Reforma Tributária: estado da arte e efeitos sociais, econômicos e fiscais

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Canal Youtube do Forum 21 | 16/07/2024

Transcrição da participação de Nelson Machado

Primeiro, eu acho importante compreender o processo que ocorreu nesses últimos dez anos. Porque se fala em reforma tributária, do ICMS, do ISS, o Chicão acompanhou, o Rubão também acompanhou isso há muito tempo, o Fernando participou junto. O ICMS e o ISS são tributos inviáveis. E com o passar do tempo, eles foram se tornando cada vez mais disfuncionais. O Brasil é praticamente o único país do mundo que separa a base para incidência tributária em mercadoria e serviço. Essa é uma distinção do século passado, da economia industrial, isso acabou. O que é serviço, o que é mercadoria, não se sabe mais direito. Hoje você leva uma impressorinha 3D para sua casa, imprime aquilo que você precisa, a peça que você precisa, o dente do dentista. Imprime em casa, compra o software. Então, isso é mercadoria, isso é serviço… Então, o sistema nosso de tributação estava e está muito disfuncional.

E essa disfunção leva necessariamente à insegurança jurídica, leva necessariamente a custos adicionais para preparar, estudar a legislação, registrar, informar o fisco, recolher advogado. Então, o chamado custo de complexo é cada vez maior. E por que se está se falando disso de 30 anos para cá, por que agora, nesses últimos 10 anos, tem um projeto que deu certo? Por que deu certo? Quer dizer, por que está dando certo? Está dando certo porque, primeiro, eu vou falar, obviamente, do ponto de vista de onde eu estou colocado, que é o Centro de Cidadania Fiscal. Nós construímos esse centro para discutir a reforma tributária e está no nosso site. Nós somos financiados pelas maiores corporações do país. Uma de cada setor, não tem nenhuma repetida e não tem nenhuma entidade, são empresas em si.

Por que elas estão financiando a gente? Por que procuraram a gente? Porque é o seguinte, olha, lobby nós temos, recurso para interferir nós temos, pedir incentivo nós temos, nós temos tudo. Nós só não temos um modelo que acabe com a guerra fiscal, acabe com a insegurança jurídica onde nós temos hoje 700 a 800 bilhões de reais sendo disputados no judiciário e no sistema administrativo. As empresas não aguentam mais. Os advogados que votariam disseram assim, olha. Eu não consigo, eu recebo investidor aqui. Eu não consigo explicar como é que é o ICMS. Como é que é o ISS? Só o Rubão que explica, mas ele não explica para muita gente. Ele é bem seletivo quando ele explica, não é Rubão? É impossível trabalhar nesse nosso sistema. Então, esse é o primeiro ponto, que acho que é o diagnóstico. O sistema está disfuncional, as empresas não suportam mais, e as administrações tributárias idem.

Dia desses, eu encontrei um amigo no aeroporto, perguntei, e aí, o que você está fazendo? Aposentei. Como, Rafael, que aposentou? Como é que você vai agora? Eu aposentei porque eu não entendo mais o ICMS. Quer dizer, um auditor fiscal com 35 anos de atuação diz que eu aposentei. Porque eu não entendo mais esse negócio. Não é possível. Então, esse eu acho que é um ponto relevante. O ponto relevante é esse. É de que o sistema é disfuncional. Ninguém aguenta mais. Chegou no ponto de ruptura. A guerra fiscal, em função da questão pertencer uma parte à origem, uma parte ao destino, alimentou uma guerra fiscal nos últimos 25, 30 anos, que fez com que a arrecadação recuasse, a arrecadação de todo mundo recuasse. É uma coisa impressionante, porque ainda mais depois das últimas medidas, onde apareceu o chamado incentivo-cola.

Outro dia, eu participei de um debate, e aí o secretário falou, não, é o incentivo-cola. Eu falei, que diabo que é o incentivo-cola? Não, Mato Grosso faz o incentivo, Goiás cola. Goiás faz o incentivo, Mato Grosso do Sul cola. Aí o outro… Enfim, você vai só reproduzindo e complicando o sistema e diminuindo, enfraquecendo a arrecadação desses impostos. Então, o Centro de Cidadania Fiscal, quando começou a trabalhar, a pensar o modelo, o primeiro grande trabalho que nós tivemos foi recortar a reforma. Porque o sistema precisa inteiro de reforma. O Imposto Sobre Consumo precisa de reforma, PIS, COFINS, ICMS, ISS, o Imposto de Renda precisa de reforma, o imposto do IPTU precisa de reforma, porque é um desastre você conseguir atualizar uma planta genérica de valores. Chicão já viveu isso, Rubão também já viveu isso. Então, o imposto em TCMD, doações, é um problema porque não era progressivo, porque não é claro a quem pertence a arrecadação quando o Decujus mora no exterior, enfim. Problema de toda a ordem. Imposto de renda, IVI. Problema de toda a ordem.

