Como o comércio global de alimentos afeta a nutrição e a qualidade das dietas no mundo

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Blog do IFZ | 30/04/2025

O Brasil, uma das maiores potências agroalimentares do planeta, encontra-se numa encruzilhada crítica: como conciliar seu protagonismo no comércio global de commodities agrícolas com o imperativo ético e político de garantir dietas saudáveis e acessíveis à sua própria população?
Essa pergunta ganha relevância à luz do mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), The State of Agricultural Commodity Markets 2024 – Trade and nutrition: Policy coherence for healthy diets (SOCO 2024), que examina com profundidade o entrelaçamento entre mercados globais, políticas comerciais e nutrição humana. Embora o estudo tenha alcance global, suas implicações reverberam com especial intensidade em países como o Brasil, onde a dualidade entre abundância produtiva e insegurança alimentar se manifesta de forma dramática.

O Brasil figura entre os maiores exportadores de alimentos do mundo — líder em soja, carne bovina e de frango, açúcar e milho — e é peça-chave no sistema agroalimentar internacional. Sua balança comercial agrícola segue superavitária e crescente, sustentando parte significativa do PIB nacional. No entanto, essa pujança exportadora coexiste com desequilíbrios internos alarmantes: segundo dados da Rede PENSSAN (2022), mais da metade da população brasileira enfrenta algum grau de insegurança alimentar, e o país vem registrando aumentos contínuos nas taxas de sobrepeso e obesidade. A tragédia cotidiana de famílias com acesso precário a alimentos básicos convive com supermercados repletos de produtos ultraprocessados baratos, muitas vezes mais acessíveis que frutas e vegetais frescos.

Este relatório da FAO, lança luz sobre como o comércio internacional — inclusive aquele protagonizado pelo Brasil — influencia diretamente os sistemas alimentares, os preços dos alimentos e os padrões de consumo. O documento evidencia que a globalização dos mercados agrícolas, embora crucial para garantir diversidade e abastecimento, pode também facilitar a disseminação de dietas desequilibradas, marcadas pelo excesso de gordura, açúcar e sal, especialmente nos países de renda média e baixa.

Para o Brasil, isso significa que os rumos de sua política agrícola e comercial — inclusive os subsídios, os acordos bilaterais e a regulação do mercado interno — não podem ser dissociados da agenda de saúde pública. Como enfatiza o relatório, a coerência entre políticas de comércio e de nutrição não é apenas desejável: ela é condição necessária para construir sistemas alimentares mais sustentáveis e equitativos. Essa coerência implica, por exemplo, repensar incentivos que privilegiam a produção de commodities exportáveis em detrimento da agricultura familiar diversificada, responsável por grande parte dos alimentos frescos consumidos pelos brasileiros.

No contexto brasileiro, onde a interdependência entre segurança alimentar, estrutura agrária e inserção internacional é particularmente aguda, os alertas e recomendações da FAO ganham densidade política. Eles desafiam gestores públicos, pesquisadores, setor privado e sociedade civil a repensar as bases do modelo alimentar vigente e a refletir sobre o papel que o Brasil quer — e pode — desempenhar no século XXI: ser apenas um celeiro global de commodities ou tornar-se também um exemplo de justiça nutricional, soberania alimentar e saúde coletiva.

Transição nutricional impulsionada por crescimento econômico, urbanização e globalização

O relatório evidencia que, entre 2000 e 2022, o PIB global per capita mais do que dobrou (de US$ 5.517 para US$ 12.688), enquanto a participação da agricultura no emprego mundial caiu de 40% para 26%. Paralelamente, houve um crescimento acelerado da urbanização e da interdependência econômica internacional. Esses fatores convergentes catalisaram uma profunda transição nutricional: dietas baseadas majoritariamente em cereais e leguminosas passaram a incorporar crescentes quantidades de proteínas animais, óleos, frutas e alimentos processados.

Embora essa transição reflita melhorias na disponibilidade calórica (de 2.200 para 2.980 kcal per capita por dia entre 1961 e 2021), ela ocorre de forma desigual entre países e frequentemente associa-se ao aumento da obesidade. A prevalência global da desnutrição caiu de 12,7% para 9,2% entre 2000 e 2022, mas a obesidade adulta saltou de 8,7% para 15,8% no mesmo período — um retrato claro da chamada “dupla carga” da má nutrição, com subnutrição e obesidade coexistindo, inclusive em países de baixa renda.

