Ensinamentos a partir de um vilarejo chinês onde se pratica agricultura em terraços
Por Sergio Schneider e Ângelo Belletti | outubro de 2023
É provável que não exista método científico mais eficiente e impactante do que a comparação. Quando se compara situações, casos, contextos, tipos através de variações temporais e contrafactuais, salta aos olhos a diferença e, por consequência, as similitudes com aquilo que conhecemos e estamos familiarizados. Ao nos comparar aos outros, somos confrontados com nós mesmos, nos vemos no espelho! Por isso quando praticamos a comparação nos tornamos menos pretensiosos e quase sempre um pouco mais humildes.
Foi numa visita recente à China que reiteramos o valor da comparação para a boa ciência assim como a fé de que os humanos são capazes de superar enormes desafios, mesmo em situações de extrema adversidade. Em outubro de 2023 tivemos a oportunidade de visitar o Vilarejo de Wanjinzhuan, Distrito de Shexian, Província de Hebei, indicado no Mapa.
Nesse local, ficamos surpresos e maravilhados com a capacidade e a resiliência dos camponeses que através da sua interação com o meio ambiente desenvolveram um modo único de vida, uma forma de coprodução entre humanos e não-humanos que o tempo se encarregou de aperfeiçoar. Em 1290, durante a Dinastia Yuan, surgiu no Vilarejo de Wanjinzhuan a agricultura de terraços de montanha, uma particular forma de uso da terra que resultou na criação de uma nova geografia. Ao longo de oito séculos as comunidades locais alteraram o perfil das montanhas da região, construindo terraços agrícolas que possibilitaram produção em abundância de alimentos. Ouvimos relatos de que mesmo no momento de maior escassez de alimentos na China durante os anos 1950-60, essa região tinha reputação de guardar estoques que alimentaram a população local, protegendo-os da fome e da carestia.
Oito séculos de história contada pelo modo de produção em um vilarejo na China
Para compreender as dinâmicas econômicas e ambientais desenvolvidas no Vilarejo de Wanjinzhuan, é preciso começar pela descrição da paisagem: trata-se de uma formação montanhosa, com diversos dobramentos e alterações de nível no horizonte. O clima característico é árido, com grande incidência de ventos e baixa presença de chuvas. O solo, por sua vez, é marcado pela constante presença de rochas e pedregulhos.
A construção dos terraços de clima árido surgiu da necessidade dos habitantes de estabelecer um espaço plano e com maior disponibilidade de terra com granulometria mais baixa. De fato, ao longo de oito séculos, os camponeses redesenharam o perfil topográfico da região e construíram um sistema de produção que alcançou o reconhecimento da FAO como Globally Important Agricultural Heritage Systems (GIAHS): o Sistema de Terraços de Pedra de Sequeiro de Shexian.
Essas construções são um sistema agrícola alimentado pela chuva nas montanhas, desenvolvido pelos ancestrais locais através da adaptação e transformação do ambiente natural e herdado de geração em geração. O sistema de terraços de sequeiro tem excelentes capacidades de conservação do solo e da água. Esta prática explica que o processo de construção de terraços de pedra inclui a construção de abrigos de pedra (conhecidos como Shi’anzi), empilhamento de cristas de pedra e preenchimento do solo em três fases.
O processo de construção dos terraços consiste na escavação de uma porção da montanha com objetivo de traçar perfis verticais e horizontais retos. Dessa escavação, os agricultores separam a terra e as pedras que são novamente alocadas nesse local trabalhado, porém seguindo uma nova organização. As pedras são utilizadas para construção da base do terraço, para contenção vertical da estrutura alterada e para barreira com os níveis inferiores da montanha. A terra, por sua vez, é realocada nessa cama de pedras construída. Os agricultores locais relataram que a terra é considerada tão preciosa que todos deveriam limpar a sola dos sapatos antes de sair de dentro do terraço, para evitar qualquer remoção do material base. Na Foto 3 é visível essa composição. O registro aponta para um terraço com sua lateral destruída, o que possibilita enxergar a construção do nível de pedras ao lado e embaixo do da terra observado.
