Por Antonio Prado no Terapia Política | 01/01/2024
Os governos Lula são frequentemente criticados como neoliberais por partes da esquerda brasileira e por desgarrados do centro. Já nos dois primeiros mandatos este tema era recorrente.
À direita, era comum atribuir os bons indicadores econômicos à sorte e à adoção dos princípios da administração FHC, o chamado tripé responsabilidade fiscal, câmbio livre e política monetária baseada nas metas de inflação.
Sim, os dois primeiros governos de Lula, de forma geral, repousaram sua política econômica no famoso tripé. Mas, nos detalhes estão as diferenças fundamentais que tiveram como consequência resultados muito superiores aos do período FHC.
De fato, Lula adotou uma política de responsabilidade fiscal, mas abandonou a rigidez pouco inteligente do período anterior, que paralisava os investimentos públicos e tratava todos os gastos da mesma forma, sem priorização, sendo o serviço da dívida pública a única exceção. Os dois primeiros governos de Lula terminaram com uma redução importante da dívida pública líquida como proporção do PIB. Isto ocorreu não com corte dos gastos públicos, mas com aumento do PIB. Os gastos públicos cresceram, particularmente os gastos sociais, e mesmo assim, foi possível gerar os superávits primários tão caros ao Consenso de Washington, mas não em prejuízo do crescimento e dos compromissos assumidos nos programas de governo.
A política de metas de inflação foi mantida, mas com algumas mudanças em relação ao período FHC. Naquele governo, as metas de inflação eram descoladas das possibilidades reais da economia. Apesar da série de choques internacionais, que pressionavam os preços internos, o Banco Central perseguia metas de inflação cadentes e abaixo das médias históricas da inflação brasileira. Não conseguiu entregar a meta em nenhum dos anos de vigência desta política.
Como resultado dos debates dentro do próprio governo e na sociedade, no governo Lula, o Bacen seguiu um comportamento mais realista. Já no primeiro ano, 2003, reviu a meta prevista, que era de 3,5% para 8,5%. Como a inflação vinha acelerando nos últimos meses do governo FHC, o Bacen não chegou à meta revista, mas esteve próximo, o IPCA foi de 9,5%. E esta foi a última vez que a inflação ficou fora da meta. Na verdade, chegou a ficar longos meses abaixo da meta, o que sacrificou alguns pontos de crescimento do PIB e atraiu mais dólares, em um momento de forte liquidez internacional. Isto gerou uma sobrevalorização do real, que ajudou a controlar a inflação, mas por outro lado, diminuiu o dinamismo das exportações.
A política cambial foi de flutuação quase livre. Pressionado pela liquidez internacional e pela política monetária, o real subiu e se sobrevalorizou. Mas ao contrário do que era a mentalidade neoliberal da época, o Bacen seguiu política diversa da cartilha neoliberal. Ao invés de permitir uma queima de reservas internacionais, pois os neoliberais defendiam que em política cambial livre, não há necessidade de acúmulo de reservas, o Bacen operou contra a supervalorização do real acumulando reservas e corrigindo a volatilidade cambial por operações de hedge, através de swaps no mercado cambial.
Este comportamento do Bacen, apesar de sua composição majoritária de diretores neoliberais, ocorreu por pressão do governo, que entendeu que o acúmulo de reservas nos protegeria da vulnerabilidade externa típica de economias sem moeda conversível. Isto nos salvou da devastadora crise iniciada com a quebra do Lemann Brothers nos EUA.
Foi possível fazer política anticíclica por algum tempo. Em 2012, a segunda onda da crise financeira, que atingiu a Europa e desacelerou o crescimento chinês, já nos colocaria em outro contexto. Que foi grave, mas longe de ser devastador, por causa das reservas internacionais acumuladas nos governos Lula. A crise no segundo governo Dilma, 2015, foi resultado de erros crassos da política de Joaquim Levy e da sabotagem política sem precedentes no Congresso Nacional e que terminou no golpe parlamentar que derrubou a presidenta via um impeachment sem fundamento, ilegal. Mas este é assunto para outro artigo.
A política monetária foi diferente da realizada no período FHC, mas nem por isso as taxas de juros reais eram típicas de uma macroeconomia para o crescimento. Onde estava a diferença? A política creditícia nos dois governos Lula foi expansiva, com um crescimento do crédito como proporção do PIB de mais de 70%.