Nós tivemos que recortar. Nós optamos por recortar naquele tributo que nós entendemos que era o mais complexo, que mais atrapalha o funcionamento do sistema econômico, que é exatamente o imposto sobre o consumo, que é exatamente o PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS. Essa foi a razão. Por que escolhemos isso? Por causa disso. Ah, mas esse imposto não serve muito para fazer justiça social. É verdade. O melhor tributo para fazer justiça social é você cobrar imposto sobre grana e fortuna, cobrar imposto sobre propriedade, cobrar imposto de renda. Só que, para fazer isso, basta ter força política. Não precisa de grande coisa. Precisa ter um modelo conceitual, é óbvio. Mas não precisa ser grande coisa. Por quê? Porque é lei simples. Não é nem lei complementar, porque é um imposto de competência da União. O imposto de renda de competência da União. É só a União mandar e ter voto para votar. Com o cuidado de não piorar o que já está aí.

Então, dentro dessa avaliação, nós entendemos que o que era mais relevante era o imposto do consumo. Era construir um modelo sobre o consumo. E, nesse sentido, o que o Renato colocou bem é a proposta da PEC 45. Ela propôs um modelo. Qual era o modelo que ela propôs? Era um modelo que se baseava, primeiro, em princípios. Antes de começar a discutir como seria a legislação, como seria o modelo, ela discutiu qual era o princípio que a gente vai observar. Então, o primeiro princípio é o princípio da simplicidade. Se tivesse alguma lógica, algo no modelo que fosse aumentar a complexidade, a gente não ia escolher. Está fora. O princípio da simplicidade tem que ser simples. E simples não é para o auditor fiscal, não. Tem que ser simples para o público. O nosso consumidor tem que ser simples para o tomador de decisão, tem que ser simples para o escritor de contabilidade, tem que ser simples para o dono da empresa. Isso que é a simplicidade.

Segundo princípio, a carga tem que ser transparente. O princípio da transparência, porque é a transparência que traz a possibilidade da cidadania fiscal. Porque hoje, no modelo que está aí, ninguém sabe quanto é que tem de tributo. Você compra uma camisa, uma gravata, um tênis, um par de luva, dois quilos de feijão, um quilo de alcatra, você não sabe o que você está pagando de imposto. E aí os liberais entram, não, precisamos saber quanto é que é o imposto e aprovam uma lei dizendo que na nota fiscal tem que ter ali todo o imposto. É uma coisa absurda aprovar uma lei pra isso, porque ninguém sabe calcular. Aí, como aprovou-se a lei, queria e aprovou. Aí depois não sabia como cumprir a lei. Aí um instituto, por toda boa vontade, o Instituto do Paraná, calculou um método lá para calcular aproximadamente quanto que tinha de… De imposto em cada uma das compras. Esse, aproximadamente, passou a ser usado posterior ao Panzarilli ter destroçado essa situação, essa possibilidade de cálculo, fazendo uma brincadeira. Foi no mercado, comprou seis bananas e uma cerveja e, na sequência, uma… seis cervejas e uma banana. Adivinha qual que deu maior carga tributária? Obviamente a banana. Então, desarticulou essa confusão. E aí passou-se a dizer, aproximado. Ou seja, ninguém sabe.

Então, o princípio da transparência é fundamental. Porque é isso que vai dar cidadania fiscal. O consumidor, quando comprar um produto, ele vai saber o quanto que tem de imposto naquele produto. Essa era outra questão importante. O terceiro princípio é o da não-cumulatividade. Porque o IVA, o Imposto Sobre Consumo, IVA, ou IBS, ou CBS, na realidade é um imposto que incide sob o valor adicionado. Significa que as etapas anteriores da cadeia de produção terão o imposto recolhido e serão aproveitados nas etapas seguintes, sem acumular tributos na cadeia produtiva. Coisa que nós não conseguimos fazer. O ISS é naturalmente cumulativo. O ICMS deveria ser não cumulativo, mas não o é. O PIS e COFINS ídem. Então, é fundamental que a gente conseguisse trabalhar a não cumulatividade. Então, o modelo foi trabalhado, foi construído em cima destes princípios. E aí nós aproveitamos e criamos um modelo. Qual é o modelo? Modelo simples. Muito simples.

