Progressos no combate à fome

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Apesar da queda da insegurança alimentar, 8,7 milhões de brasileiros não têm o que comer

Por Roseli Loturco no Valor Econômico | 30/06/2024

A contar pela rápida progressão dos dados sobre segurança alimentar registrados em 2023, o Brasil tem condições de sair mais uma vez do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) nos próximos dois ou três anos se o ritmo for mantido. É o que dizem especialistas e instituições que acompanham e auxiliam na aferição de pesquisas que embasam a correta leitura desses indicadores.

Isso porque a última divulgação, em abril de 2024, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) mostra que o Brasil tinha 56,7 milhões de domicílios (ou 72,4%) em segurança alimentar ao final de 2023. Como o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acontece uma vez a cada cinco anos, os dados comparativos oficiais são de 2017/2018, quando 63,3% dos lares do país estavam nessas condições, um salto de 9,1 pontos percentuais.

Na comparação com indicadores mais recentes, a progressão ganha evidência. A quantidade de pessoas com insegurança alimentar e nutricional grave no Brasil recuou de 33,1 milhões em 2022, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), para 8,7 milhões em 2023 (segundo o IBGE). Embora feitas por diferentes instituições, as duas pesquisas têm em comum o uso da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) como metodologia.

“Entre o início de 2022 e o fim de 2023, cerca de 24,4 milhões de pessoas saíram da insegurança alimentar grave e 44,4 milhões de pessoas deixaram a condição de insegurança alimentar moderada. Se mantivermos este ritmo, o que não será fácil, não há dúvida de que até o final do mandato do presidente Lula sairemos novamente do Mapa da Fome”, afirma José Graziano da Silva, diretor-presidente do Instituto Fome Zero e ex-diretor da Food and Agriculture Organization (FAO), da ONU.

Graziano, do Fome Zero: situação melhorou, mas ainda há muito a fazer — Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Graziano, do Fome Zero: situação melhorou, mas ainda há muito a fazer — Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A insegurança alimentar é considerada grave quando não há a garantia ou perspectiva de obter alguma alimentação durante o dia, e moderada quando as pessoas esperam comer alguma coisa, mas não as três refeições.

O Brasil já foi referência internacional no combate à fome. Entre 2004 e 2013, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria reduziram a insegurança alimentar para menos da metade do índice inicial — de 9,5% para 4,2% dos lares brasileiros, segundo dados da Rede Penssan. Mas a situação se deteriorou, principalmente a partir da pandemia. O primeiro Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado pela entidade em 2021, com dados referentes a 2020, mostrou que a fome havia retornado aos patamares de 2004.

Em 2022, a nova edição da pesquisa indicou mais uma vez a crescente insegurança alimentar entre as famílias brasileiras. O número de pessoas passando fome no país saltou de 19,1 milhões para 33,1 milhões.

“Se a pesquisa anterior mostrava que, no fim de 2020, a fome havia retornado aos patamares de 2004, em 2022 a realidade era ainda pior”, conta Ana Maria Segall Correa, epidemiologista, professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora da Rede Penssan. “De 9% dos domicílios com moradores passando fome, saltamos para 15,5%, ou 33,1 milhões de brasileiros. Isso quer dizer que, de um período para o outro, 14 milhões de pessoas passaram a conviver com a fome no dia a dia”, observa Segall, responsável por trazer e adequar a atual metodologia usada nesse tipo de pesquisa — que é a mesma utilizada pelo IBGE — ao Brasil.

Belik, da Unicamp: o alimento pesa no orçamento das famílias vulneráveis — Foto: Divulgação
Belik, da Unicamp: o alimento pesa no orçamento das famílias vulneráveis — Foto: Divulgação

“A gente introduziu algumas perguntas, como, por exemplo, se nos últimos três meses faltou comida na casa das pessoas. Desenhamos a nossa escala com base no método americano.” As escalas são necessárias para aplicação correta das políticas públicas e foram estas, em parte, além da melhora dos indicadores de emprego e renda, que possibilitaram o salto registrado no ano passado.

