Nem mesmo a atualidade da emergência climática tem forçado os candidatos a colocarem o tema no centro de suas campanhas políticas – e isso independente do partido ou coalizão ao qual se vinculam
Julia Menin, Ingrid Marques, Paulo Niederle, Catia Grisa no Le Monde Diplomatique Brasil | 30/10/2024
Como sabemos, as mudanças climáticas, impulsionadas por atividades humanas, representam uma ameaça crescente e urgente à vida no planeta. Embora seja uma questão global, seus impactos são mais severos em cidades com baixa resiliência, onde a capacidade de adaptação é limitada. Para enfrentar a crise climática de maneira eficaz, é necessário um compromisso político robusto, uma governança integrada em múltiplos níveis e a implementação de instrumentos que fortaleçam a resiliência climática, apoiados por políticas públicas, financiamento adequado e conhecimento interdisciplinar.
Os municípios são peças-chave no enfrentamento aos efeitos da mudança do clima e necessitam estar atentos à formulação de políticas e planos de mitigação e adaptação adequados às suas realidades. O Governo Federal vem elaborando um novo Plano Clima, para o qual, conforme destacado pela Secretária Nacional de Mudança do Clima em evento realizado em Porto Alegre no dia 16 de setembro de 2024, estados e municípios terão papel fundamental na execução e implementação. Meses atrás, em abril, Porto Alegre foi atingida por uma enchente devastadora que afetou gravemente a capital gaúcha e os municípios vizinhos, forçando inúmeras pessoas a se tornarem refugiadas climáticas, uma realidade cada vez mais comum com o avanço do êxodo climático.
As eleições municipais são um termômetro que revela o grau de prioridade dado a diferentes temas tanto por parte dos(as) candidatos(as) quanto pela própria sociedade. Tendo isso em vista, buscamos identificar e analisar a presença das mudanças climáticas nas Propostas de Governo (disponíveis em plataforma do TSE) e nas redes sociais oficiais dos(as) candidatos(as) a um conjunto de prefeituras do Litoral Norte do Rio Grande do Sul (Torres, Mampituba, Morrinhos do Sul, Dom Pedro de Alcântara, Três Forquilhas, Três Cachoeiras, Arroio do Sal, Itati, Terra de Areia, Capão da Canoa, Maquiné, Xangri-lá, Santo Antônio da Patrulha, Osório, Imbé e Tramandaí). As publicações das redes sociais analisadas (informadas pelos(as) candidatos(as) no Portal do TSE), compreenderam o período de 19 de agosto, que marcou o início do período eleitoral, até 19 de setembro.
A Figura 1 relaciona a menção à mudança do clima pelos(as) candidatos(as) com o número de desastres ocorridos nos municípios desde o início de 2019 (a partir de dados da Plataforma Política por Inteiro, que monitora municípios em situação de emergência reconhecidos no Diário Oficial da União). Dentre o total de 41 candidatos(as) à prefeitura, somente nove citaram mudança do clima e, dentre estes, apenas cinco possuem uma política e/ou plano estruturado para o enfrentamento à mudança do clima. Cabe notar que apesar de muitos(as) candidatos(as) citarem iniciativas de gestão de risco, elas não foram consideradas nessa análise inicial se não estivessem claramente associadas à questão climática.
A informação é preocupante na medida em que os desastres têm sido mais frequentes do que inicialmente se previa. Na Figura 2, comparamos o número de desastres ocorridos desde 2019 (que em sua maioria são advindos de tempestades, enxurradas e alagamentos) com o índice de Desastres Geo-hidrológicos (índice de risco para inundações, enxurradas e alagamentos) disponível no site do AdaptaBrasil, ferramenta elaborada pelo Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças Climáticas do Ministério de Ciência e Tecnologia, do Governo Federal, como resultado do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima de 2016. Como é possível perceber, a recorrência de eventos climáticos extremos é alta inclusive em municípios para os quais os modelos preveem índices de risco baixo e muito baixo. Essa situação ratifica a importância de aprimorar os modelos para um melhor planejamento e antecipação de desastres, principalmente pensando em municípios de menor extensão e que não possuem aparato tecnológico e financeiro suficiente para a realização de estudos e previsão de eventos, como é precisamente o caso da maioria dos municípios da região.