Segundo os camponeses nos explicaram, o Sistema oferece vários benefícios, como redução da erosão do solo, melhoria do microclima e conservação de habitats. A presença de terraços de cumeeiras garante a manutenção do solo e da água, proporcionando produtos agrícolas abundantes e protegendo os recursos de germoplasma. Este sistema poderia ser considerado como um modelo para a utilização do solo e dos recursos hídricos em áreas montanhosas, bem como para uma agricultura sustentável e ecológica em terras áridas.
A construção dessas estruturas manteve-se até 1972, quando o último terraço da região foi estabelecido. Perguntados por que não construíam novos terraços desde então, a resposta foi de que “não há mais espaço para construir”. Um olhar no entorno simplesmente mostra que toda a cadeia de montanhas do vilarejo visitado foi convertida pelas comunidades locais ao longo dos anos, séculos. No total, mais de seis mil terraços foram construídos. Alguns dos terraços atuais passam por manutenções anuais, especialmente em períodos de menor produtividade e maior seca, como no inverno. É nesse processo de reformar que conhecimento antigo, tradicional é compartilhado na comunidade com os mais jovens. Não foi possível apurar se há diferenças entre os moradores no domínio sobre a tecnologia. Observamos que há uma divisão do saber entre as diferentes unidades familiares que se responsabilizam pela integridade dos terraços sob sua tutela, e este técnica de manejo é compartilhada por via oral.
Para além da estrutura social necessária para desenvolver essa tecnologia, verificamos que há três práticas centrais de interação ecológica desempenhadas no vilarejo: com a água, com a estrutura do relevo e com a qualidade do solo.
A primeira refere-se ao armazenamento da água. O clima árido da região traz uma constante preocupação para os agricultores sobre a disponibilidade de água para o cultivo. Como solução, ao longo dos terraços há diversos reservatórios de água da chuva, que são administrados e utilizados pela comunidade coletivamente. Quando questionados sobre como controlavam o fluxo de água, dada sua importância para a manutenção produtividade, os entrevistados responderam que “cada um usa conforme o necessário”, evidenciando o caráter cooperativo das práticas desempenhadas. A relação com a água também influencia a forma de manejo adotada. Os agricultores, contrariamente ao que compreendemos como adequado para produções de menor escala no Brasil, revolvem o solo diversas vezes durante o ano. Apesar de entenderem que isso traz consequências para a estrutura do solo, essa prática tem como objetivo facilitar a absorção de água pela terra e evitar que umidade seja perdida antes da saturação do solo disponível.
Já a sustentação da estrutura dos terraços, para além da cama de rochas, ocorre pela diversidade agrícolas no espaço de terra. As pimentas, por exemplo, possuidoras de raízes mais longas e estrutura foliar adaptada ao vento, são alojadas na borda dos terraços, apoiando a fixação do solo e protegendo o plantio interno de rajadas de vento. Por sua vez, no interior do terraço são plantados milhetos variados, feijões e vegetais. O consórcio entre culturas foi apontado pelos entrevistados como um elemento fundamental na busca por uma boa produtividade.
Por fim, o terceiro elemento é a melhoria da fertilidade do solo. Como não havia adubos ou fertilizantes, os camponeses introduziram os burros, que possuem uma dupla função pois fazem o transporte das colheitas para o Vilarejo assim como levam de volta o esterco. A importância dos animais é crucial para os camponeses. Tanto é que cada casa no Vilareja possuem um quarto especial no porão ou na entrada das casas onde ficam as instalações dos burros. Ali são alimentados e permanecem durante a noite, gerando o esterco, que é amontoado e a cada período levado para os terraços. De fato, os burros são um elemento central nesse sistema de produção. A maior parte das famílias possui apenas um animal para ajudar nas produções, porque dois ou mais acarretariam problemas de espaço e manejo. É comum ver os burros caminhando no Vilarejo, em geral com cargas no lombo.
