O vácuo Trump

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Como Brasil e África do Sul têm a oportunidade de remodelar a ordem global

Por Mariana Mazzucato no Substack | 11/04/2025

Com a insanidade dos recentes anúncios de tarifas de Trump e suas reversões políticas imprevisíveis, a necessidade de demonstrar uma visão alternativa de cooperação e liderança global é mais importante do que nunca. É sobre isso que trata este Substack.

Com o recuo dos EUA da cooperação global, precisamos urgentemente de uma nova liderança para enfrentar nossos maiores desafios compartilhados. A ordem econômica existente já estava falhando antes mesmo do retorno de Trump – como evidenciado pelo progresso mínimo da COP29 em ações climáticas e pelo aumento da desigualdade global. Mas o recente anúncio de Trump de tarifas abrangentes, seguido por sua súbita retração, enviou ondas de choque pela economia global, demonstrando o que eu chamaria de “paradoxo Trump”: mesmo que seu governo crie um vácuo na liderança global, suas políticas erráticas consomem uma quantidade extraordinária de atenção e recursos mundiais. Como um vórtice poderoso, o nacionalismo econômico de Trump cria um vazio na cooperação internacional, enquanto suga a cobertura da mídia, análises econômicas e energia diplomática que poderiam ser direcionadas para resolver nossos desafios comuns.

À medida que olhamos para a COP30 em Belém e a presidência do G20 da África do Sul, são o Brasil, a África do Sul e outras nações ambiciosas que têm o potencial de preencher esse vácuo e transformar o cenário sombrio atual da cooperação econômica.

E não vamos esquecer que isso não é apenas teórico – é também prático e com relevância imediata. Os cortes à USAID, que, embora não sejam perfeitos em sua implementação e histórico, fornecem apoio crucial para saúde, educação e ajuda humanitária nas regiões mais vulneráveis do mundo, vão piorar os resultados em saúde e aprofundar as desigualdades. Os cortes indiscriminados de DOGE em instituições públicas vão enfraquecer a capacidade do Estado – em vez de criar um Estado ágil e empreendedor. E a introdução de tarifas indiscriminadas – que não são recíprocas, mas punitivas – vai prejudicar o desenvolvimento global, especialmente nas áreas mais vulneráveis. Em outras palavras, isso não é apenas conversa fiada – é real e exige uma resposta econômica igualmente tangível.

Um modelo econômico fraturado

A vitória eleitoral de Donald Trump reflete uma profunda insatisfação econômica. Como observei em meu recente artigo na Foreign Affairs, A Ordem Econômica Quebrada, esta eleição revelou um realinhamento eleitoral baseado em classe social impressionante: pela primeira vez em décadas, os americanos mais pobres favoreceram o candidato republicano, enquanto os mais ricos apoiaram os democratas. O desencanto da classe trabalhadora vem de um sistema econômico que, sob governos de ambos os partidos, concentrou riqueza no topo, permitiu o crescimento do setor financeiro em detrimento da economia real, prendeu as pessoas em ciclos de dívida e relegou o bem-estar de milhões a segundo plano.

As soluções propostas por Trump – tarifas punitivas, redução do governo e isolacionismo – provavelmente vão piorar esses problemas. Sua recente onda de tarifas sobre quase todos os bens importados vai aumentar os custos para os consumidores, com estudos estimando um custo adicional de pelo menos US$ 1.500 por pessoa anualmente para as famílias americanas. Enquanto isso, essas barreiras vão minar a capacidade estatal e desencadear instabilidade econômica global, como já vimos com a forte volatilidade do mercado e medidas retaliatórias da China e de outros parceiros comerciais. Vale lembrar que, no primeiro mandato de Trump, seu governo impôs tarifas significativas sobre importações globais de aço e alumínio, implementou várias rodadas de tarifas sobre produtos chineses, totalizando mais de US$ 300 bilhões, e retirou-se da Parceria Transpacífica, sinalizando uma grande ruptura com décadas de política comercial dos EUA. Essas medidas provocaram tarifas retaliatórias e causaram disrupção econômica para muitos agricultores e fabricantes americanos, levando a US$ 61 bilhões em pagamentos de socorro emergencial para amortecer o golpe.