Apesar das poucas menções às mudanças climáticas, alguns temas associados aparecem de forma indireta: a) gestão de resíduos e saneamento; b) educação ambiental; c) Alimentação (incluindo alimentação escolar orgânica e diversificada, hortas urbanas e segurança alimentar); d) gestão de risco (como sistemas de drenagem e Defesa Civil); e) agricultura familiar e/ou pesca artesanal (com foco em diversificação de produção e ampliação de feiras e mercados); e f) estudo e implementação de infraestrutura de energia renovável. Para análise, agrupamos tais iniciativas em duas dimensões: a) Políticas e/ou Iniciativas Ambientais (a;b;d;f) e Políticas e/ou Iniciativas para Alimentação, Agricultura Familiar e/ou Pesca Artesanal (c; e), pois entendemos que, políticas ambientais, alimentares e climáticas, apesar de não serem as mesmas, se interseccionam e se complementam.
No que tange à dimensão ambiental, mesmo nos municípios onde os(as) candidatos(as) não fizeram menção à crise do clima, como Santo Antônio da Patrulha, Osório, Tramandaí, Imbé, Mampituba, Morrinhos do Sul, Itati e Terra de Areia, há propostas ligadas à questão ambiental. Apenas os(as) candidatos(as) de Dom Pedro de Alcântara não mencionam ações vinculadas à questão climática nem ambiental (Figura 3). Neste grupo de ações, coleta de lixo foi uma constante, assim como o tema dos alagamentos no meio urbano, mas que não estão necessariamente vinculados à ocorrência de eventos climáticos extremos. No caso dos alagamentos, destacam-se as iniciativas voltadas à manutenção do esgoto pluvial. Apesar de relevantes, são propostas convencionais (“mais do mesmo”), que não incorporam alterações estruturais e medidas intersetoriais com capacidade de responder adequadamente à complexidade das mudanças climáticas.
Em relação às políticas ou iniciativas para alimentação, agricultura familiar ou pesca artesanal, destaca-se o tema da gestão de riscos para a agricultura, haja vista a relevância dos mecanismos de seguro agrícola em face dos desastres nas áreas rurais. Neste sentido, é interessante destacar que a EMATER realizou um levantamento sobre os impactos do ciclone ocorrido em maio de 2023 no estado. Dentre os municípios mais atingidos e com o maior número de perdas na agropecuária, segundo o relatório, estão Maquiné (52,2 milhões), Itati (6,6 milhões), Três Forquilhas (4,3 milhões), Três Cachoeiras (1,1 milhão), Santo Antônio da Patrulha (728 mil), Mampituba (690 mil), Dom Pedro de Alcântara (454 mil), Osório (451 mil), Morrinhos do Sul (260 mil) e Capão da Canoa (45 mil). As perdas somaram aproximadamente R$ 66,83 milhões, afetando um total de dez municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. As chuvas intensas causaram o transbordamento de rios, resultando em alagamentos e prejuízos à agricultura e pecuária. Houve destruição de lavouras, prejuízos em agroindústrias e morte de animais. Somente no município de Itati cerca de 267 famílias foram afetadas, com mais de 460 famílias permanecendo dias sem acesso à água. Já em Maquiné, o município mais afetado, cerca de 500 propriedades enfrentaram dificuldades no escoamento da produção.
