bases de dados deveria ser mobilizada para estruturar uma plataforma nacional de cadastro fundiário confiável.

O Banco Mundial tampouco ignora os desafios políticos envolvidos. Reformar um imposto que incide sobre grandes propriedades rurais, em um país com profundas desigualdades fundiárias e um Congresso sensível ao lobby do agronegócio, não é trivial. A proposta de progressividade tributária — que aumenta as alíquotas conforme o tamanho da propriedade — é particularmente delicada. Ainda assim, a modelagem do relatório indica que, mesmo com resistência localizada, o saldo ambiental, fiscal e redistributivo da reforma é amplamente positivo.

Em um contexto em que o Brasil tenta simultaneamente equilibrar suas contas públicas, cumprir metas climáticas internacionais e restaurar sua imagem ambiental, o ITR reformado aparece como um instrumento de convergência rara entre o equilíbrio fiscal e a integridade ecológica. Não se trata apenas de arrecadar mais, mas de reestruturar os incentivos que moldam o uso do território nacional. A terra, afinal, é também uma linguagem tributária — e a proposta do Banco Mundial é reescrevê-la com mais precisão, responsabilidade e inteligência.

Baixe aqui o estudo completo “Imposto Territorial Rural: Justiça Tributária e Incentivos Ambientais” do Instituto Escolhas
Baixe aqui o sumário do estudo “Imposto Territorial Rural: Justiça Tributária e Incentivos Ambientais” do Instituto Escolhas