Essa guinada preocupante reflete uma crise mais profunda no modelo econômico dominante que alimentou movimentos populistas globalmente. O momento exige não apenas crítica, mas uma visão alternativa coerente.

A promessa de novas coalizões globais

O ressurgimento do nacionalismo econômico dos EUA (sempre use “EUA” em vez de “América” quando possível) não precisa significar o fim da busca por um crescimento global inclusivo e sustentável. Na verdade, este momento de fluxo cria espaço para o surgimento e fortalecimento de novas lideranças e coalizões.

A agenda ambiciosa do Brasil para a COP30, que acontecerá em Belém, no coração da Amazônia, oferece uma dessas oportunidades. Como o embaixador André Corrêa do Lago articulou em sua recente carta como Presidente-Designado da COP30, o Brasil está convocando um “mutirão” global contra as mudanças climáticas. Esse conceito indígena de ação coletiva em prol de objetivos comuns capta perfeitamente o que nosso momento exige: um esforço cooperativo que transcenda fronteiras nacionais e interesses estreitos. Essa visão foi reforçada em uma poderosa carta conjunta recentemente publicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), o presidente Cyril Ramaphosa (África do Sul) e o primeiro-ministro Pedro Sánchez (Espanha). Os líderes enfatizaram que “2025 será um ano crucial para o multilateralismo”, alertando que “os riscos de fracasso são altos demais”. Eles destacaram que três grandes encontros globais – FfD4 em Sevilha, COP30 em Belém e a Cúpula do G20 em Johanesburgo – oferecem “uma oportunidade única para traçar um caminho rumo a um mundo mais justo, inclusivo e sustentável”. Eles defenderam que “o multilateralismo, quando ambicioso e orientado para a ação, continua sendo o veículo mais eficaz para enfrentar desafios compartilhados” e exigiram que essas reuniões resultem em progresso real, e não em mais do mesmo.

Mariana Mazzucato e o embaixador André Corrêa do Lago
Foto com o Embaixador André Corrêa do Lago, Secretário de Clima, Energia e Ambiente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e Presidente da COP30, durante nossa visita a Brasília para o lançamento do relatório sobre Transformação do Estado no Brasil. Discutimos como sua presidência da COP30 pode destacar a capacidade estatal necessária para alinhar crescimento econômico com ação climática.

A presidência do G20 pela África do Sul apresenta outra plataforma crítica. Sob o tema “solidariedade, igualdade e sustentabilidade”, o país está posicionado para avançar reformas essenciais nas estruturas financeiras e regras comerciais globais, tornando caminhos de desenvolvimento verde acessíveis a todos. Minhas recentes discussões com o presidente Cyril Ramaphosa e seus ministros na Cidade do Cabo revelaram seu compromisso em usar o G20 para impulsionar progresso significativo em estratégias industriais verdes, investimento público e reforma financeira. Essas discussões levaram à minha nomeação como Especialista Técnico da Presidência do G20 da África do Sul e Representante Especial do Presidente para a Força-Tarefa 1 do G20 sobre Crescimento Econômico Inclusivo, Industrialização, Emprego e Redução de Desigualdades, permitindo que eu contribua diretamente para moldar essa agenda crucial.

Essas oportunidades paralelas de liderança em 2025 representam o surgimento de um novo eixo de países com vulnerabilidades climáticas, mas também aspirações transformadoras.

Mariana Mazzucato e o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa
Minhas recentes discussões com o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e seus ministros na Cidade do Cabo revelaram o compromisso deles em usar a presidência do G20 para impulsionar avanços concretos em estratégias industriais verdes, investimentos públicos e reforma financeira. Esses diálogos resultaram na minha nomeação como Especialista Técnico da Presidência do G20 da África do Sul, permitindo que eu contribua diretamente na construção dessa agenda crucial.

Lições do TF-CLIMA do Brasil

No ano passado, tive o privilégio de co-presidir o Grupo de Especialistas da Força-Tarefa do G20 para a Mobilização Global Contra as Mudanças Climáticas (TF-CLIMA) ao lado de Vera Songwe, resultando no relatório final Um Planeta Verde e Justo. Esse trabalho oferece lições valiosas para o caminho à frente.

