Abastecer escolas com agricultura local e familiar é alternativa para transição agroecológica

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Para pesquisadores, inciativa é um passo importante para a transição do modelo agroindustrial vigente para os Sistemas Agroalimentares Alternativos

Por Ivanir Ferreira e Diego Facundini no Jornal da USP | 30/04/2024

Em resposta à crise do atual modelo agroindustrial dominante, que produz em larga escala para consumo em massa, o abastecimento de alimentação escolar com produtos frescos e orgânicos oriundos da agricultura local e familiar é uma promessa para uma transição ecológica para novos modelos de produção, os chamados Sistemas Agroalimentares Alternativos (SAA) que causam menor impacto ambiental. Essa foi a constatação de uma pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, feita em parceria com a Université Paris 8 Vicennes-Saint-Denis (França), que analisou duas leis, uma brasileira e outra francesa, de incentivo ao abastecimento sustentável de escolas em várias regiões de São Paulo e Paris.

Os SAA surgiram nos anos 2000 a partir de reivindicações de movimentos sociais. Segundo a pesquisa, o termo agrupa diferentes iniciativas que se caracterizam por práticas agrícolas de comercialização e de consumo que buscam soluções frente aos problemas causados pelo sistema agroindustrial vigente.

A agroecologia, por exemplo, inclui a substituição do uso de agrotóxicos e adubos químicos por insumos naturais e orgânicos em suas produções, e os agricultores devem estar comprometidos com inúmeros procedimentos técnicos que vão desde a conservação do solo, manejo ecológico de pragas e doenças à destinação adequada de resíduos sólidos.

Além da questão agrícola, os SAA propõem a construção social de um mercado orgânico agroecológico, que privilegia agricultores locais e familiares em pequenas propriedades rurais próximas a grandes regiões metropolitanas, de forma a diminuir a distância entre quem produz e quem consome.

O estudo franco-brasileiro foi baseado na análise comparativa de duas leis promulgadas em 2009 que apoiam a agricultura alternativa, uma do Brasil e outra da França, países agroexportadores e cuja balança comercial tem se mantido equilibrada pelo setor agrícola. Um dos objetivos do estudo foi compreender em que medida as políticas públicas que incentivam o abastecimento sustentável das escolas, implementadas nas duas regiões metropolitanas, contribuem para a mudança do modelo agroindustrial para sistemas agroecológicos alternativos.

Ao analisar as duas leis, a engenheira agrônoma e autora da pesquisa, Morgane Isabelle Hélène Retière, avaliou que lei brasileira é mais avançada que a francesa, por trazer orientações mais claras e objetivas sobre a aquisição de produtos locais e orgânicos.

No Brasil, a Lei 11.947, que diz respeito ao programa de alimentação escolar, impõe, por exemplo, que no mínimo 30% dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação, sejam destinados à compra direta da agricultura familiar.

Já na França, a Lei Grenelle 1 é mais genérica e sugere que no mínimo 20% das aquisições nas escolas sejam feitas de produtos orgânicos, bem como daqueles com baixo impacto ambiental, mas não especifica de que sistemas tais produtos provêm. Na lei francesa, a pesquisadora verificou também que a vinculação entre a alimentação escolar e a política alimentar governamental não aparece de forma tão clara quanto na lei brasileira.

Os textos da política alimentar francesa, ao contrário da lei brasileira, não recomendam explicitamente a redução do consumo de alimentos industrializados, embora se reconheça que os produtos possam conter teores excessivos de açúcar, sal e gordura.

Outra ressalva positiva feita pela pesquisadora em relação à lei brasileira foi a dispensa de licitação pública para a compra de alimentos da agricultura familiar, um processo que, em geral, é burocrático e demorado, tendo como um dos critérios o menor preço. Pela Lei 11.947, a aquisição dos alimentos pode ser realizada por chamada pública, procedimento administrativo mais rápido, utilizado para firmar parcerias com organizações da sociedade civil, como ONGs. “Na hora da aquisição dos produtos, ficam em primeiro plano outros critérios que não o preço, como a origem geográfica, a produção ecológica e a inclusão social”, diz.

Sobre a trajetória das duas leis, Morgane Retière diz que a brasileira teve origem em movimentos de combate à fome e à desigualdade social, no início nos anos de 1940, foi intensificada após a redemocratização do País e ganhou apoio institucional durante o governo do Partido dos Trabalhadores, em 2003.

Já a lei francesa foi criada a partir do controle de segurança sanitária dos alimentos, principalmente os de origem animal e, a partir dos anos 2000, passou a ter enfoque também no combate à má alimentação do ponto de vista nutricional, que culminou no aumento da obesidade populacional gerada pelo consumo de alimentos industrializados.