Comércio internacional como motor da diversidade alimentar e do fornecimento de nutrientes

O comércio internacional é apresentado como um mecanismo crucial para equalizar déficits e excedentes alimentares entre regiões, garantindo uma maior estabilidade na oferta de alimentos ao longo do ano. Entre 2000 e 2022, o comércio mundial de alimentos quase quintuplicou, alcançando US$ 1,9 trilhão. Em termos energéticos, a média calórica comercializada passou de 930 para 1.640 kcal per capita por dia.

De forma notável, a diversidade de alimentos disponíveis ao consumidor aumentou significativamente. Em média, os países produzem cerca de 120 itens alimentares distintos, mas têm acesso a 225 itens graças ao comércio — quase o dobro. Essa ampliação na oferta está positivamente associada à adequação de micronutrientes essenciais. O comércio internacional de vitamina C e cálcio, por exemplo, cresceu cerca de 90% per capita entre 2000 e 2021.

Abertura comercial promovendo acessibilidade sem comprometer a qualidade nutricional

A FAO refuta a ideia de que a liberalização comercial, por si só, favorece a disseminação de alimentos ultraprocessados em detrimento de opções mais saudáveis. O relatório mostra que, independentemente de seu valor nutricional, alimentos tendem a ter preços mais baixos em países com tarifas de importação reduzidas. Essa relação sugere que a abertura comercial pode tornar dietas saudáveis mais acessíveis, desde que acompanhada de políticas públicas adequadas.

Crescimento dos alimentos ultraprocessados sob a influência dos acordos comerciais

O relatório destaca a expansão dos alimentos ultraprocessados como um fator relevante no aumento global da obesidade. Um aumento de 10% na renda, por exemplo, implica em crescimento de 11% na demanda por alimentos ultraprocessados importados, em contraste com 7% para alimentos in natura. Essa elasticidade diferencial é acentuada em países que firmaram acordos comerciais regionais (RTAs), os quais, ao harmonizar barreiras sanitárias e técnicas, tendem a facilitar a entrada desses produtos nos mercados domésticos.

Estudos de caso, como o das ilhas do Pacífico, ilustram como a integração comercial acelerou a substituição de dietas tradicionais por produtos industrializados de alto teor calórico, contribuindo para taxas epidêmicas de obesidade. A FAO, no entanto, enfatiza que a responsabilidade não recai exclusivamente sobre o comércio: subsídios agrícolas distorcivos, frequentemente voltados para commodities como trigo, arroz e açúcar, também contribuem para desequilíbrios na produção e consumo de alimentos mais nutritivos.

Harmonização de políticas comerciais e nutricionais como caminho para sistemas alimentares mais saudáveis

A busca por coerência entre políticas comerciais e nutricionais constitui o eixo normativo central do relatório. A FAO destaca que medidas como rotulagem nutricional frontal, regulamentações técnicas sobre composição alimentar e taxação de bebidas açucaradas são compatíveis com as regras da OMC, desde que não discriminem entre produtos domésticos e importados.

Exemplos concretos são apresentados: o Gana estabeleceu limites de gordura para carnes importadas como medida sanitária e nutricional, plenamente alinhada aos princípios de não discriminação da OMC. Na Tailândia, comitês interministeriais reúnem representantes da saúde, comércio e indústria para garantir que negociações internacionais reflitam preocupações de saúde pública. Na União Europeia, diretrizes nutricionais foram integradas à Política Agrícola Comum, reforçando a legitimidade de medidas pró-saúde no espaço comercial.

Reconfiguração dos subsídios agrícolas e fortalecimento institucional para dietas sustentáveis

O relatório conclui com uma proposição ambiciosa: repensar os subsídios agrícolas à luz dos objetivos nutricionais e ambientais. Estimativas da FAO indicam que redirecionar incentivos para cultivos nutritivos pode tornar uma dieta saudável economicamente acessível para 0,64% da população global adicional — o equivalente a milhões de pessoas. Capacitação institucional, diálogo intersetorial e maior transparência em negociações comerciais são identificados como pilares essenciais para a construção de sistemas alimentares sustentáveis.

Como sublinhou o Diretor-Geral da FAO, Qu Dongyu: “Alcançar a coerência entre comércio e nutrição é essencial para cumprir a Agenda 2030 — produzindo melhor, nutrindo melhor e garantindo uma vida melhor, sem deixar ninguém para trás.”

Em suma, o relatório da FAO oferece uma visão sofisticada e baseada em evidências da intrincada relação entre comércio e nutrição, propondo caminhos concretos para transformar o comércio global de alimentos em um aliado estratégico na promoção de dietas saudáveis e na erradicação da má nutrição em todas as suas formas.