A presença dos burros na vida do Vilarejo se tornou verdadeiramente uma instituição. Por um lado, percebemos a construção de hábitos culturais desenvolvidos em circunstâncias próprias da localidade visitada. O quarto nas residências para abrigar o animal é um exemplo. Outro é o evento anual conhecido como “Aniversário do Burro”, no qual a essa relação interespécies é celebrada com comidas típicas para a população local e, especialmente, para os muares. Por outro, o uso do animal é pautado por organizações de nível estrutural, como as condições do mercado específico que acarreta uma precificação bastante elevada (10000 yuan por unidade), e a limitação de um animal por família imposta pela administração local. Apesar de anedótico, essa composição aponta para a imersão das práticas socioeconômicas em nível local (hábitos culturais na relação interespécies) e estrutural (regulações estatais, circulação e disposição de capital) (DiMaggio; Louch, 1998).
Os burros fazem parte da formação da área urbana e da cultura dos moradores. As vielas e as calçadas do vilarejo são construídas com enfileiramento de três lajotas de pedra, em que a linha central ocupa um nível abaixo das duas laterais de modo que os burros saibam por onde caminhar de modo que as cargas em seu lombo não encostem em obstáculos e que possam depositar seus dejetos em local que facilita a limpeza e remoção da via pública. Esses elementos são visíveis na Foto 6 – na esquerda, locais para depósito do esterco, e na direita, caminhos com três níveis para tráfego dos animais.
O ambiente visitado no Vilarejo de Wanjinzhuan ensina muito sobre como o processo contemporâneo de desenvolvimento da sociedade chinesa é resultado de séculos de aperfeiçoamento da relação entre os humanos e espaço. Lembrando F. Braudel, podemos dizer que o presente chinês existe como interação construída ao longo do tempo formando a história longa (longue durée). Todavia, essa dinâmica não é isenta de contradições e conflitos. O espaço dos terraços surgiu atrelado a uma figura senhorial ainda no século XIII, e somente no século XIX passou para controle dos camponeses, ainda que intermediado pelo Partido Comunista Chinês em suas administrações locais. Ao longo desse período, formas de cooperação e construção coletiva assentaram-se na região, bem como estratégias de competição e autonomia por parte dos produtores. A composição dessas correlações entre passado e presente, indivíduo e coletividade, foram fundamentais no delineamento das instituições sob as quais se fundamenta o modelo contemporâneo de desenvolvimento chinês. A China atual somente pode ser compreendida a partir do seu passado de história longa.
A presença das instituições
Durante nossa estadia no vilarejo, um elemento se tornou evidente: a imersão social das práticas econômicas. Essa observação não é nova, nem distinta do que pode ser visto nos mercados do nosso cotidiano. Karl Polanyi, ao estudar o comércio nas sociedades antigas, já havia destacado a importância das regras e normas tradicionais locais como elementos ordenadores da vida social e econômica das comunidades.
Na China rural, a comunidade (Village) é o centro da vida social e econômica. O formato organizacional dos vilarejos, com a área de residências e administração em uma localidade centralizada, e a terra para produção em seu entorno, gera cenários nos quais os agricultores estão continuamente em interações horizontais e verticais.
Durante o período pré-revolucionário, as regiões rurais eram centradas em figuras com maior influência política e econômica. Os atores de maior poder eram fruto de processos históricos de ocupação das terras e exerciam controle sobre a área que seria utilizada, quando e por quem. Em outras palavras, agricultores de menor poder trabalhavam para o dono de terras da região na produção de alimentos. Essa relação era marcada por uma forte desigualdade de capital social, econômico e político. A construção de mais terraços variava conforme a necessidade de incremento ou retração na produção, elemento influenciado pelo clima, quantidade de habitantes na região e conexão com fatores externos – como o comércio entre vilarejos, por exemplo.
