Por Phillippe Watanabe na Folha de S. Paulo | 26/09/2023
SÃO PAULO
Cerca de 16% da área ocupada por soja na amazônia e no cerrado está em fazendas onde há indícios fortes de irregularidades ambientais, segundo análise de entidades que estudam ocupação e uso do solo. Outros 58% têm algum grau de evidência de não seguir o Código Florestal brasileiro.
A soma das áreas de soja que estão em propriedades potencialmente não em conformidade com o Código Florestal, em vigência desde 2012, chegou a cerca de 14 milhões de hectares —de um total de 19 milhões— em fazendas cadastradas na amazônia e no cerrado em 2020.
Os dados são provenientes de um levantamento das organizações Trase e ICV (Instituto Centro de Vida) feito a partir da análise de autorizações para desmate em imóveis rurais de 2009 a 2020 (para desmatamentos ilegais anteriores a 2008, houve perdão na legislação).
A Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), por sua vez, diz que as indicações não necessariamente significam irregularidades. A entidade contesta a forma como parte dos dados do levantamento foi apresentada, mas concorda que é necessário que o setor avance em pontos citados no relatório das ONGs.
Os 16% da área de produção de soja que, segundo os autores, estão em fazendas com fortes indícios de irregularidade ambiental representam aproximadamente 3 milhões de hectares. O levantamento estima que cerca de 80% da produção derivada dessa área foi exportada: 44% para a China e 13% para União Europeia. Outros 19% devem ter seguido caminho para o mercado brasileiro.
As evidências mais fortes de problema ambiental foram atribuídas pelos pesquisadores aos locais em que houve tanto detecção de desmatamento não autorizado desde 2009 quanto um percentual menor do que o requerido de vegetação nativa na propriedade.
E os outros 58% com evidências menos contundentes se dividem em 40% com percentuais menores do que o necessário de vegetação nativa e 18% com desmatamento não associado a autorizações.
“Esse estudo mostra que o Brasil tem, no setor da soja, muito ainda a fazer para comprovar que a soja está em conformidade com o Código Florestal”, diz André Vasconcelos, líder global de engajamento da iniciativa Trase. “Muitas vezes o setor da soja empurra esse problema da não conformidade para o governo.”
Os autores do relatório levaram em conta a propriedade rural como um todo na sua metodologia, não somente a área das fazendas em que há, de fato, plantação de soja. Isso significa que, se houve qualquer desmatamento sem autorização em qualquer área da propriedade, isso foi tido como um indício de irregularidade, uma espécie de “contaminação” da soja lá produzida.
A Abiove contesta o uso de toda a propriedade para considerar se a soja está em conformidade ou não com a lei. Para a entidade, no entanto, quando encontradas irregularidades em uma propriedade, a soja daquela fazenda tem de deixar de ser comprada.
“O governo tem que entrar lá e dizer que aquele imóvel está ilegal, não eu. Eu controlo a soja, a gente rastreia a soja. Se o governo escrever que está ilegal esse imóvel, eu vou parar de comprar dele. Se o governo embarga área por desmatamento ilegal, a gente para de comprar. Embarga um pedaço do imóvel, a gente para de comprar”, afirma André Nassar, presidente-executivo da Abiove.
O relatório da Trase e do ICV aponta que, quando considerada somente a área com soja plantada, cerca de 95% (aproximadamente 18 milhões de hectares) da produção na amazônia e no cerrado em 2020 vieram de áreas com desmate zero —ou seja, sem derrubada— de 2015 a 2019.
Segundo Nassar, outro ponto de divergência metodológica diz respeito à fatia da exportação que teria sido afetada por possíveis irregularidades. Para ele, por terem sido levadas em conta as fazendas como um todo, o dado pode estar superestimado.
Ana Paula Valdiones, coordenadora do ICV, contesta a visão da Abiove. “Não tem como falar da regularidade ambiental da área específica da soja sendo que a legislação fala do imóvel rural”, diz.
TRANSPARÊNCIA E IMPLEMENTAÇÃO DO CÓDIGO FLORESTAL
Apesar das discordâncias, tanto o órgão setorial quanto as ONGs envolvidas no estudo concordam que a transparência de dados do uso da terra precisa melhorar no Brasil. Também estão de acordo que a implementação do Código Florestal precisa ir adiante.
Valdiones comenta, por exemplo, que, entre as propriedades que olharam, somente pouco mais de 1% tinha os registros de CAR no sistema federal analisados (para conferência da autodeclaração feita pelos proprietários).
Além disso, não há dados sobre compensações de reservas legais, como são chamadas as áreas das propriedades que devem manter, por lei, a vegetação nativa (em linhas gerais, 80% na amazônia e 20% no cerrado). Se essa regra não está sendo cumprida, é necessário entrar no PRA (Programa de Regularização Ambiental) e, por exemplo, regenerar ou compensar a área faltante em outro imóvel.
Conseguir informações mais detalhadas, especialmente sobre adesão ao PRA, é uma dificuldade, destacam os pesquisadores. “A gente precisa avançar também na transparência desses dados”, diz Valdiones.
É por esse motivo que Trase e ICV escrevem no relatório que foram encontradas potenciais irregularidades, por não poderem apontá-las com certeza —especialmente quanto ao deficit de reserva legal, uma vez que não se sabe se haveria compensação ocorrendo em outro local.
Em agosto, em uma audiência no Senado, a incompletude na implementação do CAR foi citada pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. “É hora de implementar o Código Florestal”, disse. “Sequer fomos capazes de fazer a correta tentativa e erro da implementação do Código Florestal.”
Os autores usaram dados de desmatamento, a base federal de CAR (Cadastro Ambiental Rural) e de autorizações para supressão de vegetação. Nem todos os estados, contudo, têm autorizações abertas para consulta, o que dificulta a conferência sobre regularidade ou não das propriedades.
Nassar defende que as autorizações para supressão de vegetação sejam diretamente vinculadas aos registros CAR das propriedades. Ele cita a iniciativa recente CSA Cerrado (Controle de Supressão Autorizada no Cerrado). “Toda vez que houver plantio de soja em área desmatada, depois de [1º de agosto de] 2020 no cerrado, nós vamos pedir para o produtor a autorização de supressão. Se ele não apresentar, perde mercado.”
A falta de transparência ainda existente pode levar também a dificuldades para o setor agropecuário no mercado internacional, ressalta Vasconcelos.
“Não sei como as próprias empresas vão conseguir comprovar sem ter que pedir informação para cada fornecedor, um a um. Esse é um ponto crítico. Isso vai impactar ou pode impactar as exportações da soja do Brasil para a União Europeia”, diz o especialista da Trase. “E a China está mandando sinais claros de que está começando a olhar para essa questão.”
A regularidade ambiental dos produtos agropecuários ganha ainda mais destaque neste momento em que a União Europeia implementa sua legislação que busca bloquear a entrada, em seus mercados, de produtos oriundos ou relacionados a desmatamento e a descumprimento de legislações ambientais.
Publicado na Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/09/milhoes-de-hectares-de-fazendas-de-soja-tem-indicios-fortes-de-problemas-ambientais-aponta-estudo.shtml