Tento diplomático

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O governo Lula consegue apoio para aliança global contra a fome e emplaca um documento abrangente na cúpula

Por Maurício Thuswohl na CartaCapital | 19/11/2024

Aconteceu de tudo um pouco nos três dias do encontro no Rio de Janeiro entre chefes de Estado e governo que marcou o fim da presidência temporária do Brasil no G–20, o grupo das maiores economias do planeta. Às pressões políticas de última hora e ao risco de não adesão completa ao documento final somaram-se declarações extemporâneas e um convidado “inconveniente” que ameaçou diminuir o brilho da festa. Nada foi, no entanto, capaz de obnubilar o feito da diplomacia do governo Lula. O empenho do presidente e do Itamaraty permitiu superar as divergências e divulgar um texto que inclui referências à guerra na Ucrânia, à invasão de Gaza por Israel, ao aquecimento global e à taxação dos super-ricos. Bandeira histórica de Lula, a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza ganhou contornos um pouco mais claros. “Essa aliança nasce aqui, mas seu destino é global”, discursou o brasileiro.

Depois de citar o total de famintos no mundo, 733 milhões no ano passado, Lula exortou os líderes presentes a aderir à iniciativa. “Compete aos que estão em volta desta mesa a inadiável tarefa de acabar com essa chaga que envergonha a humanidade.” Não há motivo, prosseguiu o presidente, para se alegar falta de recursos quando se trata do combate à fome. “Em um mundo no qual os gastos militares chegam a 2,4 trilhões de dólares, ter tantas pessoas com fome é inaceitável.”

A aliança nasce com a adesão de 148 países, blocos econômicos, organismos multilaterais, instituições financeiras e ONGs. Falta definir os mecanismos de financiamento, mas o Banco Interamericano de Desenvolvimento comprometeu-se a ofertar uma linha de crédito de 25 bilhões de dólares, quase 150 bilhões de reais, voltada a ações sociais. “Os recursos podem ser destinados para água e saneamento, mas também para projetos de proteção social aos mais vulneráveis”, detalhou Ilan Goldfajn, presidente da instituição. A meta até 2030 é socorrer 500 milhões de seres humanos. O Brasil fará um aporte de 9 bilhões de dólares. Os eixos serão transferência de renda, saúde materna e primeira infância e merenda escolar. A sede será na Itália, mesmo país que abriga a FAO, organização das Nações Unidas para alimentação e agricultura. A ausência de detalhes a respeito da origem dos recursos mereceu, porém, críticas de representantes da sociedade civil. “Embora a liderança brasileira seja louvável, é decepcionante ver que outros integrantes do grupo não anunciaram nenhum novo compromisso”, lamenta a francesa Friederike Röder, dirigente da ONG internacional Global Citizen.

Único país integrante do G–20 a amea­çar não aderir à proposta feita pelo Brasil, a Argentina mudou de opinião na última hora. Durante os três dias do encontro de cúpula, o presidente Javier Milei desempenhou o papel de garoto de recados de Donald Trump, como se imaginava. Eleito para um novo mandato nos Estados Unidos, o republicano é ostensivamente contrário à ideia de multilateralismo e promete aprofundar, na segunda passagem pela Casa Branca, o enfraquecimento das instituições mundiais, entre elas a ONU. Milei não fugiu do script. Fez uma defesa extemporânea e rasteira do neoliberalismo e criticou as propostas de combate à fome, taxação dos ultra-ricos, regulamentação das big techs e redução do uso de combustíveis fósseis. No fim, aderiu a contragosto à primeira, mas teve tempo de posar para uma foto ao lado do “comunista” Xi Jinping. O “libertário” argentino tem arrastado asas para o lado da China, que, ironicamente, pode ser a tábua de salvação da balança comercial do país vizinho. Sua ausência na segunda foto de “família” dos participantes da reunião ilustra a condição de pária do argentino, posição ou não posição na seara internacional herdada de Jair Bolsonaro.

Pela primeira vez, propostas da sociedade civil foram incorporadas ao debate das autoridades

Não acertar um documento de consenso ao fim do encontro de chefes de Estado e governo representaria uma derrota diplomática sem precedentes para o governo brasileiro, mas obtê-lo fez com que alguns pontos importantes perdessem força, usual nesse tipo de negociação. No caso da taxação dos super-ricos, não ficou determinado um porcentual a ser tributado, discussão jogada para o futuro. A declaração de princípios foi, no entanto, um avanço. “Procuraremos nos envolver ­cooperativamente para garantir que indivíduos de patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributados.” A troca do termo “super-ricos” pelo empolado termo utilizado acima foi mais uma das condições de Milei para ratificar o documento.

Outro ponto de resistência foi a condenação explícita ao uso de combustíveis fósseis. No fim, o G–20 limitou-se a reafirmar “seu compromisso com as metas de redução de gases estufa definidos pelo Acordo de Paris”. Durante sua participação na última sessão de trabalho da cúpula, Lula pediu aos países do bloco que revejam ­suas metas de redução das emissões. “Antecipem suas metas de neutralidade climática de 2050 para 2045 ou até mesmo 2040. Sem assumir suas responsabilidades históricas, as nações ricas não terão credibilidade para exigir ambição das demais.”