A construção desses espaços ao longo da histórica está apresentada na Tabela 1, na qual se percebe uma correlação entre acréscimo da população permanente na região e o incremento da área em terraços – ou seja, indicando que mais pessoas necessitavam de maior estrutura produtiva. A tabela apresenta dados para todo o Distrito de Shexian, que abarca o vilarejo visitado assim como outros que também praticam a agricultura de terraços.
Com a Revolução de 1949 e os sucessivos processos de implementação de novas práticas produtivas, as figuras de maior proeminência e poder foram expropriadas e, em grande parte, enviadas para outras localidades. O poder central dessas regiões passou para figuras preponderantes vinculadas ao Partido Comunista Chinês. Inicialmente, a propriedade da terra foi coletivizada. Entretanto, com a implementação do Sistema de Responsabilidade na década de 1980, a administração dos vilarejos manteve-se com a propriedade dos espaços, porém o direito de uso passou para cada família, que receberam autonomia e acesso privado sobre os terraços da comunidade. Desse modo, estabeleceu-se uma relação social sobre o meio de produção distinta daquela tradicionalmente praticada na lógica capitalista de propriedade privada. A propriedade da terra fica subordinada aos interesses da coletividade do vilarejo deixado de ser tão somente um símbolo do individualismo, tornando-a fonte de acumulação e enriquecimento. Ao mesmo tempo de os camponeses mantém autonomia e governança sobre o que plantar, como e para quem vender, eles são condicionados a trabalhar e produzir segundo os interesses do Partido Comunista naquele vilarejo.
Atualmente, as práticas dos agricultores de Wanjinzhuan são pautadas por suas vontades e interesses, mas também são afetadas pelas condições histórico-materiais do local em que vivem, pelo conhecimento disponível e por elementos de poder e influência.
Apesar da manutenção de processos de competição e ampliação da individualização, a dinâmica social e econômica do Vilarejo de Wanjinzhuan mostra como estas convivem ou coexistem com dinâmicas de redistribuição e centralidade. Os camponeses de Wanjinzhuan mostram como Karl Polanyi estava certo ao afirmar que as sociedades de mercado em que impera o individualismo e a cultura da competição e do ganho, convivem outras práticas. Por a visita nos abriu os olhos para reflexões futuras sobre diferentes formas de relação produtiva e circulatória, bem como sobre o modelo de organização do sistema econômico nacional chinês.
Problemáticas, desafios e possibilidades
Malgrado o encantamento e o deslumbre que a visita aos terraços de Wanjinzhuan proporcionou, não ficamos imunes aos pontos críticos e eventuais contradições sobre o que observamos. A realidade que visitamos também possui problemas e desafios, que estão muito bem reportados no estudo de Guo, García-Martin e Plieninger (2021). Segundo os autores, são quatro os problemas centrais que afetam os terraços de Wanjinzhuan: o abandono da terra, o uso cada vez maior de insumos externos, o aumento da mecanização e a simplificação do calendário agrícola. Novamente, o método comparativo foi chave para averiguar na prática este diagnóstico.
O abandono da terra por parte da população tradicional do Vilarejo é um fenômeno frequente e afeta diferentes localidades do rural chinês, especialmente as que percorrem um processo de “modernização produtiva”. No caso chinês, um processo semelhante de saída da terra ocorreu, o que deu origem ao conceito de left-behind (Jingzhong, 2011) que aborda a massiva migração de trabalhadores rurais – especialmente jovens em idade de trabalho – para grandes centros urbanos. Como consequência, o meio rural passou a ter a presença expressiva daqueles que foram “deixados para trás” na migração, principalmente idosos e crianças.
