O aumento do consumo de combustíveis fósseis apressará o fim do planeta, alerta Carlos Nobre
Por Maurício Thuswohl na CartaCapital | 26/12/2024
Maior autoridade climática do Brasil, o cientista Carlos Nobre anda preocupado com a onda negacionista movida, sobretudo, pela eleição de Donald Trump para um segundo mandato nos Estados Unidos. Um possível aumento da exploração de petróleo, gás e xisto, entre outros, afirma, provocará um ecocídio. Cerca de 80% das emissões de gás carbônico, lembra, vêm dos combustíveis fósseis. Diante dos riscos e dos eventos extremos crescentes, Nobre enxerga na COP–30, a ser sediada pelo Brasil no próximo ano, um momento crucial. E acredita no papel de liderança do País na transição ecológica, dado o potencial de energias eólica e solar. Quanto ao futuro, o cientista deposita as esperanças na consciência ecológica das novas gerações e afirma: “Preciso, quero e sou otimista”.
CartaCapital: Para boa parte da comunidade científica, a meta de limitar o aquecimento do planeta a 1,5 grau Celsius até 2030 não é mais factível. A preocupação da humanidade, agora, é se preparar para o que vem por aí?
Carlos Nobre: Desde junho de 2023, a temperatura global está 1,5 grau mais quente do que no início do aquecimento global, entre 1850 e 1900. Se continuar nesse patamar em 2025, em três anos, certamente a ciência vai bater o martelo de que atingimos esse limite antes de 2030. O Acordo de Paris, firmado em 2015, traçou planos para não deixar a temperatura ultrapassar essa marca. Isso implicaria reduzir as emissões, em relação a 2019, no mínimo em 43% até 2030 e depois zerar as emissões líquidas até 2050. Se atingirmos 1,5 grau em 2025 e 2026, teremos de ser muito mais ambiciosos. Vários estudos indicam que, se atingirmos 1,5 grau agora e só zerarmos as emissões líquidas em 2050, a atmosfera pode ficar até 2,5 graus mais quente em 2050. É muito grave.
Neste ano, “foram batidos todos os recordes de eventos extremos”
CC: A realidade climática exigirá um nível de adaptação que a maioria dos países não tem…
CN: Sem dúvida. Em 2024, foram batidos todos os recordes de eventos extremos. A ciência alertava há décadas que, quando a temperatura atingisse esse valor de 1,5 grau ou mais, aconteceriam muito mais eventos climáticos extremos, como ondas de calor, secas, incêndios florestais e chuvas excessivas. Matematicamente, o aumento é exponencial. Às vezes, o sujeito nem percebe a relação de um evento com o aquecimento global. Em 2024, houve uma explosão das turbulências que pegam os aviões, e isso acontece porque tem muito mais energia na atmosfera. A energia que gera as turbulências é a mesma que o aquecimento global joga para a atmosfera e que provoca todos os eventos extremos. São raríssimos os países com políticas efetivas de adaptação para essa temperatura atual. E, realmente, as nações em desenvolvimento, como o Brasil, praticamente não têm nenhuma política implementada de proteção contra esses eventos.
CC: Em 2024, as emissões voltaram a crescer. Com a vitória de Trump, a indústria de óleo e gás tende a ganhar novo impulso. Nesse ritmo, os líderes mundiais estão conduzindo a humanidade para um caminho sem volta?
CN: Se chegarmos em 2050 com 2,5 graus Celsius de aquecimento global, atingiremos um grande número de pontos de não retorno. A eleição de líderes negacionistas torna a situação muito grave. Em sua primeira passagem pela Presidência, Trump tirou os EUA do Acordo de Paris. Em três dos quatro anos de seu mandato, as emissões, que diminuíram na gestão de Barack Obama, aumentaram. E Trump anunciou que vai autorizar todas as novas explorações de petróleo e gás natural e reduzir os investimentos na transição para as energias renováveis. Ele dá um péssimo sinal, mas não é o único. O argentino Javier Milei retirou todos os representantes do seu país das negociações da COP–29.
CC: A provável guinada política nos EUA é a maior ameaça ao Acordo de Paris?
CN: Os EUA são historicamente o país que mais emitiu. Nas últimas décadas, foi ultrapassado pela China, mas ainda é o segundo maior emissor. Quando Washington indica que vai furar novos poços ou explorar gás de xisto, é um sinal verde para o aumento da exploração no mundo inteiro. Mesmo se o mundo só utilizasse as minas de carvão, poços de petróleo e gás natural hoje em exploração, chegaríamos em 2050 ainda emitindo 40% do que os combustíveis fósseis emitem hoje, 12 ou 13 bilhões de toneladas de gás carbônico. Isso já causaria um risco gigantesco para o planeta. Aumentar a exploração agora vai levar esse modelo para além de 2050, pode chegar até 2100. É o que chamamos de ecocídio. Mais de 80% das emissões vêm da queima dos combustíveis fósseis.
CC: A regulação do mercado global de carbono chegou tarde demais?
CN: Espero que não. É muito importante um marco legal para definir a obrigatoriedade do mercado de carbono aos países. Precisamos de trilhões de dólares para restaurar todos os biomas do planeta. Estudos mostram que teríamos de restaurar a vegetação de uma área de 6 milhões a 7 milhões de quilômetros quadrados ao redor do mundo, quase o tamanho do Brasil. Isso removeria por até cem anos cerca de 5 bilhões a 6 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano da atmosfera.
CC: O Acordo de Paris é letra morta? O que esperar da COP–30?