Ricardo Abramovay, sociólogo, economista e professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Economia da FEA/USP, considera que a democracia é incompatível com a fome não só em países desenvolvidos, mas também em desenvolvimento, pois em quase todos existem políticas de combate à extrema miséria. “Em 2023, houve resgate e melhora do Bolsa Família e do Programa de Merenda Escolar, aumento do emprego e recuperação do Cadastro Único, o que foi fundamental para mostrar quem são as pessoas mais vulneráveis”, afirma Abramovay. Programas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rural também são citados pela efetividade nos resultados.

Outro grande desafio do sistema agroalimentar no mundo é a má qualidade dos alimentos que estão sendo consumidos. É o que o Instituto Fome Zero classifica de insegurança alimentar leve, quando as três refeições são realizadas, mas sem variedade (especialmente de frutas, verduras e legumes frescos) ou mesmo majoritariamente com produtos ultraprocessados. “O resultado dos ultraprocessados é que 40% da população americana é obesa”, observa Abramovay.

Graziano, do Fome Zero, lembra que 18% dos brasileiros comem só arroz e farinha. “Era assim em 2004, subiu para 35% na pandemia e voltou a cair para 18% agora. Ou seja, tem muito chão pela frente.” E há, também, o desafio trazido pela destruição da biodiversidade e a emissão de gases de efeito estufa atrelada às mudanças no uso da terra. Abramovay cita ainda a poluição por agrotóxicos nos cursos das águas e o uso de antibióticos na produção agropecuária e de produtos tóxicos na alimentação.

Nesse contexto, os governos costumam ressaltar a importância da participação de organizações civis no apoio estrutural às ações de combate à fome, como os casos do Instituto Fome Zero, da Rede Penssan e da ActionAid. “São as organizações que mantêm acesa a chama e que não desistem da luta pelo direito à alimentação adequada. O problema é que as políticas são de governo, e não de Estado, e são intermitentes e ideológicas. Não podem ser intermitentes porque as pessoas comem todos os dias”, afirma Graziano.

Francisco Menezes, economista e consultor de políticas da ActionAid, concorda e diz que a organização trabalha com parceiros no mundo inteiro. No Brasil, em grande parte no Nordeste, mas também tem atuação nas comunidades dos grandes centros. “A ActionAid dá apoio financeiro e realiza discussões políticas intensas com organizações rurais e com algumas em território urbano. No rural, temos trabalho forte com agricultura familiar e agroecologia”, afirma Menezes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de 2004 a 2007.

Ele explica que a organização trabalha na formação dos agricultores para que tenham acesso a políticas de cisternas e conheçam seus direitos. “Tanto em território rural quanto urbano, o nosso foco é na geração de renda para mulheres, especialmente mulheres negras. Trabalhamos ainda no fortalecimento das famílias e das comunidades. A ActionAid está em mais de 70 países. No Brasil, há 25 anos, atua em mais de 540 comunidades de 12 Estados.”

Outro ponto de reflexão dos especialistas que atuam contra a fome é identificar por que o país, quarto produtor mundial de alimentos, tem uma parcela significativa da população em insegurança alimentar. “Primeiro, pela indisponibilidade, e depois pela falta de acesso. O Brasil tem disponibilidade porque é exportador, mas as pessoas — simples — não têm acesso, porque não têm renda para consumir. O alimento pesa muito no orçamento das famílias vulneráveis”, observa Walter Belik, professor titular aposentado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ele compara o gasto com alimentação de uma família que ganha acima de 25 salários mínimos per capita com uma que recebe abaixo de dois salários mínimos per capita. “O gasto é quatro vezes maior na família rica e representa só 12% de seu orçamento. Já na família pobre representa 26%. Ou seja, além de as pessoas comerem mal, pesa no orçamento”, diz Belik.

Publicado originalmente no Valor Econômico
https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-agronegocio/noticia/2024/07/30/progressos-no-combate-a-fome.ghtml