Um Planeta Verde e Justo
Mazzucato, M. & Songwe, V. et al. (2024). Um Planeta Verde e Justo: A Agenda de 1,5°C para a Governança de Políticas Industriais e Financeiras Globais no G20. Relatório Independente do Grupo de Especialistas da Força-Tarefa do G20 sobre Clima (TF-CLIMA), outubro de 2024. Instituto para Inovação e Propósito Público da UCL.

Nosso relatório destaca três prioridades cruciais:

  1. Estratégias industriais verdes, alinhadas às Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), para catalisar uma transformação econômica ampla.
  2. Reorientação dos sistemas financeiros, para apoiar essas estratégias – ampliando o espaço fiscal e garantindo que bancos de desenvolvimento forneçam capital paciente e de longo prazo para alcançar a meta de 1,5°C do Acordo de Paris.
  3. Estruturas de governança global com justiça e equidade no centro, para que todos os países possam participar e se beneficiar da transição.

O relatório desmistifica narrativas que bloqueiam a ação climática – como a ideia falsa de que combater as mudanças climáticas frearia o crescimento econômico. Na verdade, os dados mostram o oposto: indústrias verdes podem valer mais de US$ 10 trilhões até 2050 (mais de 5% do PIB global). Já os custos da inação são devastadores – mesmo limitando o aquecimento a menos de 2°C, o PIB global será 4,2% menor em 2050 em comparação a um mundo sem mudanças climáticas.

Também destacamos como estratégias industriais devem ir além de “escolher vencedores” e se tornar orientadas por missões, alinhando investimentos entre setores para resolver desafios complexos. Em vez de apenas subsidiar indústrias específicas, os governos devem estruturar suas estratégias em torno de metas claras (como as NDCs), catalisando transformações intersetoriais. Essa abordagem é mais eficaz para direcionar o crescimento e menos suscetível à captura por interesses privados.

Além disso, defendemos que a equidade deve estar no cerne das estratégias industriais e dos sistemas financeiros. Países de alta renda e com maior responsabilidade histórica nas emissões devem arcar com mais custos da transição. E a governança global de políticas industriais e finanças deve priorizar a justiça, garantindo que todos os países possam seguir rumo ao desenvolvimento verde.

O governo brasileiro já começou a implementar aspectos dessa visão por meio de sua estratégia industrial orientada por missões. Nosso relatório do TF-CLIMA delineia três prioridades que podem formar a base para novas coalizões internacionais: estratégias industriais verdes para impulsionar a transformação, reforma financeira para viabilizar a ação e governança global centrada na equidade.

A próxima Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), em Sevilha (junho/2024), oferece uma oportunidade imediata para avançar essa agenda – especialmente em reforma financeira.

Integrando ação climática e transformação econômica

A conexão entre ação climática e transformação econômica deve estar no centro dessa nova coalizão internacional. Como destacou o embaixador Corrêa do Lago em sua carta sobre a COP30, “…questões vistas como ‘problemas’ podem se tornar ‘soluções’ importantes.” A crise climática, frequentemente tratada como um desafio ambiental, representa, na verdade, uma oportunidade única para reformular sistemas econômicos que falharam em distribuir prosperidade de forma ampla.

A ênfase do Brasil nas florestas como solução climática exemplifica essa abordagem. Reverter o desmatamento e recuperar áreas degradadas pode remover gases de efeito estufa, ao mesmo tempo que cria oportunidades para uma nova bioeconomia e fortalece os meios de subsistência de comunidades indígenas. Da mesma forma, a experiência da África do Sul com seu Plano de Investimento para uma Transição Energética Justa mostra como a ação climática pode reduzir desigualdades históricas e gerar empregos de qualidade.

O Tropical Forest Forever Fund (TFFF) é outro exemplo dessa visão, buscando mobilizar US$ 125 bilhões de governos, fundos soberanos e investidores privados. O fundo investe em portfólios de alto risco, com retorno esperado de 5,5% em 20 anos – os investidores recebem seu retorno garantido, enquanto lucros excedentes (estimados em US$ 4 bilhões/ano) são distribuídos entre países com florestas tropicais para incentivar a conservação. Apesar da ambição, o desafio será convencer governos a aportar recursos além de doações simbólicas, aliando-se à filantropia privada.