CN: Com o fato de termos chegado a 1,5 grau, limite previsto para 2050, essas COPs perderão o sentido se mantiverem as mesmas metas do Acordo de Paris. Reduzir em 43% as emissões até 2030 seria um megadesafio. As emissões aumentaram em 2023, e continuaram a crescer em 2024. Na COP–28 e na COP–29, a temperatura estava mais alta, mas não se sabia se iria continuar, pois houve um El Niño muito forte. Mas continuou. Entre janeiro e setembro de 2024 o aumento da temperatura global atingiu 1,54 grau e não tem diminuído. A próxima COP, no Brasil, vai ser a mais importante da história. Com a temperatura em alta e a explosão dos eventos extremos, ela terá de estabelecer metas muito mais abrangentes para rapidamente zerar as emissões e criar soluções baseadas na natureza para remover o gás carbônico da atmosfera, o que quer dizer milhões de quilômetros quadrados de restauração florestal. Este precisa ser o objetivo e vamos torcer para que os países concordem com essas metas difíceis.
“A COP–30, no Brasil, será a mais importante da história”
CC: O que é mais urgente realizar em termos de transição energética no Brasil?
CN: Em 2022, menos de 20% das emissões foi derivada da queima de combustíveis fósseis. O País tem todas as condições de ser o primeiro a fazer a transição por ter um gigantesco potencial de energias solar e eólica. Os oceanos têm também um grande potencial de gerar energia elétrica sem intermitência e muito barata, e alguns países começam a explorar essa capacidade. A primeira fábrica de hidrogênio está concluída. E ainda podemos dar grande escala às energias renováveis.
CC: É também uma questão urbana…
CN: No mundo inteiro, a poluição urbana é um grande problema para a saúde humana e causa entre 6 e 7 milhões de mortes por ano, derivadas principalmente da queima de combustíveis fósseis. Nas cidades brasileiras, o maior fator de poluição é a queima do diesel por ônibus e caminhões. Estudos da USP demonstram que a poluição da cidade de São Paulo reduz em dois a quatro anos a expectativa de vida dos paulistanos. Então, a transição energética não só reduzirá as emissões, mas também vai melhorar muito, globalmente, a saúde de bilhões de seres humanos. O Brasil tem condições de ser um dos primeiros países a zerar as emissões tanto para a produção de eletricidade quanto para transportes. Há também a agricultura e a pecuária regenerativas, que emitem bem menos e são muito mais produtivas, lucrativase e baratas.
CC: Existem caminhos para financiar a transição energética por fora das atuais estruturas de governança?
CN: Esse é o grande desafio político. Países financiaram a Ucrânia na guerra com quase 2 trilhões de dólares em dois anos. O quanto aplicam na redução das emissões, nos projetos de restauração dos biomas florestais? A guerra da Rússia na Ucrânia e o avanço de Israel na Faixa de Gaza e no Líbano geram uma instabilidade muito grande porque os países ricos financiam aqueles em guerra. E essas mesmas nações não estão financiando, por exemplo, a transição energética na maior parte do mundo. Há pouquíssimo financiamento para tornar as populações vulneráveis e os países pobres mais adaptados e para aumentar a resiliência dessas populações aos eventos extremos em curso. A grande maioria das nações em desenvolvimento precisa muito do auxílio das ricas para fazer essa adaptação.
Secas e calor excessivo estão mais frequentes. Não dá para adiar o corte drástico da exploração de petróleo – Imagem: iStockphoto
CC: É possível enfrentar as emergências climáticas sem mudar os atuais modos de produção?
CN: Vivemos uma loucura capitalista: 16% do PIB mundial vem do setor de combustíveis fósseis. É um segmento que só se entende na continuidade do modelo que está aí. Hoje, gastam-se trilhões de dólares por ano para novas explorações de petróleo, carvão e gás natural. Por mais que a energia renovável seja melhor, esse setor econômico quer continuar. Poucas indústrias de carvão, petróleo e gás natural realmente mudaram para energias renováveis. A British Petroleum mudou de nome para Beyond Petroleum, mas é uma transição muito lenta. Isso acontece também com o agronegócio, principalmente nos países em desenvolvimento. O Brasil é o quarto maior produtor e segundo maior exportador de alimentos, tem a maior área de soja plantada no mundo, 300 mil quilômetros quadrados, principalmente no Cerrado, expandindo muito na Amazônia e na região do Matopiba. O País também tem 1,7 milhão de quilômetros quadrados de pastagem, quase todos degradados, e os produtores querem ampliar ainda mais. Esse capitalismo insustentável é muito perigoso. Isso só vai aumentar as emissões e levar o planeta a um suicídio da biodiversidade, um suicídio climático.
CC: O senhor se define hoje como pessimista ou otimista diante do futuro?
CN: Um pouco de cada. Há 35 anos publiquei os primeiros artigos mostrando que o desmatamento levaria a Amazônia a um ponto de não retorno e, naquela época, a floresta estava somente 7% desmatada. Tornei-me mais pessimista porque liderei inúmeros estudos mostrando que a Amazônia estava à beira do ponto de não retorno. Mas, nos últimos anos, falei: não, precisamos buscar alternativas. Nesse sentido, além de continuar minhas pesquisas, criei um projeto chamado Amazônia 4.0 para desenvolver o que a gente chama de sociobioeconomia de floresta em pé e com os rios fluindo, para agregar valor aos produtos da biodiversidade e não desmatar mais nada. Eu sou do Conselho de Administração do BNDES, para o qual levei a ideia do Arco da Restauração. Trabalho na busca de soluções e preciso, quero e sou otimista porque vejo que em todo o mundo os jovens estão muito preocupados e as novas gerações não aceitarão mais o que a minha geração fez, que foi terrível. O meu otimismo está em aguardar o que as novas gerações vão buscar como soluções. •
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Suicídio ecológico’
Publicado na versão digital em https://www.cartacapital.com.br/politica/suicidio-ecologico/