ONG internacionaliza pão entregue à população de rua e busca recursos para fábrica

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Idealizador do Pão do Povo da Rua compartilha receita com a FAO para ajudar a combater a fome no mundo

Por Cristiano Cipriano Pombo na Folha de S.Paulo | 16/06/2025

SÃO PAULO | O gastrólogo Ricardo Frugoli e o Pão do Povo da Rua alimentam hoje 2.300 pessoas na região central de São Paulo e trabalham agora para montar uma fábrica para levar os famosos pães e bolinhos a supermercados e escolas públicas da cidade. Para isso, porém, eles têm um desafio: juntar R$ 6 milhões.

“Desde que ganhamos autorização da Prefeitura de São Paulo para usar uma área no Canindé, eu não durmo. É a chance de realizar o sonho de criar a fábrica do Pão do Povo da Rua e tornar a organização sustentável”, diz Frugoli, 56.

Desde 2020, quando distribuiu as primeiras marmitas a quem passava fome em sua porta nos Jardins, o chef viu sua vida mudar para sempre.

De três marmitas para 120, 500, 700… A quantidade de comida, que chega 2,5 milhões de bocas alimentadas em quatro anos de projeto, dá a dimensão da epopeia enfrentada pelo gastrólogo. Tanto quanto alimentar a população vulnerável, ele tem tirado da cracolândia as pessoas que hoje cozinham no Pão do Povo da Rua, além de comandar escola de gastronomia dentro do projeto.

Homem de óculos, barba, roupas brancas
Ricardo Frugoli, idealizador do Pão do Povo da Rua e eleito Hero Food pela FAO – Katiuska Sales/Divulgação

Com o lema “tenho que cuidar do meu quadrado”, ele expandiu as ações do Pão do Povo da Rua para além do Bom Retiro, abrangendo hoje Santa Cecília, Marechal Deodoro, República e Armênia. “Já nem sei se é quadrado, retângulo ou que tipo de figura formam esses bairros. Eu não posso ver ninguém com fome.”

E, para as pessoas que ele alimenta na rua –de domingo a domingo, em escala 7/0–, a fome tem pressa. E Frugoli também.

O projeto da fábrica tomou corpo após almoço em abril, quando recebeu da secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Regina Santana, a sinalização para reformar prédio na rua Carnot, nº 900, e levar o projeto para o Canindé. “É um local para 150 trabalhadores”, diz Frugoli, que, tanto quanto dar sustentabilidade ao projeto, planeja empregar egressos da rua que vivem em lares do Programa Redenção. Procurada pela Folha durante uma semana, a Prefeitura de São Paulo não confirma a concessão do terreno.

E um simbolismo cerca o local. Naquele bairro foi onde Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto do Despejo”, viveu. Frugoli, quando era produtor artístico –de Gal Costa e Mercedes Sosa–, tentou produzir musical com a obra da escritora e vê agora uma aproximação com ela, que, diz ele, mostrou mazelas da cidade que estão presentes desde 1960 até hoje.

Eleito Food Hero (Herói da Comida) pela FAO ( Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura ) em outubro do ano passado, Frugoli hoje lidera nove ações contra a fome.

Pães, bolinho e chá oferecidos à população de rua nas instalações da iniciativa liderada pelo gastrólog Ricardo Frugoli na região central de Sâo Paulo
Pães, bolinho e chá oferecidos à população de rua nas instalações da iniciativa liderada pelo gastrólog Ricardo Frugoli na região central de Sâo Paulo – Kesley Machado/Divulgação

O Pão do Povo da Rua, que emprega 43 pessoas em contratos CLT –com salários de R$ 2.250 a R$ 7.000–, é responsável por: 1) Café da manhã na sede do projeto (300 pessoas); 2) Café da manhã na rua (300 pessoas na Marechal Deodoro e 100 pessoas na Armênia); 3) Marmitas para projeto da prefeitura (200 marmitas); 4) Almoço (400 refeições); 5) Curso de gastronomia social (30 pessoas em vulnerabilidade); 6) Pão da família (80 famílias, que levam 4 pães); 7) Jantar (120 refeições para 40 famílias do bairro); 8) Cesta básica (350 por mês); e 9) Sopa no inverno (600 porções servidas à noite). A ONG ainda entrega cobertores, doados por um benfeitor.

Pessoas que vivem nas ruas da região central de Sâo Paulo tomam café da manhã na sede do Pão do Povo da Rua
Pessoas que vivem nas ruas da região central de Sâo Paulo tomam café da manhã na sede do Pão do Povo da Rua – Kesley Machado/Divulgação

Os trabalhos rendem reconhecimento internacional a Frugoli e ao pão e ao bolinho que são servidos todas as manhãs nas ruas de São Paulo. Isso porque o gastrólogo paulista compartilhou a receita do alimento, criada por sua amiga Adriana Aranha e que tem cinco características –1) nutritivo; 2) gostoso; 3) macio; 4) atraente; e 5) cheiroso. A receita foi entregue à FAO e levada a outros projetos pelo mundo —em outubro, quando a FAO faz 80 anos, Frugoli, além participar da inauguração do Museu da Alimentação, saberá a quantos países foi levada a receita.