O governo Lula atuou fortemente para recuperar a capacidade de operação do sistema de bancos públicos, que estava a caminho da irrelevância e da quebra na gestão neoliberal de FHC. BNDES, Caixa, bancos regionais de desenvolvimento e Banco do Brasil tiveram um papel fundamental no aumento do crédito, chegando a ser responsáveis por dois terços do crescimento do crédito no período. O BNDES, que já vinha tentando ampliar sua carteira de crédito às empresas, desde as gestões Lessa e Mantega, chegou na gestão de Luciano Coutinho e com Mantega na Fazenda a ter um orçamento da ordem de US$100 bilhões, superior ao do BID e do Banco Mundial juntos.
Estas são apenas algumas das políticas dos governos Lula 1 e 2 que demonstram cabalmente a diferença com as políticas neoliberais de FHC, isto sem incluir outras políticas distributivas, como a do salário mínimo, do Bolsa Família e de dezenas de outras, que jamais estariam na cartilha neoliberal e do Consenso de Washington.
Com esta história, seria muito improvável que Lula, em seu terceiro governo, daria uma reviravolta neoliberal.
E não deu. Lula hoje opera com um Congresso muito mais complexo do que tinha em seus governos anteriores. O número de partidos é muito maior e há uma extrema direita ultraliberal organizada, fato inexistente nos períodos anteriores. FHC e sua base política eram neoliberais, mas não golpistas, pelo menos não da forma brutal que caracteriza o bolsonarismo.
Assim, o ambiente em que Lula navega exige cuidados redobrados na articulação política, coisa já expressa na escolha de um adversário histórico como Alckmin para a vice-presidência. E, após a vitória, no convite à Tebet e Marina Silva para compor o ministério. Não se trata apenas de se contrapor às políticas neoliberais, mas de defender a democracia e garantir a governabilidade. Isto explica o ministério com políticos que até há pouco eram parte da base do governo Bolsonaro. Um manejo delicado em campo adverso.
Os primeiros movimentos de Lula ocorreram ainda antes da posse e não foram em nada neoliberais. A equipe de transição negociou com o Congresso recursos adicionais para o orçamento de 2023, cruciais para a retomada do Bolsa Família, de vários programas sociais e para garantir investimentos do PAC. Foram R$168 bilhões a mais no orçamento enviado pelo governo anterior.
Lula assumiu com expectativas para 2023, aferidas pelo Relatório Focus do Banco Central, de crescimento do PIB de 0,8%, inflação de 5,31%, taxa de juros de 12,25% e dólar a R$5,27. Não que o mercado costume acertar muito em seus prognósticos, mas aqui errou em todos. O relevante naquele momento é que Lula iniciava seu terceiro mandato com o mercado apostando contra.
O Programa de Governo do Lula 3 aponta a reconstrução do Brasil como objetivo principal. Pode parecer retórica eleitoral, mas não é. Logo na primeira semana do governo, antes mesmo de nomear todo o segundo escalão do governo, houve uma tentativa de golpe de bolsonaristas, instigados pelo seu líder. Tomaram as sedes dos três poderes e vandalizaram as instalações. Isto simbolizou plenamente a necessidade de reconstruir o Brasil, tomado durante quatro anos por um grupo político decidido a destruir décadas de políticas públicas construídas em defesa da soberania nacional, da seguridade social, do patrimônio público e da democracia.
Ao criar a autonomia operacional do Banco Central, o governo Bolsonaro entregou o controle da política monetária nas mãos de diretores egressos de bancos privados que, pela porta giratória, para eles voltarão. Não se trata aqui de atribuir má fé a estes diretores, pois se estão prevaricando ou não, é um tema policial e não de doutrina econômica. A questão é que todos têm a mesma formação e interesses profissionais e tendem a ver os problemas econômicos sob a mesma ótica.
A política monetária atual é neoliberal. Mantém a taxa de juros reais em níveis altíssimos, que pouco caíram com a redução das taxas de juros nominais. Em 2023, gastaremos mais de R$700 bilhões de reais em juros, que estão no patamar inacreditável de 7,5% a 8% reais ao ano.