Essas iniciativas enfrentam resistência de estruturas de poder já consolidadas. Em 2022, os subsídios a combustíveis fósseis consumiram, globalmente, US$ 7 trilhões. O sistema financeiro continua negando capital acessível a países que buscam desenvolvimento sustentável. Enquanto isso, crises de dívida reduzem o espaço fiscal justo quando investimentos em resiliência climática são mais urgentes.

Um dos maiores entraves à ação climática é a crise da dívida soberana que atinge o Sul Global. Em 2023, o endividamento externo de países de baixa e média renda ultrapassou US$ 29 trilhões, com quase 60% das nações mais pobres em situação crítica ou sob alto risco. Esse fardo financeiro sufoca a capacidade de investir em desenvolvimento sustentável.

A recém-criada Comissão Jubileu para Crise da Dívida e Desenvolvimento – iniciativa da Pontifícia Academia de Ciências Sociais e da Columbia University, da qual tenho a honra de participar como comissário, ao lado dos co-presidentes Joseph E. Stiglitz e Martín Guzmán – proporá reformas para garantir níveis sustentáveis de endividamento. Em 2025, ano do Jubileu na Igreja Católica, esse trabalho resgata o espírito do movimento que conquistou alívio da dívida há 25 anos, agora enfrentando uma crise ainda maior – em que a reestruturação da dívida é vital não só para o desenvolvimento, mas para a ação climática global.

O caminho à Frente: uma nova aliança global

Com o governo Trump recuando do multilateralismo, a necessidade de lideranças alternativas se torna mais urgente. A presidência brasileira da COP30 e os esforços de outras nações ambiciosas podem forjar uma nova aliança por ações climáticas integradas e efetivas.

O vácuo deixado pelos EUA traz riscos e oportunidades – o perigo do nacionalismo e de políticas fracassadas, mas também espaço para visões que desafiem a ordem econômica falida.

Como escrevi na Foreign Affairs, este momento “oferece a chance de enterrar o modelo econômico que privilegiou a criação de valor privado em detrimento do público e substituí-lo por uma ordem global mais sustentável e justa.” Essa transformação exige lideranças ousadas, dispostas a confrontar interesses arraigados e construir pontes entre divisões tradicionais.

A presidência do G20 pela África do Sul representa uma janela única para avançar essa agenda. Como Especialista Técnico da Presidência sul-africana e Representante para a Força-Tarefa 1 do G20, trabalharei com o governo para desenhar políticas que usem compras públicas, empresas estatais e bancos de desenvolvimento, a fim de alinhar transformação econômica com metas climáticas. A sintonia entre as prioridades do G20 – “solidariedade, igualdade e sustentabilidade” – e a agenda doméstica de reformas do país cria o cenário ideal para impulsionar uma governança econômica mais equitativa, onde todas as nações tenham espaço fiscal e acesso a financiamento viável para investir em desenvolvimento sustentável.

Na próxima semana, lançarei um manifesto com medidas-chave para a presidência sul-africana do G20, baseado em quatro princípios capazes de remodelar a governança econômica global. O documento traçará um caminho para a cooperação multilateral em um momento crítico, com o sistema vigente mostrando-se cada vez mais instável e injusto. Nos próximos meses, compartilharei mais detalhes aqui no Substack.

Enquanto o governo Trump se isola, a liderança do Brasil na COP30 e da África do Sul no G20 pode pavimentar o caminho para uma nova era de ação climática concreta – onde economia e meio ambiente não sejam rivais, mas aliados.

Baixe aqui o relatório “Um Planeta Verde e Justo

Mariana Mazzucato é professora na University College London, fundadora e diretora do Instituto para Inovação e Propósito Público (IIPP) da UCL, e autora dos livros O Estado Empreendedor, O Valor de Tudo, Missão Economia e A Grande Falácia.

Publicado originalmente no Substack
https://marianamazzucato.substack.com/p/the-trump-vacuum