Embora o presidente brasileiro tenha afirmado anteriormente não querer “trazer a guerra para a reunião do G–20”, os conflitos armados projetaram suas sombras no documento final. A invasão da Faixa de Gaza por Israel foi tratada de forma mais contundente, como em trechos que ressaltam o número de mortos na região, mais de 43 mil, e pedidos de “um cessar-fogo abrangente” e de uma “expansão urgente do fluxo de assistência humanitária”. O trecho sobre a invasão da Ucrânia, por conta da pressão do governo da Rússia, nem sequer menciona o nome do ­país, representado na cúpula pelo chanceler Sergey Lavrov. A declaração estabelece de forma vaga que “todas as partes envolvidas nos conflitos em andamento devem cumprir com suas obrigações sob o direito internacional humanitário” e condena “ataques a civis e à infraestrutura”. A palavra “infraestrutura” foi acrescentada ao documento após o lançamento recíproco de mísseis de longo alcance nos mesmos dias do encontro de cúpula. Outro personagem marcante no evento, o presidente norte-americano Joe Biden pediu aos paí­ses do G–20 que protejam os ucranianos. “Os Estados Unidos apoiam firmemente a soberania e a integridade territorial da Ucrânia. Todos ao redor desta mesa, na minha opinião, devem fazer o mesmo.”

Antes da reunião bilateral com Lula no Rio, o presidente estadunidense em fim, melancólico, de mandato sobrevoou a Floresta Amazônica e voltou a prometer 50 milhões de dólares para o fundo de recuperação do bioma, embora até agora não tenha liberado um único centavo. “Alguns podem tentar negar ou atrasar a revolução da energia limpa, mas ninguém pode revertê-la”, discursou. O recado foi sob medida para seu sucessor e muitos viram na disposição do democrata em firmar acordos durante o G–20 um sinal de pressa em demarcar terrenos antes que o adversário, conhecido pela visão negacionista das mudanças climáticas e pelo seu entusiasmo com a exploração de petróleo, torne qualquer iniciativa em letra morta.

Nota de rodapé. Milei era um despachante de Trump. Queria atrapalhar a reunião, mas teve de se contentar com a posição de pária.

Trump e os integrantes de seu primeiro escalão, aliás, foram assuntos preferenciais nos bastidores. Um deles, o bilionário e futuro “supersecretário” Elon Musk, foi a personagem de um “incidente diplomático” durante o G–20 Social, evento que precedeu a reunião de chefes de Estado e governo. Durante um painel sobre a regulamentação das redes sociais, a primeira-dama brasileira, Janja da Silva, disparou: “Eu não tenho medo de você. Inclusive, fuck you Elon Musk”. O bilionário respondeu com uma postagem em sua rede X: “Vocês vão perder as próximas eleições”. A polêmica desnecessária obrigou Lula a fazer reparos públicos. “Nós não temos que ofender ninguém, xingar ninguém. Nós precisamos apenas indignar a sociedade”, contemporizou o petista.

Outro êxito da gestão brasileira à frente do bloco foi a realização do inédito G–20 Social, evento prévio que reuniu setores da sociedade civil, cujas demandas, pela primeira vez, foram incorporadas aos debates oficiais. As propostas foram sistematizadas em três eixos: combate à fome, pobreza e desigualdade; combate às mudanças climáticas e transição energética e nova governança global. Para o secretário-geral da Presidência, Márcio Macêdo, o Brasil “criou um mecanismo sem precedentes” para a participação social no grupo. “No passado, a sociedade civil ficava a quilômetros de distância das decisões de cúpula. Creio que, a partir de agora, o G–20 nunca mais fará reuniões sem sua participação”, diz o ministro, ressaltando que as propostas da sociedade “foram incorporadas às duas trilhas principais de discussão, a política e a financeira”.

Fórum de prefeitos das cidades, o ­Urban 20 também foi bem-sucedido. Ao lado das prefeitas de Paris, Anne Hidalgo, e de Freetown, Yvonne Aki-Sawyer, o anfitrião do encontro, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, entregou ao presidente Lula as propostas apresentadas pelos gestores locais. O documento, assinado pelas 26 cidades que integram o U–20 e outras 25 convidadas, tem como principal ponto a demanda de 800 bilhões de dólares ­anuais até 2030 para as metrópoles se adaptarem às mudanças climáticas. “As desigualdades entre as cidades do Hemisfério Sul precisam ser enfrentadas”, diz Paes. Assim como na questão do combate à fome, falta definir, no entanto, quem colocará a mão no bolso. “A grande questão é de onde virão os recursos. Entendemos que os países ricos devem colaborar”, propôs Aki-Sawyer, antecipando uma discussão a ser relembrada no próximo ano em solo africano. A partir de 1º de dezembro, a presidência temporária do G–20 será exercida pela África do Sul. O Brasil assumirá o comando dos BRICS e promete levar as mesmas preocupações para a comunidade de economias do Sul Global.

Maurício Thuswohl, repórter de CartaCapital no Rio de Janeiro

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024. Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tento diplomático.

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