É o seguinte, olha… Primeira situação. Vamos garantir a não-cumulatividade. Como é

que garante a não-cumulatividade? Crédito financeiro pleno. Tudo o que entrar de insumo, que for usado para a sua produção, independentemente de qualquer coisa, vai gerar crédito financeiro. Coisa que no Brasil não existe. O princípio da não-cumulatividade aqui é torto. É torto porque o legislador constituinte disse que deveria ser não-cumulativo, aí o legislador infraconstitucional vai e diz o seguinte: não, o que pode gerar crédito é só aquele que está diretamente vinculado à produção. Aí vem a Receita e diz assim: só aquele que está diretamente, diretamente vinculado à produção. Aí começa uma disputa infinita no Judiciário e na Receita sobre o que é vinculado à produção. Então, a simplicidade da nossa proposta é a seguinte, olha, nós vamos partir para a não-cumulatividade financeira. Não tem conversa. É creditamento amplo e restrito.

Outra questão importante, desoneração da exportação e desoneração do investimento. Então, o modelo da PEC 45 é o modelo que trabalha esses princípios, construiu esses princípios e trabalhou em cima desses princípios. Depois é que vem a PEC 110. A PEC 110 vem lá do 2004, 2005. Ela estava parada na casa, lá no Senado. Quando a PEC 45 foi para a discussão, o Senado resgatou a PEC 110 e aí começou a discussão. Então, na PEC 110, os princípios são exatamente os mesmos. As diferenças são, a meu ver, mais formais do que materiais. E aí, com o tempo, e como o Renato colocou muito bem, era fundamental que a gente tivesse um movimento conjunto. Ou seja, eu, quando entrei no Ministério da Fazenda, entrei com uma tarefa. Eu fui com o compromisso de coordenar a construção da reforma tributária sobre o consumo. E ali eu encontrei uma coisa interessante. Que é o seguinte: não tinha nenhuma, não encontrei nenhuma resistência de ninguém, de nenhum setor, de nenhuma… Dentro do governo, fora do governo, no Congresso Nacional, em setor empresarial, setor sindical. Quer dizer, havia ali uma coincidência de diagnósticos. Ou seja, o diagnóstico era mais ou menos aquele que eu tinha acabado de apresentar. Todos tinham esse diagnóstico. Agora, a partir desse diagnóstico, nós montamos um grupo de trabalho no Ministério da Fazenda.

Esse grupo de trabalho era composto por auditores fiscais, técnicos do Ministério, que passaram a trabalhar em cima de dois textos. Em cima do texto da PEC 45 e em cima do texto da PEC 110. Combinado que nós vamos fazer um texto que vai ser o texto do governo. Então, a construção do texto do governo se deu dessa maneira. Baseado nos princípios. E aí a pergunta é: qual é o modelo que nós vamos adotar? Então, nós vamos fazer um IVA dual. IVA dual por quê? Porque o modelo do IVA dual é o modelo que praticamente todos os países que são federações adotam. Canadá, Índia. Não há muito segredo aí. É um IVA da União e é um IVA dos entes subnacionais. O da União, no caso, vai ser a CBS, a Contribuição sobre Bens e Serviços. E dos entes subnacionais, um IBS, um Imposto sobre Bens e Serviços. Então, a construção é essa. Como é que nós vamos trabalhar em relação a isso? De tal maneira que a incidência do tributo seja apenas no destino. Então, hoje, a arrecadação vai para o estado onde está situado o contribuinte. Então, o contribuinte faz a venda, a arrecadação vai para aquele estado. O modelo, como nós temos que eliminar a guerra fiscal, o modelo é a arrecadação ir para o destino. Ou seja, o consumidor está aqui, a arrecadação vai para aquele estado onde está localizado o consumidor.

Esse é o ponto. O outro ponto é que a gente construiu na legislação, foi construído uma situação muito interessante, que é o modelo de transição. Porque a transição vai ser, em primeiro lugar, muito longa. 50 anos para os estados. Vão ter 50 anos para se ajustar, para compensar. Então, foi criado um fundo. O fundo de compensação da perda de receita. E 20 anos para o município. Durante esse período, a transição se dará para que não haja perda de arrecadação. Agora, a transição para o contribuinte é muito rápida. Porque a partir do quinto ano de transição, a gente vai zerar a alíquota do PIS, COFINS, ICMS e ISS. Então, ele começa com o PIS, COFINS zerando a alíquota, e aí entra a CBS. Depois, a partir do terceiro ano, a gente zera a alíquota do ICMS e ISS, e entra o IBS, para garantir uma transição rápida para o contribuinte. Então, a transição vai ser mais longa para o fisco e vai ser mais curta para o contribuinte.

Nelson Machado é ex-ministro da Previdência Social (2005-2007), é consultor e professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV. Foi Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e Secretário Executivo do Ministério da Fazenda. É diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) | https://ccif.com.br/quem-somos/