Tendo em vista a forte correlação entre as questões climáticas e alimentar, na Figura 4 comparamos o número de desastres ocorridos desde o início de 2019 e as projeções da Plataforma AdaptaBrasil para Segurança Alimentar, a partir do Índice de risco de impacto para a chuva. Neste caso o sinal alerta está em municípios como Capão da Canoa, Maquiné, Itati e Morrinhos do Sul, que tanto apresentam um alto número de desastres como apresentam riscos médio ou alto para a segurança alimentar.
A Figura 5 articula especificamente a questão alimentar e as iniciativas das candidaturas para a agricultura familiar e/ou pesca artesanal, com os desastres recentemente registrados nos municípios. Neste caso, a preocupação com a questão alimentar parece mais bem distribuída e representada entre as candidaturas nos diversos municípios. Todos os municípios que registram um alto número de desastres possuem candidatos(as) com propostas voltadas a temas agroalimentares.
Algo que chama a atenção, mas não é impressionante tendo em vista a dinâmica da política dos pequenos municípios, é a inexistência de uma correlação entre a menção a mudanças climáticas e a vinculação partidária dos(as) candidatos(as). As propostas de governo que incluem o tema climático estão associadas a candidaturas que se situam em diferentes espectros do campo político, da esquerda à direita. Assim como ocorre com outros temas, a incorporação da questão climática parece mais relacionada com a trajetória do(a) candidato(a) e do grupo político local do que uma orientação que dialoga com os posicionamentos políticos mais gerais das legendas em âmbito nacional (Quadro 1).
Quadro 1 – Menção às questões climáticas de acordo com a vinculação partidária em municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
Outro aspecto relevante refere-se ao reconhecimento de que a crise climática agrava desigualdades sociais preexistentes, afetando desproporcionalmente comunidades que, historicamente, são as menos responsáveis pela crise ou portadoras de soluções, como povos indígenas, população negra, mulheres e grupos sociais vulnerabilizados. Contudo, as propostas falham em reconhecer as diferenças e não incluem a população tradicional da região, como indígenas e quilombolas, bem como desconsideram relações de gênero e raça ao debater a crise climática. No que tange aos espaços de diálogo político entre governo e sociedade, 24 candidaturas propõem a criação de fóruns para interação com agricultores familiares, ONGs e pescadores, além de incentivar iniciativas de associativismo e conselhos com a participação da sociedade civil. Entretanto, dentre os espaços de participação citados nos planos, poucos se referem à questão climática.
Em suma, é alarmante que no atual contexto um conjunto considerável de candidatos(as) sequer mencione explicitamente o termo “mudança climática” e suas variações, tratando o tema de forma tangencial e limitada. As propostas encontram-se ainda centradas em iniciativas de gestão de risco, resíduos e saneamento básico, o que não dá a devida centralidade à questão climática e sua interface global. Apesar do aumento dos eventos climáticos extremos, a crise climática ainda não é amplamente discutida como um reflexo de um modelo de desenvolvimento que exige mudanças estruturais urgentes, haja vista que estamos nos aproximando de maneira cada vez mais rápida dos pontos de não retorno. As estratégias de adaptação às mudanças climáticas devem incorporar questões como desigualdades raciais, sociais e de gênero, com urgente participação da sociedade civil. Finalmente, também é preocupante o fato de que a falta de prioridade dada ao tema pelos(as) candidatos(as) pode refletir a ausência do tema na lista de prioridades dos eleitores, pelo menos quando se trata da política local.
Todos os autores são vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Julia Menin é doutoranda em sociologia no PPGS, onde integra os grupos de pesquisa Sopas e Temas; Ingrid Marques é mestranda em dinâmicas regionais e desenvolvimento no PGDREDES, onde integra o Gepad; Paulo Niederle é professor do PPGS e PGDR e coordenador do Sopas; Catia Grisa é professora do PGDREDES e do PGDR e coordenadora do Gepad. Os dados apresentados foram coletados no âmbito do projeto Transição para Sistemas Alimentares Sustentáveis, financiado pela cooperação internacional francesa.
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/mudancas-climaticas-sem-mudancas-politicas/