Blog do IFZ | 10/05/2025
Publicada por Patricia Shanley e Gabriel Medina, com ilustrações de Sílvia Cordeiro e Miguel Imbiriba, a obra Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica representa uma síntese rara entre ciência ecológica, conhecimento tradicional e documentação etnográfica. Lançado com o apoio de instituições como o CIFOR, Embrapa e Imazon, o livro apresenta dezenas de espécies arbóreas com usos múltiplos, manejadas cotidianamente por comunidades rurais da região Norte do Brasil. Mais que um catálogo botânico, trata-se de um retrato de sistemas agroflorestais vivos, moldados pela experiência, observação e continuidade cultural dos povos da floresta.
A publicação se insere em um contexto de crescente debate sobre alternativas econômicas à expansão do desmatamento e à degradação da biodiversidade. Frente a modelos baseados em monocultura e exploração madeireira, os autores argumentam que a manutenção da floresta em pé, aliada ao manejo sustentável de suas espécies frutíferas, oferece benefícios superiores em médio e longo prazo — tanto em termos de renda quanto de segurança alimentar.
Um exemplo recorrente na obra é o do uxi (Endopleura uchi), árvore nativa da Amazônia brasileira, cuja importância ecológica e econômica tem crescido nas últimas décadas. Até recentemente classificado como de baixo valor comercial, o fruto vem se consolidando como fonte de renda para extrativistas e agricultores familiares, além de apresentar propriedades nutricionais e medicinais relevantes. Os dados de campo indicam que uma única árvore pode produzir entre 700 e 2.000 frutos por ano, chegando a 3.500 em safras excepcionais. Em áreas manejadas próximas a Belém, a densidade pode alcançar até 35 árvores produtivas por hectare.
No plano econômico, a pesquisa mostra que, em 2004, mais de 477 mil frutos de uxi foram comercializados nas feiras da capital paraense, gerando cerca de R$ 65 mil em receita. Embora modesta em comparação a outras cadeias produtivas, essa renda adquire significado especial ao ser analisada em relação ao custo ambiental e social da extração de madeira. Um estudo de caso apresentado na obra demonstra que, ao longo de dez anos, uma família extrativista obteve R$ 3.634 de lucro líquido com a coleta de frutas em um único hectare, valor cerca de 90 vezes superior ao que seria recebido com a venda da madeira naquele mesmo espaço.
A dimensão ecológica do uxi também é abordada com rigor. A espécie desempenha papel fundamental na alimentação da fauna silvestre — veados, pacas, cotias, macacos e diversas aves consomem seus frutos, contribuindo para a dispersão de sementes e a regeneração florestal. Estima-se que apenas 14% dos frutos maduros de certas árvores cheguem intactos ao solo, uma vez que o restante é consumido por animais ou cai ainda verde. Essa interação entre frutíferas e fauna local configura um sistema ecológico integrado, cuja complexidade só pode ser compreendida a partir de observações prolongadas e situadas.
Do ponto de vista cultural, o livro registra um conjunto expressivo de práticas ligadas ao uso e manejo das frutíferas. Em comunidades como Boa Vista, nas ilhas próximas a Belém, agricultores realizam o enriquecimento da mata com mudas selecionadas, podas periódicas e limpeza do sub-bosque. Essas técnicas, muitas vezes vistas com desconfiança por setores técnicos, revelam uma racionalidade própria, orientada não por metas de produtividade imediata, mas por ciclos longos de observação e adaptação ao ambiente. Como destacam os autores, mesmo em condições ecológicas e logísticas adversas, essas práticas têm permitido a manutenção de uma economia florestal resiliente.
A narrativa do Sr. Roxinho, morador de Boa Vista, ilustra esse processo. Em um hectare de seu sítio, ele cultivou cerca de 60 pés de uxi ao longo de 30 anos, obtendo R$ 475 em apenas dois meses de safra. Esse rendimento supera o de outras culturas locais, sem exigir a conversão do uso do solo. A renda proveniente do uxi permitiu à sua família adquirir utensílios domésticos, livros e roupas, demonstrando como os frutos da floresta podem cumprir função equivalente à de uma pequena poupança rural.
A obra também inclui informações detalhadas sobre composição nutricional, ciclos fenológicos, técnicas de beneficiamento e receitas tradicionais. A polpa do uxi, por exemplo, contém cerca de 284 calorias por 100 gramas — valor seis vezes superior ao da laranja —, além de altos teores de fibras, potássio, ferro e fitoesteróis. Os usos medicinais da casca e do óleo da fruta são amplamente conhecidos na região e vêm sendo estudados por pesquisadores em farmacologia.
O mérito principal do livro reside na forma como articula esses diferentes saberes — técnico, popular, ecológico — em uma linguagem acessível e precisa, sem recorrer a simplificações ou folclorização. A abordagem adotada permite compreender a floresta não como um repositório de recursos a serem explorados, mas como um sistema dinâmico, sustentado por práticas que envolvem manejo, cuidado e reciprocidade.
Em um momento em que a Amazônia é alvo de pressões intensas, tanto econômicas quanto políticas, Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica oferece uma alternativa concreta ao discurso da inevitabilidade da devastação. Ao documentar com rigor a viabilidade econômica da floresta viva, o livro se insere em um campo cada vez mais estratégico: o da construção de políticas públicas baseadas em evidência, que reconheçam e fortaleçam os saberes locais como parte essencial de qualquer projeto sustentável para a região.
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