No vilarejo de Wanjinzhuan ouvimos diversos relatos sobre terraços que estavam sendo abandonados pela falta de mão de obra para manter o manejo adequado. Segundo estimativas da FAO, em 2017 cerca 40% da população total da região estava em contexto de migração integral ou sazonal. Como consequência, representantes da Associação e moradores locais relataram o receio de que a tradição dos terraços seja perdida com o passar dos anos, com os atuais agricultores envelhecendo e sem uma sucessão geracional.
Cabe notar que algumas ações estão sendo tomadas localmente para contornar essa situação. A Associação dos Terraços, por exemplo, acredita que o incremento da renda média da população pode ser um atrativo interessante para a manutenção dos jovens. Para tal, algumas atividades conjuntas estão sendo realizadas com uma agroindústria privada local, beneficiadora de pimentas e milhetos. Essa empresa pertence a um ator privado que saiu de Beijing para montar sua produção na região. Apesar de privada, conta com constante apoio público fruto de uma compreensão de que o sucesso da empresa significa a manutenção do modelo produtivo da pimenta nos terraços. Quando perguntado ao dono da fábrica sobre sua motivação pela escolha da região de processamento das pimentas, esse comentou sobre o terroir específico da produção da região, novamente remetendo a manutenção e historicidade de uma prática produtiva. Nesse ponto, cabe destacar o crescente papel das redes sociais nos mercados agrícolas chineses. No escritório da agroindústria, por exemplo, havia uma área destinada apenas à promoção dos produtos para redes sociais, contando com tripés, iluminação direcionada e fundo temático para produção de material audiovisual. Uma das alternativas ao vilarejo é conseguir engajar as grandes cidades próximas a si em uma relação de consumo consciente com os produtos locais.
O fomento à preservação da cultural local é outro meio que tem sido acionado para manutenção do local. Foi interessante observar que a Associação que atualmente usa um prédio de uma antiga escola de um vilarejo, oferece oficinas de férias para as crianças da região. Nos foi relatado que essas atividades visam construir uma identificação dessa geração mais jovem atrelada ao universo cultural dos terraços – visto que algumas das crianças não residem mais na região, embora venham com seus pais em período entre o ano escolar para visitar parentes. Na Foto 10 são apresentados desenhos realizados pelas crianças em uma das salas que recebem essas atividades, e é perceptível a presença dos terraços e dos burros, apontando para uma possibilidade de futuro de maior valorização da memória cultural local.
Em face da redução da força de trabalho as tecnologias atreladas à modernização agrária encontraram maior espaço, o que implicou no aumento do uso de insumos externos e mecanização. A riqueza ecológica dos terraços se constituiu enquanto um elemento central da manutenção produtiva do espaço do vilarejo, bem como o uso de esterco dos muares. Atualmente observa-se o incremento do uso de motocicletas, a redução da biodiversidade e de sementes crioulas pela adoção de sementes patenteadas e o uso de insumos químicos externos para intensificação do potencial produtivo. Na Foto 10 está apresentada uma agricultora em um dos terraços visitados utilizando um motociclo como meio de transporte.
Como tentativa de evitar a predominância de uma produção baseada no uso de agroquímicos, os representantes da Associação e da empresa de pimentas nos relataram que estão em busca da padronização de modelos orgânicos de produção. Apesar do relato, a formalização e certificação dessa categoria de produtos ainda se mostrava frágil.
Outra forma de manutenção e promoção das práticas de cultivo tradicionais é o museu da Associação que relata a história de formação e organização dos terraços – local de onde, inclusive, retiramos parte dos dados que apresentamos aqui. Próximo ao espaço museológico, está localizado o banco de sementes da região. Esse acervo visa organizar e armazenar o conteúdo biológico dos terraços, objetivando significar a riqueza ecológica utilizada. Essas práticas foram e são construídas em profundo diálogo com a universidade, apontando um caminho de cooperação entre âmbito acadêmico e prática cotidiana dos atores no meio rural.