Sistema agroindustrial renovado

Por fim, a engenheira agrônoma analisou a implementações destas leis em nível local. Ela observou que, apesar dos objetivos ambiciosos das leis favoráveis aos sistemas alternativos, as escolas de ambas as regiões (São Paulo e Paris) também recorreram a uma modalidade chamada “sistema agroindustrial renovado”, que são os atacadistas e a grandes cooperativas que funcionavam dentro do modelo do sistema agroindustrial vigente.

A pesquisadora explica que pelo sistema agroindustrial renovado, apenas uma dimensão alternativa dos SAA é considerada. No caso da França, foi a aquisição de produtos orgânicos, porém, não local; e no Brasil, a compra da agricultura familiar, porém não local. “Esta predominância de lógicas agroindustriais renovadas pode ser explicada pelas características das grandes cidades onde as áreas de produção estão localizadas a uma distância geográfica significativa, enquanto que o setor de alimentação escolar está afastado do mundo agrícola”, diz. “No entanto, muitas estruturas situadas no coração da metrópole poderiam compensar a distância geográfica criando cargos de agentes públicos dedicados especificamente à implementação de sistemas territorializados”, avalia.

“Nichos verdes”: por que fazer transição agroecológica?

O Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC-2019) aponta que as atividades agropecuárias e industriais estão entre as principais causas de mudanças climáticas. De acordo com o relatório, se a dinâmica agroindustrial se mantiver no patamar nos próximos anos – promovendo desmatamento, usando indiscriminadamente fertilizantes e agrotóxicos e promovendo monoculturas -, é altamente provável que a insegurança alimentar no mundo se amplifique.

Morgane Retière explica que as políticas públicas (baixos impostos, subsídios, normas específicas) bem estruturadas são essenciais para o desenvolvimento dos “nichos verdes”. “E é nesse contexto que os mercados institucionais como escolas, creches, hospitais, restaurantes populares, sacolão e lar de idosos se tornam alavanca para o desenvolvimento de sistemas agrícolas alternativos, porque apresentam vantagens para os agricultores familiares no que diz respeito à negociação de volumes maiores de produtos, na obtenção de melhores preços e menos tempo nos circuitos curtos entre o produtor e o consumidor”, diz.

Características do modelo agroindustrial e dos sistemas agroalimentares alternativos
Características do modelo agroindustrial e dos sistemas agroalimentares alternativos

Para Paulo Eduardo Moruzzi Marques, um dos orientadores da pesquisa e professor da Esalq, o trabalho de Morgane Retière é rico e muito consistente, além de permitir a renovação de parcerias internacionais como aquela do Programa de Pós-Graduação Interunidades (Cena-Esalq) em Ecologia Aplicada com a Université Paris 8, Vincennes-Saint Denis. Ele considera o percurso acadêmico de Morgane exemplar e isso pode ser confirmado pela atribuição à sua tese do Prêmio Tese USP Destaque, 2023, na categoria Grande Área Interdisciplinar, que premiou trabalhos originais e relevantes para o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e social.

Logo após a defesa da tese, Morgane se tornou professora da Université Paris 10 Nanterre, passando a atuar no Laboratoire Mosaïques, unidade de investigação reconhecida pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS).

Quanto ao conteúdo da tese, o professor Marques diz se tratar de um estudo estimulante sobre a ação pública relativa à alimentação escolar, que pode ser considerada como alavanca indutora de processos de transição social e tecnológica para sistemas agroalimentares alternativos.

Escrita em português e francês, a tese Políticas de abastecimento da alimentação escolar no Brasil e na França: a transição dos sistemas agroalimentares posta à prova das metrópoles foi elaborada sob a orientação do professor Paulo Marques (PPGI-EA/USP) e Nathalie Lemarchand (Université Paris 8).

Para Morgane Retière, os resultados do estudo mostram a importância de se ter um marco legal que seja favorável ao desenvolvimento territorial sustentável. Isso aparece particularmente nas áreas metropolitanas que estão distantes do mundo agrícola em termos geográficos e relacionais e cujos recursos locais nem sempre são suficientes, por si só, para impulsionar a relocalização dos sistemas de abastecimento. Estas leis aumentariam as margens de manobra dos atores locais e legitimariam alternativas agroalimentares que precisam de apoio para existir frente às logicas agroindustriais que estão em posição dominante.

Mais informações: Morgane Isabelle Hélène Retière, e-mail m.retiere@parisnanterre.fr, Paulo Eduardo Moruzzi Marques, e-mail pmarques@usp.br

Publicado originalmente no Jornal da USP
https://jornal.usp.br/ciencias/abastecer-escolas-com-agricultura-local-e-familiar-e-alternativa-para-transicao-agroecologica/