Esta política monetária aponta para uma inflação de 3,25% ao ano, valor muito abaixo das médias desde o Plano Real. Isto, em um momento em que houve um surto inflacionário nas economias desenvolvidas. Parece um erro semelhante ao do Bacen da era FHC – perseguir um nível de inflação que não é sustentável. Ao sinalizar inflações abaixo das possibilidades da economia, leva a política monetária a cair no círculo vicioso de taxas de juros reais que deprimem o crescimento econômico e a geração de empregos. E aqui se trata de mera constatação empírica. Não há inflação abaixo de 4% que perdure por muito tempo na economia brasileira.
Logo, a política monetária é neoliberal, mas não é do governo Lula, apesar de o CMN não ter revisto as metas para 2024 e 2025, o que me parece mais um movimento tático, em função das negociações do arcabouço fiscal e da reforma tributária no Congresso.
A política cambial continua sendo flutuante com intervenções pontuais para evitar excessiva volatilidade do dólar. Mas, como a política monetária atual é um prêmio para entrada de dólares, que se exacerba em um momento que o FED sinaliza que vai reduzir os juros nos próximos meses, o real vem se sobrevalorizando.
Com este movimento e com o saldo crescente das exportações, as reservas internacionais voltaram a crescer. Os indicadores mais diretos de vulnerabilidade externa estão bastante razoáveis, com CDS-5 a 135, agências de risco sinalizando a volta do investment grade e IDE vindo, apesar da queda em relação a 2022, que reflete mais a queda mundial do que fatores internos. O Brasil é o segundo país no ranking de receptores de IDE, depois dos EUA.
A política fiscal deste ano foi expansionista em função dos acréscimos negociados no orçamento de 2023. Já a política para 2024, preocupa. O ministério da Fazenda conseguiu vitórias significativas no Congresso com o novo arcabouço e a reforma tributária simplificadora. Mas, a insistência em manter um déficit zero para 2024, mesmo com a manutenção das renúncias fiscais sobre a folha de pagamentos, pode acabar exigindo cortes de gastos que irão comprometer a taxa de crescimento da economia. As estimativas de mercado e de agências multilaterais estão em torno de 1,6%. As do governo em 2,2%. O crescimento poderia repetir o número de 2023, de 3% e que também não era o esperado. Mas isto dependerá do volume da arrecadação, da provável revisão do déficit zero ao final do primeiro trimestre e do ritmo de redução da taxa de juros.
Há ainda a possibilidade de o sistema de bancos públicos voltar a ter um papel mais relevante na oferta de crédito. Isto, somado com os programas de renegociação de dívidas, crescimento real do salário mínimo, aumento do salário real numa massa de ocupados de 100 milhões de pessoas, poderá estimular a economia no curto prazo.
A sustentação do crescimento depende da recuperação das taxas de investimento, em torno de 16,5% do PIB, muito abaixo dos necessários 22% a 25%. O governo tem que estimular os investimentos através dos seus próprios gastos, do investimento das grandes estatais, principalmente a Petrobras, e do aumento do crédito via bancos públicos. Há um esforço de grande parte do governo neste sentido, liderado pelo próprio presidente Lula.
Não avalio que o governo Lula seja neoliberal, nem na sua pauta e tampouco nas suas ações. É um governo desenvolvimentista, mas constrangido por limitações estruturais políticas: por um Congresso Nacional dominado por uma oligarquia bastante conservadora e clientelista, e que negocia a um custo muito alto para os objetivos finais do governo; pela autonomia do Banco Central, que mantém na sua direção até o final de 2024 uma maioria de diretores neoliberais; e por uma sociedade dividida entre os delírios destrutivos da extrema direita bolsonarista e a reconstrução da trajetória de desenvolvimento soberano do Brasil.
As dificuldades do governo neste ambiente complexo devem ser mais um motivo para a renovação de nosso voto de confiança no seu compromisso com o objetivo de crescer distribuindo renda, incluindo os setores mais vulneráveis nas políticas sociais e cidadania, e com industrialização com sustentabilidade ambiental.
Antonio Prado é Doutor em economia, ex-funcionário da ONU Cepal e FAO, ex- professor da PUC-SP., foi assessor econômico da Liderança do Governo Lula no Senado Federal e servidor no BNDES. Trabalhou no Dieese por 23 anos e é membro do Instituto Fome Zero.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Publicado no Terapia Política
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