Por José Graziano da Silva | 16/12/2024
A segurança alimentar global e a obesidade são questões profundamente interligadas, especialmente diante das mudanças climáticas atuais. Dados do relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2024” revelam um paradoxo preocupante: enquanto milhões ainda enfrentam fome e desnutrição, outros sofrem com o impacto crescente da obesidade, refletindo a coexistência da insegurança alimentar e de dietas pouco saudáveis.
Em 2023, segundo estimativas da FAO baseadas na Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES), 2,330 bilhões de pessoas enfrentaram dificuldades para acessar alimentos adequados de forma regular. Dentre elas, 864 milhões enfrentaram insegurança alimentar grave o que significa que nao comeram nada durante o período de referencia da entrevista. Some-se a isso,o fato de que mais de que quase 3 bilhões de pessoas não puderam arcar com os custos de uma dieta saudável em 2022. Esse cenário reflete não apenas as desigualdades econômicas, mas também o impacto da alta nos preços dos alimentos básicos. No Brasil, onde o custo médio de uma dieta saudável é de US$ 3,35 por dia, cerca de 48 milhões de pessoas permanecem sem acesso à alimentação adequada.
A urbanização acelerada que estamos vivendo agrava esses desafios. Com dois terços da população mundial previstos para viver em áreas urbanas até 2030, as cidades apresentam maiores dificuldades em garantir a segurança alimentar devido ao custo elevado de vida e à ampla disponibilidade de alimentos ultraprocessados, que, embora mais acessíveis, são prejudiciais à saúde. Essa dependência por alimentos industrializados tem contribuído para o aumento alarmante da obesidade global, com projeções de que mais de 3,3 bilhões de adultos terão índices de massa corporal elevados até 2035. As consequências dessa epidemia são devastadoras, causando 5 milhões de mortes anuais e representando um custo econômico estimado em US$ 4,320 trilhões para 2035.
A experiência de vários anos do Chile, com políticas como o uso de etiquetas frontais de alerta em alimentos, iniciativa do então senador Guido Girardi, oferece um exemplo de como a regulamentação pode transformar hábitos alimentares. As avaliações disponíveis mostram que essa estratégia reduziu significativamente o consumo de produtos ricos em açúcares, sódio e gorduras saturadas. Já o Brasil, enfrentando uma alta prevalência de obesidade (mais de 25% da população !), somente este ano adotou o uso dos “selos frontais” e deve avançar na integração desse tema às políticas de saúde universal, bem como ampliar o acesso as dietas saudáveis, especialmente em um momento em que a tão anunciada reforma tributária, que poderia taxar ultraprocessados e bebidas açucaradas para estimular a produção e consumo de frutas, verduras e legumes, não deverá cumprir as expectativas almejadas por resistencia dos lobbies da industria alimentícia.
Enquanto, do outro lado do Atlantico, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu não logram constituir um parâmetro regional para aumentar os impostos das bebidas açucaradas e fomentar a produção e consumo de verduras e legumes, os países têm agido em âmbito nacional nos últimos anos. Medidas como a implementação de impostos sobre bebidas açucaradas já foram adotadas em pelo menos 10 países da região, incluindo Bélgica, França, Portugal, Hungria e Reino Unido, com objetivos explícitos de promover a saúde pública e reduzir o consumo de produtos ricos em açúcar.
Além disso, nos últimos anos, diversos países europeus têm aumentado os subsídios para incentivar o consumo de frutas, verduras e legumes (FVL), como parte de estratégias para promover dietas mais saudáveis e combater a obesidade. O Programa Escolar da União Europeia, por exemplo, destina recursos para a distribuição gratuita de frutas, legumes e leite nas escolas, alcançando milhões de crianças em toda a região. Além disso, países como Áustria e Alemanha oferecem subsídios diretos para a compra de FVL frescos, com incentivos que chegam a 3,25 euros por quilo, buscando tornar esses alimentos mais acessíveis às famílias.
A iniciativa reflete um esforço coordenado para integrar saúde pública e políticas alimentares, com o objetivo de reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados. Estima-se que o aumento no consumo de FVL contribua para a prevenção de doenças não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, além de melhorar os hábitos alimentares desde a infância.
Na América Latina e Caribe, o panorama é heterogêneo: segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), de 2021, 21 países aplicam impostos especiais de consumo sobre bebidas açucaradas (SSBs), sendo a proporção menor no Caribe (6 de 13, com informações indisponíveis para o Haiti) do que na América Latina (15 de 19). Onze países não possuem imposto especial sobre SSBs, incluindo Colômbia, Cuba, República Dominicana, República Bolivariana da Venezuela e a maioria dos países caribenhos.
Medidas como a taxação desses produtos têm sido adotadas para reduzir o consumo e prevenir doenças como obesidade e diabetes. Países como México, Chile e Barbados se destacam por liderarem essas iniciativas, que têm mostrado impacto positivo na redução da compra de bebidas açucaradas e no incentivo a escolhas mais saudáveis.
Neste aspecto, dos Estados Unidos vêm também uma notícia promissora: o senador Bernie Sanders tem abraçado o combate aos impactos nocivos dos alimentos ultraprocessados como como prioridade na fase final de sua notável trajetória como legislador nos Estados Unidos. Sanders destacou justamente os avanços exemplares do Chile, que implementou etiquetas de alerta frontal em embalagens, lideradas pelo senador Guido Girardi. Essa política inovadora já demonstrou resultados significativos, com estudos recentes indicando uma redução considerável nos índices de obesidade, especialmente entre crianças, provando o poder de iniciativas ousadas e bem fundamentadas.
Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas intensificam os desafios alimentares. A produtividade agrícola global caiu 21% nas últimas décadas nas regiões tropicais e subtropicais, enquanto eventos climáticos extremos, como secas e inundações, aumentam os preços dos alimentos e reduzem sua qualidade nutricional. Estudos indicam que níveis elevados de dióxido de carbono afetam negativamente frutas e vegetais, reduzindo seus nutrientes e alterando sua aparência, o que desestimula o consumo e compromete a saúde da população.
Aqui no Marrocos, onde estou para participar do Congresso Futuro, em conjunto com o Parlamento do Chile, abordarei a interconexão destes temas. O Marrocos também traz um exemplo interessante com a agricultura familiar: a iniciativa Maroc Vert, sob a iniciativa do então Ministro da Agricultura, e hoje Primeiro-Ministro Aziz Akhannouch, apoiou pequenos agricultores na transição para o cultivo de árvores frutíferas em um milhão de hectares, fortalecendo a resiliência às mudanças climáticas e oferecendo opções alimentares mais saudáveis.
Apesar da relevância dos sistemas agroalimentares na mitigação e adaptação às mudanças climáticas, menos de 4% do financiamento climático global é destinado a essas áreas. Isso evidencia uma grave lacuna na alocação de recursos, considerando que sistemas alimentares resilientes são cruciais tanto para enfrentar as mudanças climáticas quanto para erradicar a fome. A próxima COP 30, que será realizada no Brasil, representa uma oportunidade única para integrar a segurança alimentar às negociações climáticas e alinhar os esforços globais ao objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5°C.
Com o compromisso de governos, organizações internacionais e da sociedade civil, é possível transformar os sistemas agroalimentares em motores de equidade, sustentabilidade e saúde global.
A luta contra a fome e a obesidade exige ações integradas, que combinem a produção sustentável com políticas públicas inclusivas e maior acesso a alimentos saudáveis. Este é um momento decisivo para garantir um futuro mais justo e sustentável, onde ninguém seja deixado para trás.
Baixe aqui a apresentação “Global Food Security and Obesity Seminar, Marocco 2024“