Mas o reconhecimento contrasta com o fato de Frugoli, o senhor barbado e de óculos, com ares de professor, sofrer diariamente ameaças de morte, de vizinhos do projeto e de comerciantes das áreas em que distribui alimentos. “Fico triste com gente que mora no bairro e vem no projeto pegar comida ou cesta básica, porque passa necessidade, mas fala mal porque a gente atrai pessoas mais vulneráveis que ele”, diz ele, que, devido a ameaças, deixou a casa em que viveu por 28 anos nos Jardins para morar no centro.

Em meio a tudo isso, Frugoli já visitou o papa –foi recebido por Francisco em 2024–, levou comitiva de egressos das ruas a Roma e cozinhou para embaixadores da FAO. Ele sabe que não pode parar e conta com o apoio da família –o irmão Anselmo Frugoli segura as pontas no administrativo da ONG, e o companheiro Wesley Vidal é CEO do projeto– e daqueles a quem ajuda. “Um dia, por erro da Enel, que duplicou uma conta, vieram cortar a luz. Era a hora de servir o almoço. A fila já estava formada. O rapaz da Enel disse que não tinha jeito. Eu pedi tanto, mas ele ignorou. Aí gritei desesperado: ‘Vão cortar a luz do projeto, pelo amor de Deus’. Nem vi de onde apareceu tanta gente que cercou o rapaz. E, por Deus, ele não cortou a luz, e depois a gente resolveu”, diz.

Em busca cada vez mais de profissionalização no projeto –”que a gestão tenha a excelência que colocamos nos pratos”– e de recursos –”a ONG carece de R$ 150 mil mensais para não fechar no vermelho”–, ele lançou mão de tuc tucs para comercializar o pão e as produções da ONG.

Os irmãos Ricardo e Anselmo Frugoli, que lideram o Pão do Povo da Rua, em frente ao carrinho da Haja Pão, que comercaliza pães, bolos e café e foi criado para reverter recursos para a ONG
Os irmãos Ricardo e Anselmo Frugoli, que lideram o Pão do Povo da Rua, em frente ao carrinho da Haja Pão, que comercaliza pães, bolos e café e foi criado para reverter recursos para a ONG – Kesley Machado/Divulgação

Sob a marca Haja Pão, os carrinhos servem café, bolo e pão na feira do Copan, às sextas, na Liberdade, às quartas, e agora todos os dias no Shopping Market Place. E homenageiam mulheres fortes e autoras das receitas dos bolos vendidos no veículo: o de fubá chama-se Dona Lourdes (mãe de Frugoli), o de laranja, Dona Beatriz (vizinha do gastrólogo em São Sebastião), o de banana, Dona Zica Cartola (mulher do sambista), o de capim-santo, Dona Delma (professora de gastronomia social, no Ceará), e o de cenoura, Dona Lucia (professora na Anhembi Morumbi). Cada bolo custa R$ 18.

Cada carrinho —são dois em operação— vende ainda os bolinhos (R$ 4) e o pão do povo da rua (R$ 25).

A novidade ajuda a colocar a trupê de Frugoli em eventos, para 100, 200, 500 pessoas. Mas ainda não reverte ao projeto mais que R$ 6.000 por mês.

Por isso ele clama por doações, descontos nas toneladas de farinha e proteína que compra, tudo o que possa reverter algo ao projeto, como a chance de fazer um pão a mais. Hoje o Pão do Povo da Rua tem apoio de quatro empresas: Lette, Instituto IBR, Porco Real e Pardini Queijos.

A necessidade de verbas e os R$ 6 milhões lhe tiram o sono. Tamanha pressão (“tem muita gente que depende de mim”) rendeu uma ansiedade que não passa.

Confia, porém, na rede de contatos e de clientes, como o chef Jefferson Rueda, que cede proteínas, e o prefeito Ricardo Nunes, que gosta do bolo de capim-santo. E não deixa de sonhar. “Ano que vem vou levar mais egressos da rua para Roma.” E faz planos. “Estamos estudando projeto com a prefeitura para mapear idosos que vivem sozinhos no nosso bairro e estão em situação vulnerável. Precisamos ajudá-los.” Em todos os casos, Frugoli diz, que seja servida sempre comida de alta gastronomia (na rua, no carrinho ou em eventos) e que nunca tenha desperdício e fome. E, em todos os casos, no mínimo, que “haja pão”.

Para contatar o Pão do Povo da Rua: telefone para (11) 3313-1888
Para doações: chave Pix [email protected]
Para acessar a receita do Pão do Povo da Rua https://www.paodopovodarua.com.br/receita-do-p%C3%A3o-do-povo-da-rua

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2025/06/ong-internacionaliza-pao-entregue-a-populacao-de-rua-e-busca-recursos-para-fabrica.shtml