Por sua vez, e em diálogo com as problemáticas ambientais, a alteração do calendário produtivo é mais um dos resultados das mudanças climáticas testemunhadas. Em uma das conversas com os habitantes locais, nos foi relatado sobre como o processo de produção era profundamente organizado segundo os ciclos naturais, especialmente temporadas de chuva e temporadas de seca. Essa divisão organizava o período de manutenção do terraço, o período de manejo do solo e o de plantio. Com as alterações climáticas contemporâneas, os agricultores relatavam a dificuldade de manter essa organização. Essa situação nos aponta como os efeitos decorrentes da crise ambiental afetam e afetarão diversas práticas sociais, extinguindo possibilidades de organização da vida nas mais variadas condições socioambientais.
Para além das medidas locais de enfrentamento das problemáticas em 2022 os terraços da região se tornaram parte do programa de Global Important Agricultural Heritage System (GIAHS), promovido pela Food and Agriculture Organization (FAO). Essa categorização pelo organismo internacional objetiva trazer visibilidade e importância para hábitos produtivos e culturais desempenhados em diferentes localidades pelo globo. No caso dos terraços no distrito de Shexian, essa nomeação dialogou com uma iniciativa promovida pela China Agricultural University (CAU) que, em conjunto com a administração local, elaborou a Associação dos Terraços de Pedras de Sequeiro.
Esses elementos desafiadores são parte dos desafios que os camponeses do Vilarejo de Wanjinzhuan terão de enfrentar nos próximos anos. Neste processo, felizmente poderão contar com a ajuda dos pesquisadores do COHD/CAU (Faculdade de Humanidades e Desenvolvimento da Universidade Agrícola de Pequim) assim como das instituições locais, que já se deram conta que possuem um ativo histórico com valor simbólico, material e imaterial, que são os terraços agrícolas e a vida social da comunidade do seu entorno.
Sobre o futuro da alimentação – o que nos ensina o sistema de terraços de Wanjinzhuan, Shexian, Província de Hebei
O que essa experiência pode trazer de reflexões para a realidade brasileira e, especificamente, sul riograndense?
Três elementos centrais podem ser destacados: a importância do fortalecimento das comunidades, a proliferação de mercados para agricultores e o uso de canais digitais para comercialização.
A importância do fortalecimento das comunidades dialoga com o que vimos e vivenciamos em um espaço fruto de mais de oito séculos de construção coletiva entre seres humanos, fauna, flora e relevo. As práticas desempenhadas nos terraços de Wanjinzhuan nos brinda com ensinamentos duplos sobre manutenção de culturas locais: por um lado, trazem sua riqueza para um mundo plural e de diferentes formas de existência; por outro, contribuem para as possibilidades de como pensar produções agrícolas em ambientes inicialmente tomados como ineficientes, e como estabelecer relações que mantenham a circularidade ecológica da região em questão. Outro elemento relacionado é a tênue relação entre gestão localizada e projeto nacional. A capacidade de organização e decisão por parte da administração local mostrou-se essencial na organização do vilarejo visitado, porém essas práticas estão em constante diálogo com o modelo adotado nacionalmente. O acesso à região foi feito por vias expressas, asfaltadas e de alta qualidade de fluxo com carro, fruto de um dos diversos projetos nacionais de infraestrutura.
Quando pensamos no Rio Grande do Sul, diferentes formas de relação cultural com o espaço ao seu entorno são desenvolvidas nas regiões de ocupação histórica indígena como os Mbya Guarani no Norte do Estado; ou com populações quilombolas ao longo de toda a região; ou mesmo com comunidades descendentes da imigração alemã e italiana localizadas no Vale dos Sinos e na Serra dos Tapes. Por meio do aprofundamento da compreensão sobre as culturas dessas localidades, suas formas específicas de relação com o espaço ao seu entorno podem contribuir para o desenvolvimento geral da região.
