O veneno em pacotes reluzentes: ultraprocessados causam obesidade, doenças cardíacas e morte precoce

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Blog do IFZ | 01/06/2025

Num mundo apressado, onde o tempo para preparar refeições cede lugar ao apelo das prateleiras repletas de conveniência, uma ameaça silenciosa se insinua entre rótulos coloridos e embalagens herméticas. Alimentos ultraprocessados — onipresentes em lanches, cereais matinais, refeições prontas e bebidas adoçadas — são hoje não apenas uma constante nas dietas modernas, mas também, conforme crescentes evidências científicas indicam, um fator de risco mensurável e preocupante para a saúde cardiovascular e a longevidade humana.

Essa constatação ganha novo e contundente respaldo em dois estudos de grande envergadura publicados pelo British Medical Journal (BMJ), que investigam as relações entre o consumo desses produtos e o risco de doenças cardiovasculares e mortalidade por todas as causas. O primeiro deles, conduzido por uma equipe franco-brasileira, baseou-se em uma pesquisa de longo prazo com mais de 100 mil participantes franceses adultos — uma das maiores já realizadas sobre o tema. Durante até dez anos de acompanhamento, os cientistas reuniram dados alimentares detalhados de 105.159 indivíduos, analisando seus hábitos com base em 3300 itens alimentares, classificados segundo o grau de processamento, como parte da já consagrada coorte NutriNet-Santé.

Esse mesmo banco de dados epidemiológico deu origem a estudos anteriores de grande repercussão, como o artigo Consumption of ultra-processed foods and cancer risk: results from NutriNet-Santé prospective cohort, publicado em 2018, que revelou associação entre o consumo desses produtos e o aumento do risco de câncer — sobretudo de mama. Agora, o foco recai sobre as doenças cardiovasculares, com resultados igualmente preocupantes.

O segundo estudo, oriundo da Universidade de Navarra, na Espanha, analisou quase 20 mil graduados universitários ao longo de um período semelhante, estendendo o escopo das evidências ao campo da mortalidade geral.

Uma dieta industrializada e seus custos

A essência dos achados é perturbadora em sua clareza. Na coorte francesa, um incremento de apenas 10% na participação de alimentos ultraprocessados na dieta diária associou-se a um aumento de 12% no risco de doenças cardiovasculares em geral, 13% para doenças coronarianas e 11% para doenças cerebrovasculares. As análises foram ajustadas para uma ampla gama de fatores — estilo de vida, qualidade nutricional da dieta, nível educacional e atividade física — e mesmo assim os resultados mantiveram-se robustos. Ao longo de mais de 520 mil pessoas-ano de observação, os dados revelaram um padrão persistente de associação entre esses alimentos e o adoecimento do coração e dos vasos cerebrais.

Na coorte espanhola, o risco de mortalidade geral entre os maiores consumidores desses produtos foi 62% maior em comparação com os que os consumiam menos. Notavelmente, esse risco crescia progressivamente a cada porção adicional consumida diariamente — uma evidência do chamado efeito dose-resposta, típico de relações causais.

O que são, afinal, os ultraprocessados?

Classificados pela escala NOVA, desenvolvida no Brasil, alimentos ultraprocessados são formulações industriais compostas por substâncias extraídas ou derivadas de alimentos — como amidos modificados, óleos hidrogenados, proteínas isoladas, corantes, emulsificantes, adoçantes artificiais e conservantes — e quase sempre enriquecidos com sal, açúcar ou gordura em excesso. Em geral, têm aparência e sabor altamente palatáveis, vida útil extensa e apelo visual potente.

Mas a atratividade desses produtos — de biscoitos recheados a bebidas energéticas, de sopas instantâneas a embutidos reconstituídos — oculta sua pobreza nutricional: são geralmente pobres em fibras, vitaminas e minerais, e ricos em calorias vazias e aditivos que, por vezes, ainda carecem de avaliação mais rigorosa quanto a seus efeitos cumulativos no organismo humano.

Uma ameaça que ultrapassa o colesterol

Embora os efeitos deletérios dos ultraprocessados sejam parcialmente explicados por sua má composição nutricional — excesso de açúcares livres, gorduras saturadas, sódio, ausência de fibras — os estudos publicados pelo BMJ sugerem que o perigo vai além das tabelas nutricionais. Os pesquisadores apontam hipóteses inquietantes: a presença de contaminantes formados durante o processamento industrial (os chamados neoformados), as interações com materiais de embalagem, e os efeitos sistêmicos de aditivos e emulsificantes sobre o microbioma intestinal.

Um artigo editorial que acompanha as publicações — assinado por cientistas australianos — alerta para essa complexidade e critica a atual ênfase de políticas públicas na “reformulação” de alimentos, como se fosse possível transformar um produto ultraprocessado em saudável apenas substituindo o açúcar por adoçantes ou reduzindo o teor de sal. Para eles, o caminho correto é outro: deslocar o foco para a promoção ativa de alimentos in natura ou minimamente processados, acessíveis e baratos.

Desigualdade alimentar e epidemia invisível

Além da dimensão individual, a avalanche de ultraprocessados traz implicações sociais e políticas. Em países como o Brasil, onde esses produtos já respondem por mais de 50% da ingestão calórica em certos estratos urbanos, o impacto sanitário é potencialmente devastador. O avanço da insegurança alimentar e a redução do tempo disponível para cozinhar criam terreno fértil para o domínio desses alimentos, cujo baixo preço e conveniência contrastam com os custos ocultos que impõem à saúde pública.

Mais do que uma simples escolha pessoal, o consumo de ultraprocessados se revela um fenômeno estruturado por interesses econômicos e pela lógica da indústria alimentar globalizada. Um sistema que transforma a alimentação — antes gesto cultural, comunitário e de cuidado — em mero ato de consumo veloz e automatizado.

Urgência em políticas públicas

Ambos os estudos reforçam a necessidade urgente de regulamentações que limitem a penetração dos ultraprocessados, especialmente em escolas, hospitais e ambientes de trabalho. Mais do que informar o consumidor, é preciso intervir nas cadeias de oferta, publicidade e subsídios, de modo a inverter a equação atual que torna o alimento saudável mais caro e o prejudicial mais acessível.

As implicações para os sistemas de saúde são igualmente graves. Num cenário de envelhecimento populacional e aumento de doenças crônicas, a persistência de uma dieta dominada por ultraprocessados significa pressionar ainda mais os orçamentos públicos com tratamentos caros e prolongados para enfermidades evitáveis.

Conclusão: voltar à comida de verdade

Em tempos de alta tecnologia alimentar, paradoxalmente, a recomendação mais moderna talvez seja a mais antiga: comer comida de verdade. Frutas, verduras, legumes, cereais integrais, grãos, alimentos preparados em casa, com ingredientes conhecidos — essa é a base de uma alimentação que nutre, protege e conecta.

Os dados do BMJ, assim como os do estudo Consumption of ultra-processed foods and cancer risk: results from NutriNet-Santé prospective cohort, não são apenas estatísticas frias: são sinais de alerta, advertências sérias de que o rumo atual da dieta ocidental nos conduz a uma epidemia de doenças crônicas e mortes precoces. Os pacotes brilhantes e sabores artificiais talvez enganem o paladar, mas não iludem mais a ciência.

E, diante do que agora sabemos, também não devem mais iludir a política.

Baixe aqui o artigo “Consumption of ultra-processed foods and cancer risk: results from NutriNet-Santé prospective cohort