Novos mercados e espaços de interação mercantil podem ser pensados em interface e diálogo com a preservação cultural. O turismo rural, por exemplo, poderia ser estimulado como uma das fontes de renda a serem organizadas para essas comunidades rurais. No caso do vilarejo chinês, essa possibilidade ainda vive em uma projeção futura, a qual consideram que seria interessante, apesar de exigir fundamentações anteriores. Todavia, mostra-se essencial que os agricultores disponham de variedade de mercados para que possam construir um leque de alternativas como fonte de renda. Entre os agricultores dos terraços, várias vezes nos foi relatada a importância da variedade de cultivos que todos dispunham, garantindo possibilidades de renda. Nessa direção, porém, novos mercados precisam ser pensados de forma a não se tornaram apenas alternativas paralelas em uma mesma categoria, mas vinculadas a diferentes canais de obtenção de renda – como produtos de maior ou menos especialização, escoamentos diretos para consumidores ou para agroindústrias, agricultura respaldada por uma comunidade, e o próprio exemplo do turismo rural.
Uma das possibilidades nessa direção seria a construção dos alimentos enquanto imbuídos em valores sociais. Seja no caso chinês ou no nosso Estado, é hora da construção de uma nova relação com as formas de alimentação, vinculando o que se põe no prato à trajetória de sua produção. É distinto pensarmos em pimentas para uso alimentar do que pensarmos nas pimentas de Wanjinzhuan plantadas em terraços centenários. E a diferença está, exatamente, no percorrido histórico que demarca certos tipos de agricultura. A valorização dessa herança cultural que pauta diferentes comidas do nosso cotidiano é um dos canais centrais para repensarmos hábitos alimentares e formas de realinhar o modelo de consumo contemporâneo.
Derradeiramente, a ampliação dos canais de comercialização se mostra especialmente latente no uso da digitalização. No caso de Wanjinzhuan, essa temática parecia ser um tópico em crescimento, que ainda tende à maturidade em períodos futuros. A infraestrutura básica da agroindústria visitada aparenta ser um início promissor de construção dessa relação. O uso difundido no país de compras online, e ferramentas como o Alipay e o WeChat são centrais para essas negociações, também. No caso brasileiro, testemunhamos processos semelhantes durante a crise de COVID-19, mas com a superação da pandemia, reduzimos a importância desses canais. Essa prática poderia encurtar o tamanho das cadeias produtivas alimentares, reaproximando consumidores do que põe rotineiramente nos seus pratos.
Retomando o disparador da introdução, a comparação é uma ferramenta primordial para refletirmos sobre os caminhos que as diferentes organizações sociais tomam e como conseguimos pensar em traçados para seguirmos adiante. Comparar o caso chinês com o brasileiro é deparar-se com um conjunto de possibilidades de desenvolvimento. Nos traz esperança em alternativas possíveis, bem como evidência dos desafios constantes. Cada povo possui a sua montanha para redesenhar, e compreender as diferentes formas de traçar esse desenho é um caminho central para seguirmos em frente.
Essa visitação foi realizada dentro do escopo do projeto “A China e os seus Impactos no Rio Grande do Sul: estudos comparados sobre a internacionalização do sistema agroalimentar“, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), que visa compreender como as alterações no gigante asiático afetam as práticas localizadas no nosso Estado. Além da investigação em campo, nosso projeto resultou em uma dissertação no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), intitulada “Exportações de soja do Rio Grande do Sul para a China: estruturas, instituições e mercados (cc. 1970 – 2020)”, defendida em 2023; em publicação de artigo no Journal of Agricultural and Rural Studies, e em apresentação de trabalhos no evento Critical Agrarian Studies in the 21st Century, construído pelo Journal of Peasant Studies e ocorrido em Outubro do presente ano na cidade de Pequim, China.
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Sergio Schneider é Sociólogo, Professor Titular da UFRGS e Pesquisador 1B do CNPq | Contato: schneide@ufrgs.br
Ângelo Belletti é Historiador, Mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS) | Contato: angelo.belletti@hotmail.com